quinta-feira, 18 de março de 2021

Venda da Globo.

 


Ângela Carrato: Venda da Globo, um negócio para além das bilionárias cifras


17/03/2021 - 22h03

UM NEGÓCIO PARA ALÉM DAS CIFRAS

Por Ângela Carrato, especial para o Viomundo

Apesar de informações, com detalhes, terem circulado dando conta de que o Grupo Globo estaria sendo vendido, tanto a família Marinho, sua proprietária, quanto o possível comprador, o grupo J&F, da família Batista, e o banco BTG Pactual, que seria o intermediário, negaram.

De acordo com o Grupo Globo, as informações publicadas a esse respeito “são absolutamente falsas”.

Não é a primeira vez que surgem informações dando conta de que o Grupo Globo ou parte dele estaria à venda.

Um nome que figura como permanente interessado é o do empresário mexicano, Carlos Slim, o homem mais rico da América Latina e o sexto mais rico do mundo.

No Brasil, ele já é dono da Embratel, da Claro e da Net.

A família Batista aparece pela primeira vez entre os possíveis interessados.

Já o Banco BTG Pactual do tucano André Esteves, que tem como um de seus fundadores o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, possui larga experiência no setor.

Foi ele que assumiu a revista Exame e o seu site, como parte de um acordo firmado entre o empresário Fábio Carvalho, que comprou a editora Abril, e o banqueiro André Esteves, que financiou o negócio.

Notícias sobre a possível venda de um grupo de comunicação, especialmente quando ele é o maior e o mais poderoso do país, sempre despertam atenção. E, não raro, aos aspectos econômicos do negócio, que obviamente envolvem cifras milionárias, se somam outros mais importantes, que ultrapassam questões meramente comerciais.

Que a vida dos irmãos Marinho, depois que Bolsonaro chegou ao poder, não anda fácil, todos sabem.

Em mais de uma oportunidade, Bolsonaro já ameaçou não renovar a concessão da TV Globo, que vence em 2022.

É importante lembrar que 2022 é também o ano de eleições presidenciais no Brasil.

FINANÇAS E CRISE

Mesmo recuperando audiência, a emissora carro-chefe do Grupo Globo tem perdido anunciantes, receita e passou por um enxugamento de despesas que lembra muito operações que antecedem às vendas.

A política de cortes de despesas, demissões e renegociações de contratos da Globo rendeu uma economia de R$ 468 milhões em 2019. No mesmo período, a Globo faturou R$ 9,679 bilhões, 3,8% a menos do que em 2018.

No ano passado, a emissora conseguiu manter sua política de investimentos e ainda baixar os gastos com novelas, séries, programas e jornalismo valendo-se do expediente das reprises, demissão de funcionários e fundindo as estruturas da TV aberta com a paga.

Como a crise econômica no Brasil aprofunda-se e 2021 já é tido como mais um ano perdido, a situação do grupo Globo volta a complicar-se.

Além de não ter mais onde cortar sem comprometer a qualidade de seus produtos, a baixa dos juros no país incide diretamente sobre a sua contabilidade.

Há muito que as operações financeiras rendem mais à família Marinho do que os produtos que vendem.

Como a TV Globo é uma empresa privada, mas é também uma concessionária de serviço público, justifica-se a preocupação em relação ao seu futuro, pois podem estar em jogo questões políticas e até mesmo o aprofundamento da desnacionalização em mais um setor vital para o Brasil e os brasileiros.

A legislação em vigor proíbe que um grupo de mídia brasileiro seja vendido para  estrangeiros. Sem mudança na legislação, Slim está fora do páreo.

Quanto ao grupo J&F, hoje mais de 80% de suas operações estão nos Estados Unidos, com ele, na prática, apenas conservando a denominação de brasileiro.

Diante disso, até que ponto a venda do Grupo Globo não seria uma forma maquiada de esconder a desnacionalização do maior conglomerado de mídia do país?

Some-se a isso que não se pode descartar o alinhamento de interesses de políticos entreguistas brasileiros com o de setores do Partido Democrata dos Estados Unidos, num momento em que, mais do que nunca, a disputa pela hegemonia do Tio Sam na América Latina está colocada.

Nesse caso, nada melhor do que o controle de um grande grupo de mídia para garantir a simpatia e o apoio de amplos contingentes da população local para com políticas e ações do interesse de Washington.

Exagero? Em todo país democrático há uma enorme preocupação em a mídia refletir os interesses nacionais.

