quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

VENHAM RECEBER AS VOSSAS MEDALHAS DA LIBERDADE.

por John Pilger.

A 13 de Janeiro George W. Bush entregou "medalhas presidenciais da liberdade", o maior reconhecimento da América à devoção à liberdade e paz. Entre os recipientes destas estava Tony Blair, o mentiroso épico que, com Bush, tem responsabilidade pela destruição física, social e cultural de uma nação inteira; John Howard, o antigo primeiro-ministro da Austrália e pequeno vassalo americano que dirigiu o governo mais abertamente racista na era moderna do seu país; e Álvaro Uribe, o presidente da Colômbia, cujo governo, de acordo com o último estudo desse estado assassino, é "responsável por 90 porcento de todos os casos de tortura".

Tal como a sátira foi tornada redundante quando Henry Kissinger e Rupert Murdoch foram honrados pelas suas contribuições para o melhoramento da humanidade, a cerimónia de Bush foi pelo menos esclarecedora do sistema do qual ele e o seu refrescante sucessor são produtos. Embora mais espectacular no seu histrionismo coreografado, a tomada de posse de Barack Obama transmitiu a mesma mensagem Orwelliana de verdade invertida: da brutalidade do poder criminal, senão mesmo da guerra infinita. A continuidade entre as duas administrações foi tão macia como a odiosa jura de lealdade de Bono, e simbolizada pelo juramento presidencial do presidente Obama na escadaria do Congresso – onde, dias antes, a Casa dos Representantes, dominada pelo partido do novo presidente, os Democratas, votou 390-5 para apoiar os ataques israelenses em Gaza. O fornecimento de armas americanas usadas nos massacres foi previamente autorizado por uma margem similar. Estas incluíam os mísseis Hellfire que tiram o ar dos pulmões, rebentam fígados e amputam braços e pernas sem necessidade de estilhaços: um "avanço importante", de acordo com a literatura da especialidade. Como senador, então presidente eleito, Obama não levantou objecções ao envio célere destas armas com tecnologia de ponta [sic] para Israel – no valor de 22 mil milhões de dólares – a tempo para o há já muito planeado assalto à população cercada e indefesa de Gaza. Isto é compreensível: é assim que o sistema funciona. Em nenhum outro tema o Congresso e o presidente, republicanos e democratas, conservadores e liberais, proporcionam um apoio tão absoluto. Em comparação, o Reichstag alemão nos anos 30 era um tesouro de debate democrático e com princípios.

Isto não significa que presidentes e membros do Congresso não reconheçam os lobistas de Israel no seu meio como bandidos e chantagistas políticos, embora nunca o digam em público. Chegam até mesmo a distrair-se em angariações de fundos sionistas e viagens pagas até ao objecto do seu ardor. Mas temem-nos. Enquanto os olhos se humedeciam a 20 de Janeiro pelo primeiro presidente afro-americano, quem se lembrava da corajosa congressista afro-americana Cynthia McKinney, a primeira a ser eleita pela Geórgia, que apoiou os palestinos e foi devidamente expulsa do seu cargo por uma campanha de difamação sionista? Por seu lado, o actual "cessar-fogo unilateral" falso em Gaza foi preparado para não embaraçar, por enquanto, o seu novo homem na Casa Branca, cujo único reconhecimento do "sofrimento" dos palestinos há muito foi eclipsado pelas juras de fidelidade a Tel Aviv (até prometendo Jerusalém como capital de Israel, o que nem Bush fez) e pela nomeação daquela que é provavelmente a administração mais pró-sionista desta geração.

Tão merecedores como Blair, Howard ou Uribe da Medalha de Liberdade de Bush, outros exigem o seu lugar nessa companhia. Com o ataque a Gaza, um momento decisivo de verdade e mentiras, princípios e cobardia, paz e guerra, justiça e injustiça, tenho dois nomeados. O meu primeiro vai para o governo e a sociedade de Israel (eu verifiquei, a medalha pode ser atribuída colectivamente). "Poucos de nós", escreveu Arthur Miller, "conseguem facilmente abdicar da visão que a sociedade deve, de alguma maneira, fazer sentido. O pensamento que um Estado tenha perdido a cabeça e esteja a punir tantas pessoas inocentes é intolerável. E assim, as provas têm de ser negadas internamente".

A ironia gritante disto devia ser clara em todo Israel, mas no entanto a sua negação encorajou um culto militarista e racista que usa todos os epítetos contra os palestinos que foram um dia dirigidos aos judeus, com a excepção do extermínio – e mesmo este não está totalmente excluído, como referiu o ministro da defesa adjunto, Matan Vilinai, com a sua ameaça de uma shoa (holocausto).

