domingo, 17 de janeiro de 2021

ANOS DE CHUMBO - Eu também estava lá.

 

Crónica 29: A Invasão da Faculdade de Medicina na Ditadura.

Texto: Vera Dutra
Após o golpe de 64 a vida intelectual universitária começava a perder seus encantos, pois o debate político e filosófico caracteristico da vida acadêmica estava sendo censurado pelo regime militar ditatorial que dominou o país. Para cada ação repressiva do Estado havia uma reação de estudantes no sentido contrário exigindo liberdade. As manifestações estudantis proliferaram no Rio de Janeiro, cidade que até 1960 tinha sido capital do país e concentrava uma população habituada a participar dos destinos nacionais. O episódio da invasão da Faculdade de Medicina na madrugada da do dia 23 setembro de 1966 expôs a truculencia da ditadura, que além de invadir a universidade com tropas, ainda espancou e prendeu centenas de estudantes.
O mundo passava por uma crise econômica grave gerada pelo petróleo. Quando os militares se instalaram no poder no Brasil utilizando o discurso de defesa do país contra ameaça comunista, nem todos acreditaram nos pretextos alegados para justificar a suspensão dos direitos civis. Havia interesses americanos envolvidos no golpe. USA queria usar o Brasil para repassar seus prejuízos com petróleo para nós. Esses militares golpistas já estavam tentando dar golpe desde o tempo de Juscelino Kubitschek em 1956, só que tinham sido barrados pelo então comandante das forças armadas Gen. Lott, que garantiu a posse de J.K. Quando deram o golpe em 64, o projeto inicial era devolverem o país aos civis após um ano, para o país retornar ao sistema democrático. Porém, isso não se cumpriu. Houve um golpe dentro do golpe. Alguns militares até acreditam que os golpistas mais radicais mataram o Gen. Castello Branco e deram outro golpe em 68. A verdade é que sem motivo nenhum ficaram 21 anos no poder e quando saíram deixaram uma divida externa brutal que jogou o país numa hiperinflaçao de anos!! Só largaram o osso depois de mergulharem o país em dívidas! Deixaram o abacaxi da dívida pros civis! Vale ressaltar que nem todos os militares aderiram de bom grado aos anseios de poder desse grupo extremista e golpista que assumiu o controle. Muitos militares da ativa eram legalistas e pensavam de outra forma, e só obedeceram para não jogar o país numa guerra civil. O Gen. Lott que sempre foi um democrata não aprovou o golpe e como ele outros militares democratas que foram segregados, perseguidos porque não compartilhavam desse ideário do grupo que prevaleceu e que posteriormente também foi traído e expulso em 68, por um segmento de militares mais extremistas. Uma grande parcela da população já temia a permanência indesejada dos militares no poder por muitos anos. Uma das piores consequências de uma ditadura é dividir o país e jogar uma parte da população contra a outra, além de silenciar vozes divergentes, perseguindo e matando. Foi o que sucedeu. Brasileiros lutando contra brasileiros. Instalou-se medo e revolta em uma parte considerável da população diante da prepotência dos militares. Numa democracia aceitamos a vontade da maioria, mesmo que a contra gosto, pois faz parte do jogo democrático aceitar a derrota. Saber perder para posteriormente tentar fazer prevalecer nossas ideias. Numa ditadura todos os caminhos da luta política pacifica são interditados. E submissão ou lutar contra.
Caçaram os políticos, censuraram as televisões, filmes, jornais e revistas, peças de teatro, músicas, shows etc.. Prendiam intelectuais e militantes. Infiltraram espiões em salas de aulas, agentes com níveis intelectuais baixíssimos. Qualquer forma de expressão passava por fiscais despreparados antes de ser liberada. A vida intelectual do país mergulhou no obscurantismo e se deteriorou. Foi se nivelando por baixo. A ditadura tinha características fascistas que destruiu a vida política durante gerações. Muitos jovens viram seus ideais amesquinhados e suas vidas se transformarem em pesadelos. Mesmo sem maiores intenções políticas e com clareza de não querer pertencer a organizações radicais a situaçao exigia um posicionamento. Era compactuar com a ditadura ou se manifestar nas brechas do poder contra ela. As brechas foram se estreitando rapidamente.