Preocupação que nunca existiu no Brasil. Aqui os “barões da mídia” sempre trabalharam contra governos populares e progressistas como os de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, João Goulart, Lula e Dilma e bateram palmas para aqueles que se prontificaram a entregar as riquezas e o patrimônio nacional.

Não por acaso, a mídia comercial teve papel central no suicídio de Vargas e nos golpes  que derrubaram Goulart e de Dilma, ambos patrocinados pelos Estados Unidos, sem falar na condenação, sem provas, e prisão de Lula, que também teve as digitais do Tio Sam.

Some-se a isso que o Brasil é o único país da América do Sul em que a mídia funciona completamente desregulada.

O que, se num primeiro momento foi extremamente útil para que fizesse o que bem entendesse, agora pode funcionar exatamente ao contrário, permitindo, por exemplo, que sem maiores entraves, um ocupante do Palácio do Planalto, com maioria eventual no Congresso, consiga cassar concessões.

LEI DA SELVA

Em todo o mundo civilizado, rádio e televisão são concessões públicas. Vale dizer: o empresário presta um serviço, mas não é dono do canal.

Em todo o mundo civilizado, existem três tipos de emissoras de rádio e de televisão — as públicas, as comerciais e as estatais – e todas elas estão submetidas a um órgão regulador.

No Brasil os concessionários se julgam e agem como donos e pode-se dizer que, em termos de mídia, vivemos a lei da selva.

Apesar da Constituição de 1988, no Capítulo V, relativo à Comunicação Social, prever a existência da complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal (artigo 222, parágrafo 2º), dispor que os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio (artigo 220, parágrafo 5º) e determinar que o prazo da concessão ou permissão será de 10 anos para as emissoras de rádio e de 15 anos para as de televisão, (artigo 223, parágrafo 5º), nada disso até hoje saiu do papel.

Aqui não existem emissoras efetivamente públicas e a cena midiática é dominada por empresas comerciais, Grupo Globo à frente, que sempre trataram a informação como mercadoria e não como um direito social.  Nesse sentido, a mídia comercial brasileira desconsidera os apelos da ONU em defesa do direito à informação.

No Brasil, até a duração das concessões de rádio e televisão sempre foi mera formalidade.

Os “barões da mídia” conseguiam que elas fossem renovadas automaticamente, sem qualquer avaliação sobre a qualidade do serviço prestado.

Uma empresa como os Diários Associados, de Assis Chateaubriand, só perdeu a concessão de suas emissoras de televisão — TV Tupi (RJ) e TV Itacolomi (MG) –, quando ficou mais do que provado de que não haveria a menor chance de a empresa quitar suas dívidas e que o caos já estava instalado, há tempos, junto a funcionários e credores.

O resultado da lei da selva é o que se vive hoje na mídia brasileira.

Depois das revelações da #VazaJato, do portal The Intercept BR, e das feitas pelo hacker Walter Delgatti,  responsável pelo acesso e vazamento das conversas do ex-juiz Sérgio Moro e de demais integrantes da Operação Lava Jato, não há mais dúvidas sobre a responsabilidade de setores da Justiça e da própria Globo na crise experimentada pelo país.

Crise que levou ao golpe contra a presidente Dilma, em 2016, à prisão do ex-presidente Lula, impedindo-o de participar das eleições de 2018, e à vitória de Bolsonaro.

APOIO À DITADURA

Na contramão do que há de mais elementar no jornalismo, a família Marinho cassou, nos últimos cinco anos, a presença de Lula, de Dilma e dos principais líderes do PT em seus noticiários e programação.

Sem qualquer motivo, a não ser preferência política e antipatia pessoal, a população brasileira ficou impedida de conhecer a visão de Lula e do PT sobre assuntos que lhes diziam respeito e sobre acusações que lhes eram imputadas.

São dezenas de horas em que âncoras como William Bonner e Renata Vasconcellos, do Jornal Nacional, dedicaram a destilar ódio contra Lula e contra a “corrupção do PT”, que só poderiam redundar na onda de aversão à política e aos políticos que levou uma figura tão patética, para dizer o mínimo, como o ex-capitão Bolsonaro, ao poder.

Como a tripla crise brasileira (sanitária, econômica e política) deixa o Grupo Globo cada vez mais vulnerável, criticado, por razões diferentes, tanto por setores de esquerda quanto por Bolsonaro e bolsonaristas, talvez esteja aí a origem da vontade da família Marinho, mesmo negando, pensar em passar o negócio.

Só que uma transação desse tipo, na atual conjuntura, promete muitas dores de cabeça e pode até não conseguir se viabilizar.

