quinta-feira, 1 de abril de 2021

O projeto fura fila dos empresários altruístas.

 

Após o presidente tentar transformar as Forças Armadas em seu playground, outro ato descarado chamou a atenção em Brasília nesta semana: um cambalacho de empresários, com a benção dos líderes do Congresso Nacional, para furar a fila da vacinação. E ainda pagarem de bons moços.
Contextualizando: uma lei foi aprovada, no início de março, autorizando a iniciativa privada a comprar vacinas. Maaaaas, ela teria que doar 100% das doses para o SUS (o glorioso Sistema Único de Saúde) enquanto a imunização dos grupos prioritários não acabasse. Depois disso, metade ficaria com o poder público e metade com a empresa.
Claro que o "altruísmo à brasileira" de um naco do empresariado brasileiro não ia ficar satisfeito com isso. Querem mais, querem tudo. Criaram uma narrativa. Tentam convencer que estarão ajudando o país se adquirirem vacinas por conta própria e aplicarem em seus empregados e nos familiares. Nessa narrativa, o país não tem doses por que faltam recursos e é lento para aplicar na população.
Cascata. Da grossa.
Primeiro: o país não conta com vacinas em número suficiente não por falta de dinheiro, mas devido a uma deslavada omissão de Jair Bolsonaro, que não comprou doses no ano passado quando podia. Ídolo dos referidos empresários, ele preferiu defender que a melhor imunização era contrair covid, apesar da discordância de mais de 321 mil brasileiros que perderam a vida.
Segundo: nada substitui o Programa Nacional de Imunizações em questões de competência, capacidade, experiência e logística. Há um plano nacional, escalonando faixas etárias e grupos profissionais, para reduzir o mais rapidamente o número de mortes. O PNI conseguiria imunizar mais de 2 milhões de pessoas por dia, basta ter vacina.
Empresários realmente altruístas comprariam as doses e entregariam ao SUS, que faria chegar em quem mais precisa, imediatamente. Há pessoas de grupos de risco ou de atividades essenciais que necessitam mais do que os empregados jovens e sem comorbidades de empresa de atividades não essenciais. Existe maior demonstração de patriotismo do que salvar a vida de seus compatriotas que contam com mais chances de morrer?
Isso sem contar que vacinar apenas os próprios empregados e achar que tudo volta ao normal mostra incapacidade gerencial, pois ignora que empresas estão conectadas em longas cadeias de valor. E nem todos os atores econômicos dessa cadeia terão recursos para comprar vacinas por conta própria. Ou seja, ou empresas menores não voltarão a fornecer suprimentos ou a vacinação de uma grande empresa forçará suas parceiras a voltarem sem estarem protegidas - infectando mais gente.
O projeto fura-fila veio com um bode na sala, uma proposta do deputado Hildo Rocha (MDB-MA) para autorizar às empresas a abater o valor gasto com a compra de vacinas do Imposto de Renda. É isso mesmo que você leu. O que significaria transferir para todos nós o custo dessa brincadeira. Isso gerou revolta e vai ser deixado de lado, mas a ideia bizarra de criar um processo paralelo de vacinação para quem tem dinheiro segue a todo o valor.
Os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), defenderam a proposta. O novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, também.
O fato de estarmos discutindo isso neste momento ao invés de arregimentar bilionários e grandes empresas para comprar vacinas e doá-las ao SUS, ajudando a sociedade a sair do atoleiro como um todo, mostra que no fundo do poço tem um alçapão. E lá dentro se encontra o Brasil, gritando "é cada um por si e Deus acima de todos".
Nesta quarta, chegamos a quase 4 mil mortes registradas em 24 horas por covid-19. Isso poderia ser freado adotando um duro isolamento social e abastecendo o SUS. Mas no Brasil, não faltam apenas leitos de UTI, sedativos para intubação e vacinas. Falta também óleo de peroba para tanta cara de pau.

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