O agravante da nossa situação foi o problema da área econômica internacional que afetou os USA. Nos anos 60 os USA passava por uma recessão causada pela crise do petróleo. Os países Árabes até então submissos aos americanos estavam gradativamente tomando o controle de seus poços de petróleo. A OPEP - Organização dos Países Exportadores de Petróleo - subiu drasticamente o preço dos barris desequilibrando a economia mundial. OS USA grande consumidor desse produto encontrou como saída investir no controle político da América do Sul para através de governos vassalos, transferir para cá seus débitos. USA ajudou a instalar e manter ditaduras por todo o continente sul americano e fez enormes empréstimos aos governos militares brasileiros mas a juros altíssimos. Com esses juros cobriram os gastos do aumento das despesas deles com o petróleo! Os americanos continuaram a consumir a gasolina caríssima e nós brasileiros pagamos com juros estratosféricos dos empréstimos americanos a conta deles! Esses militares "patriotas" que rimam com idiotas são os que estão apoiando esse governo que está no poder agora com Bolsonaro! Gente oportunista e subserviente!
Com tipo de colonização que o Brasil sofreu, com regime de capitanias hereditarias, nossa elite se tornou avessa ao país! Odeiam a Pátria, e pior, contam com apoio dos militares subservientes aos interesses excusos das elites. Em grande parte nossa elite herdeira da colonização se identificou com os colonizadores e reproduzem seus comportamentos: exploram o país sem quererem construir uma nação. Sugam o país, sonegam impostos, e enviam lucros de seus negócios para o exterior. Desprezam o povo brasileiro esquecendo que fazem parte desse povo. Só que quando vão para Europa e USA são vistos como inferiores, pois esses são valores dos colonizadores: europeus e anglo saxões que foram colonizadores se consideram superiores, enquanto sul americanos e latinos colonizados inferiores. Mas nossas elites deslumbradas com estrangeiros, têm mentalidades subdesenvolvidas, gostariam de ser um deles, gente sem consciência e sem coluna vertebral. Lá fora essas elites são vistas como a ralé!! Parece natural para essa parte da elite se aliar com estrangeiros para tirar vantagens pessoais deixando o país ao Deus dará! Foi por isso que o maior antropólogo do século. XX, o francês Levi-Strauss quando esteve no Brasil em 39 e depois retornou em 85 ficou horrorizado com nossa classe dominante. Foi recebido com festas em São Paulo pela pauliceia desvairada. Chegou a fazer uma profecia: "Com essa elite esse país vai sair da barbarie para decadência sem nunca chegar ao apogeu". Ele não era um extremista, ele era um estudioso profundo conhecedor das sociedades. Não sou tão pessimista quanto Levi-Strauss. Acredito que há a possibilidade de novas gerações estudarem e mudarem essa mentalidade. Eles podem desejar mais do que uma posição de colonizados com submissão voluntaria aos estrangeiros e se tronarem capazes de formar um pensamento próprio e uma nação. Foi nesse contexto histórico e numa ditadura de militares oportunistas e obtusos que se desenrolou a luta de alguns brasileiros quixotescos contra a ditadura.
Numa madrugada em setembro de 1966 ocorreu o episodio da invasão da faculdade de Medicina no Rio de Janeiro no campus da Praia Vermelha pelas tropas da policia. Ali se concentrava um complexo universitário de várias faculdades da UFRJ que receberam das lideranças estudantis uma convocação para se reunirem na Sede da Medicina. As reivindicações eram várias, mas a principal era a preservação da autonomia universitária que vinha sendo destruída. Após as aulas os estudantes se dirigiram para lá. O clima da reunião era tenso e as notícias que chegaram preocupantes. Sabíamos que o desfêcho provavel não seria o desejado. Porém, cruzar os braços e ficar totalmente passivo diante da barbárie que avançava no país e dentro das salas de aulas não parecia aceitável. Nesse período, a ditadura infiltrava olheiros disfarçados de estudantes dentro das salas de aula das universidades, mas eles eram tão deslocados e mentecaptos que se tornavam óbvios. Visavam denunciar qualquer idéia ou movimentação contrária ao autoritarismo crescente. Apesar dos espiões serem facilmente detectáveis, essa infiltração restringia a liberdade de expressão e pensamento de mestres e alunos. Vivia-se em estado constante de tensão e medo. Nesse dia até agentes infiltrados da Cia estavam lá.
A certa altura da reunião na Medicina o campus foi cercado pela polícia. Quem tava dentro não saia e quem tava fora não entrava. Vários intelectuais tentaram intermediar as negociações entre estudantes e autoridades, mas não chegaram a um acordo. As lideranças temiam ceder e serem presas durante uma saídas organizada. Não divulgavam isso para maioria, mas posteriormente ficou claro. Preferiam o confronto que criaria maior repercussão política e melhores condições de fuga para eles. As negociações terminaram por volta da meia noite. Nao havia soluções ideais! E não havia solução pacifica à vista. Havia consciencia que as tropas iriam invadir a qualquer momento. Sabíamos que a madrugada seria o horário melhor pra eles por ter menor exposição ao público. Internamente as lideranças montaram uma tática de resistência que visava dificultar a entrada das tropas. Obstruiram as passagens internas do pátio com barricadas. Havia um pátio com quarto escadas que davam acesso aos andares superiores e bloquearam todas elas em locais que debaixo as barricadas não eram visíveis. Visavam criar confusão nas tropas que avançando teriam que recuar várias vezes até encontrarem a passagem. Os acessos foram fechados com mesas e cadeiras amontoados até o teto deixando apenas um discreto espaço em uma delas para as pessoas subirem. Escolheram alguns alunos para guiarem os outros pela passagem na hora da invasão e eu estava entre eles.