A Rede Globo cresceu sob os auspícios da ditadura militar (1964-1985).

Tanto que esteve ao lado dos militares até o último momento, desconhecendo toda a luta em defesa da “abertura política” e da campanha pelas eleições diretas para presidente da República (as diretas-já), que tomou as ruas e praças do país no início dos anos 1980.

O surgimento da Nova República, o arranjo pelo alto que acabou levando à vitória de Tancredo Neves à presidência da República, via Colégio Eleitoral, em 1985, não alterou  o poder que o patriarca Roberto Marinho conseguiu amealhar.

Tanto que o ministro das Comunicações escolhido por Tancredo — e mantido por José Sarney — era não só um amigo como o indicado de Marinho para o cargo: o baiano Antônio Carlos Magalhães.

Poucos, na época, prestaram atenção a esse fato. Mas o certo é que a Nova República começava tão velha quanto a anterior no que diz respeito à mídia.

Enquanto no mundo democrático as discussões envolvendo a importância da informação e o papel da mídia se aprofundavam e legislações mais adequadas eram colocadas em prática, aqui esse tipo de assunto jamais teve lugar.

A mídia comercial era a primeira a interceptá-lo.

Não é por acaso que ainda hoje muita gente confunde regulação da mídia com censura e não falta quem fique perplexo ao saber que além da televisão comercial, a única que conhecemos no Brasil, existem outras modalidades de emissoras, onde não há donos e nem anunciantes a darem a palavra final sobre o que deve ser divulgado.

Os governos Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso também não se preocuparam com a mídia.

Collor possivelmente por falta de tempo, uma vez que foi obrigado a renunciar para escapar de um processo de impeachment que o deixaria inelegível.

Já FHC, mesmo dispondo de tempo de sombra — ele inaugurou a reeleição para presidente da República — jamais quis desagradar Roberto Marinho e seus demais amigos no setor.

LEITURA ENVIESADA

O candidato de toda a mídia comercial brasileira, em 2002, era o tucano paulista José Serra.

Ele era visto como a “pessoa ideal” para dar continuidade e aprofundar as reformas neoliberais que FHC vinha implementando (privatizações, venda do patrimônio público, desnacionalização e subserviência aos interesses dos Estados Unidos).

Só que o eleito foi Lula e a mídia que sempre o combateu e também ao seu partido, decidiu, antes mesmo de se completar os chamados “100 dias do novo governo”, partir para a oposição frontal e a desconstrução.

O programa de governo proposto por Lula estava longe de qualquer radicalismo.

Para grande parte da esquerda, pecava pela excessiva moderação. Em termos de mídia, as únicas medidas propostas por ele em 2003 foram a criação do Conselho Federal de Jornalismo e a transformação da Agência Nacional do Cinema, em Agência Nacional do Audiovisual (Ancinav).

Ambas foram enviadas ao Congresso Nacional e sofreram um bombardeio tamanho que Lula decidiu retirá-las de pauta.

O Conselho Nacional de Jornalismo, uma antiga reivindicação dos sindicatos da categoria e da própria Federação Nacional dos Jornalistas, nada mais seria do que um órgão similar à OAB e ao Conselho Federal de Medicina, cuidando das questões éticas envolvendo a atuação da mídia e de seus profissionais.

Já com a Ancinav, Lula pretendia que o Brasil, finalmente, tivesse um órgão que cuidasse da política do audiovisual, a exemplo dos que existem no Reino Unido, na França, Alemanha, Estados Unidos, Canadá, Japão e Argentina.

Mas a leitura que a mídia comercial fez foi propositalmente enviesada, com rádios e emissoras de televisão, Globo à frente, passando a considerar as duas propostas como “tentativas de censura” e “atentado à liberdade de expressão”.

Na época, não faltaram jornalistas de renome e artistas consagrados, de boa e má fé, embarcando nessa conversa da Globo e difundindo-a aos quatro cantos.

ENFRENTAMENTO

Mesmo jamais tendo sido agressivo com a mídia e não possuindo a menor vocação para patrocinar censura, a mídia comercial brasileira, acostumada a tutelar presidentes da República, decidiu partir para o enfrentamento com Lula.

Na época, a ferocidade com que ela aderiu às denúncias sem provas envolvendo o que ficou conhecido como “Mensalão Petista” só se comparam à atitude, mais recente, com que endossaram às condenações, igualmente sem provas, contra os petistas, praticadas pela Operação Lava.

Na época do “mensalão”, os irmãos Marinho abriram todos os espaços para que suas emissoras de rádio e de TV transmitissem ao vivo e de forma espetacularizada, os julgamentos, sem direito ao contraditório.