Em 1948, o ano em que o direito de existir foi concedido a Israel e retirado à Palestina, Albert Einstein, Hannah Arendt e outros judeus proeminentes nos Estados Unidos avisaram a administração para não se envolver com fascistas como Menachem Begin, que descreveu os palestinos como os nazis, como untermenchen – "animais com duas pernas". Tornou-se primeiro ministro de Israel. Este fascismo, que não era anunciado abertamente muitas vezes, foi o precursor do Likud e Kadima. Estes são hoje partidos políticos mainstream , cuja influência no tratamento dos palestinos cobre um "consenso" nacional que é a fonte do terror na Palestina: as expropriações brutais e controlos pérfidos, a humilhação e crueldade pelo estatuto. O espelho disto é a violência doméstica em casa. Os soldados regressam da sua "guerra" contra mulheres e crianças palestinas e fazem a guerra com os seus. Os jovens brancos no exército do apartheid sul-africano faziam o mesmo. Quando Desmond Tutu descreveu a sua experiência na Palestina e em Israel como "pior que o apartheid ", destacou que nem mesmo na África do Sul da supremacia branca havia os equivalentes às estradas para "judeus apenas". Uri Avnety, um dos mais corajosos dissidentes israelenses, diz que os líderes do seu país sofrem de "insanidade moral": um pré-requisito, devo dizer, para ser premiado para a Medalha da Liberdade de Bush.

O meu outro nomeado para a Medalha da Liberdade de Bush é o grupo amorfo conhecido como jornalismo ocidental, que sempre se vangloriou da sua liberdade e imparcialidade. Oiçam o modo como "porta-vozes" e embaixadores israelenses são entrevistados. Como as suas mentiras oficiais são respeitosamente recebidas, quão minimamente são desafiadas. Eles são um de nós, não vêm? Calmos e com um linguajar ocidental, até loiros, ou mulheres atraentes. A voz assustada e atrapalhada em linha de Gaza não é de um de nós. Esta é a mensagem subliminar. Oiçam os locutores usando apenas expressões pejorativas para os palestinos: palavras como "militantes" para os resistentes à invasão, muitos deles heróis, uma palavra nunca usada, e "conflito" por massacre. Notem a propaganda incessante que sugere que há duas forças iguais disputando uma "guerra", e não um povo acossado, atacado e esfomeado pela quarta maior potência militar do mundo, que se assegura de que este não tem lugar onde se refugiar. E reparem nas omissões – a BBC não menciona, antes das reportagens, que uma força estrangeira controla os movimentos dos seus repórteres, como fez na Sérvia e na Argentina, nem explica porque mostra apenas relances da extraordinária cobertura feita pela al-Jazeera do interior de Gaza.

Há mitos disseminados, também: que Israel sofreu terrivelmente com os milhares de mísseis disparados a partir de Gaza. Na verdade, o primeiro Qassam caseiro foi disparado para Israel em Outubro de 2001 e a primeira vítima mortal foi apenas em Junho de 2004. Vinte e quatro israelenses foram mortos deste modo, comparando com os 5 000 palestinos, mais de metade dos quais em Gaza, pelo menos um terço destes crianças. Agora imaginem se os 1,5 milhões de habitantes de Gaza fossem judeus ou refugiados kosovares. "A única atitude honrada para a Europa e a América é usar a força militar para tentar proteger o povo do Kosovo…", declarou o Guardian a 23 de Março de 1999. Inexplicavelmente, o Guardian ainda não apelou a uma "atitude honrada" para proteger o povo de Gaza.

É assim a regra das vítimas aceitáveis e das vítimas inaceitáveis. Quando os repórteres quebram esta regra são acusados de "preconceito contra Israel" e pior, a sua vida é tornada um inferno pelo ciber-exército hiperactivo que redige queixas, fornece material genérico e treina gente por todo o mundo para denegrir trabalho "anti-judeu" que não leu. Estas campanhas vociferantes são complementadas por ameaças de morte anónimas, que eu e outros já sofremos. A sua última táctica é invadir os websites. Mas é apenas desespero, porque os tempos estão a mudar.

Por todo o mundo, as pessoas que antes eram indiferentes ao arcano "conflito" no Médio Oriente começam agora a fazer a pergunta que a BBC e a CNN raramente fazem: Por que é que Israel tem o direito à existência, mas a Palestina não tem? Também se perguntam porque é que os fora-da-lei desfrutam de imunidade no mundo pristino do balanço e da objectividade? Os "porta-vozes" fluentes de Israel representam o regime mais fora-da-lei existente na Terra, incluindo as tiranias exóticas, de acordo como o registo de resoluções das Nações Unidas desrespeitadas e violações da Convenção de Genebra. Em França, 80 organizações estão a trabalhar para levantar processos criminais por crimes de guerra contra os líderes de Israel. A 15 de Janeiro o jornalista israelense Gideon Levy escreveu no Há'aretz que os generais israelenses "não serão os únicos a esconder-se em aviões El Al sob pena de serem presos [no estrangeiro]".

Um dia, outros jornalistas e os seus editores e produtores poderão ser chamados não apenas para explicar porque não contaram a verdade acerca destes criminosos, mas até para se sentarem no banco dos réus ao seu lado. Nenhuma Medalha de Liberdade de Bush vale isso.

O original encontra-se em http://www.johnpilger.com/page.asp?partid=520 . Traduzido por João Camargo.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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