Acompanhada de uma irmã mais moça e uma amiga, eu havia ingressado na faculdade naquele ano e estava preocupada com o que poderia acontecer ali, pois não concordava com as decisões das lideranças, mas não tinha voz ativa. Estava literalmente entre a cruz e a caldeirinha. De repente, na madrugada ouviu-se um estrondo brutal de vidros quebrados, era a polícia entrando depois de arrebentar seis enormes portas de vidro do saguão. Foi um barulho infernal. Além disso, ouvia-se o latino de cães policiais histéricos adentrando o local. O som ensurdecedor provocou terror avisando o perigo eminente. Todos correram tentando automaticamente cumprir o combinado. Uma sensação de pânico tomou conta de mim. Nunca tinha vivido um experiência dessas. Meu corpo se descolou do meu comando e passou a se mover sem meu controle. Via minhas pernas correrem sem eu conseguir guiá-las. Elas não me obedeciam mais. A cabeça pensava em ir para um lado ou parar mas o corpo ia para outra direção totalmente descontrolado e corria. É uma experiência inimaginável, antes de passarmos por ela. No afã de encontrar o caminho errava sucessivamente trazendo atras de mim um grupo desesperado de estudantes. Só lembro que uma massa de pessoas me seguia e eu gritava: "é por aqui" e errava. Não sei se acharam o caminho, mas eu não achei. Subia e descia as escadas em estado de pânico e terror. Após algumas tentativas nas quais fracassei, desisti. Nessas idas e vindas encontrei um amigo que era lider estudantil e optou por descer em vez de subir. Ficamos escondidos de baixo de uma das escadas. Logo as tropas lotaram o pátio, sem conseguirem prosseguir, encurraladas por elas mesmas, sem acharem a passagem não podiam subir e ficaram sem espaço para movimentação. Minha amiga tinha sumido na confusão e eu estava com minha irmã e esse amigo escondidos ali. Num momento descobriram no nosso esconderijo e nos mandaram sair. Os policiais entretidos com a ordem de entrarem e sem poderem subir estavam desorientados. Com o pátio entupido pelas tropas e sem conseguirem avançar, ainda perplexos, os policiais não tinham espaço para grandes movimentos e agressões. Na confusão nos deixaram escapar. Ganhamos a rua e lá carros da polícia com sirenes rodavam procurando fugitivos. Estavam atrás das lideranças e eu estava com um deles. Não tínhamos como sair dali com segurança. De madrugada , praticamente sem condução, ruas desertas, adentramos o jardim de uma amiga que morava nessa rua e ficamos escondidos lá atrás do muro durante a noite toda. Soubemos depois, que os policiais ao chegarem lá em cima, onde estavam os estudantes, fizeram um corredor polonês e baixaram a pancadaria. Algumas lideranças escaparam pelo telhado e fugiram pelo patio do Pinel. Outras se esconderam dentro do morgue onde os médicos guardam os cadáveres com formol para serem dissecados! O cheiro é insuportável mas a policia ao ver que ali havia cadáveres receou entrar lá e recuou! Os que estavam na sala com defuntos ao saírem de manhã ainda apanharam da polícia, mas ja não havia quem os identificassem e não foram presos. Ao clarear o dia com a rua calma nós saímos do nosso esconderijo e fomos para casa.
Na manhã seguinte apesar da censura aos jornais a noticia circulou. Impossivel abafar um massacre de 600 estudantes, além das testemunhas auditivas dos moradores locais que ouviram os barulhos da violência durante toda a madrugada e a movimentação das tropas. Sem falar dos jornalistas e intelectuais que estavam intermediando para evitarem a invasão. Até então eu havia conseguido escapar ilesa de várias manifestações reprimidas, mas sabia que a qualquer hora ninha sorte poderia mudar. Havia a ideia nas lideranças estudantis de sacrifício das massas de estudantes pelas lideranças para poderem escapar, o que me fez refletir que havia dois pesos e duas medidas mesmo dentro do movimento estudantil. Doravante seria mais cautelosa. Queria protestar mas não queria ser massa de manobra de ninguém! Soube também com pesar que minha amiga que estava comigo tinha conseguido descobrir a passagem e subir como muitos estudantes. Ela tinha apanhado muito da policia e que seu avó materno, um renomado almirante e cientista tinha sido uma das autoridades que ordenaram a entrada das tropas na faculdade. Tristes trópicos!
(Texto: Vera Dutra).

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