Foram eles que, novamente, deixando de lado o mais elementar da prática jornalística (ouvir os dois lados), transformaram o então juiz Sérgio Moro e o procurador federal Deltan Dallagnol em “heróis nacionais” e a Operação Lava Jato em “símbolo maior do combate à corrupção no Brasil”.

Com a Lava Jato agora desmoralizada e fazendo água por todos os lados, além de ser apontada pela mídia internacional, como o fez o insuspeito The New York Times, como “a maior farsa jurídica em toda a história da humanidade”, não é de se estranhar que a família Marinho, pense em saídas.

A venda para o bilionário Slim seria o caminho mais simples, se a legislação brasileira não proibisse que estrangeiros façam esse tipo de aquisição.

Em 2002, seguindo instruções de Fernando Henrique Cardoso, o então presidente da Câmara dos Deputados, o tucano Aécio Neves, conseguiu que fosse votada e aprovada, a abertura de até 30% do capital de empresas de mídia brasileiras para o capital estrangeiro.

Com endividamento alto em dólar, na época essas empresas, principalmente Globo, editora Abril e jornal Estado de S. Paulo, sonhavam com investimentos externos de monta, que nunca apareceram.

Nos dias atuais, dessas, apenas o Grupo Globo permanece nas mãos de seus antigos proprietários, os outros passaram para o controle  de bancos e de banqueiros.

Em 2007, para desespero da mídia comercial, Lula conseguiu, finalmente, aproximar a mídia brasileira do que se passava no mundo democrático, criando a Empresa Brasil de Comunicação, (EBC), com seus braços público (TV Brasil) e estatal (TV NBR).

Mesmo permanentemente combatida pela mídia comercial, a EBC ia bem até a queda de Dilma, quando começou a ser desmontada, sendo transformada em empresa a serviço do bolsonarismo.

Principalmente a TV Brasil causou verdadeiro ódio aos “barões da mídia”, preocupados em perderem a primazia das informações e indignados diante da perspectiva de  dividirem o bolo publicitário oficial com o novo veículo.

DESCONFIANÇAS

Mesmo devendo sua eleição à Globo, Bolsonaro e os bolsonaristas não gostam da emissora.

A tentativa de controlá-lo (“colocar focinheira”) não deu certo, com os Marinho tendo tido o dissabor de ver os concorrentes sendo prestigiados e até aquinhoados com mais verbas.

Até muito recentemente, por exemplo, era impensável um ministro das Comunicações que fosse de emissora concorrente da Globo.

Na entrevista que deu para mais de 150 veículos de Comunicação (121 estrangeiros), assim que teve suas condenações na Lava Jato anuladas pelo ministro do STF, Edson Fachin, Lula enfatizou que não guarda ódio e nem mágoa de ninguém, mas não deixou de criticar a atuação do Grupo Globo nesses anos todos.

O grupo Globo, por sua vez, não fez o que alguns esperavam e outros até sugeriram: autocrítica e pedido público de desculpas a Lula.

Claro que um pedido desse tipo não sanaria o mal que fez ao ex-presidente, ao PT e, e à população brasileira, mas poderia ser um sinal de mudança e de reposicionamento em se tratando da democracia.

Ao que tudo indica, no entanto, os irmãos Marinho preferem trilhar outros caminhos.

Desfazer-se do grupo Globo ou de parte dele pode ser uma dessas possibilidades, uma vez que, a manter-se o cenário atual, dificilmente as eleições de 2022 não serão disputadas por Bolsonaro e Lula ou por setores que os representem.

Talvez resida aí uma das razões pelas quais o ministro Paulo Guedes é tratado com tanto carinho pelo Jornal Nacional, apesar de sua política estar destruindo a economia brasileira.

Guedes pode ser o intermediário de que eles venham a precisar.  Mais uma vez, o interesse do grupo fala mais alto do que os interesses do Brasil e dos brasileiros.

Talvez aí resida também uma das razões para o Grupo Globo continuar tratando com tanta cordialidade o deputado federal Aécio Neves, apesar do seu golpismo explícito, das diversas denúncias de corrupção, recebimento de malas de dinheiro da J& F e dos processos que recaem sobre ele.

Afinal, Aécio pode acabar sendo o elo com o grupo J&F com o qual sonham os irmãos Marinho para permanecerem em cena. Algo como vender a empresa, mas continuarem dando as cartas em termos editoriais.

*Ângela Carrato é  jornalista e professora da UFMG

Nenhum comentário: