A soberania alienada

Imagem: Eugênio Barboza

Por JAIR PINHEIRO & JOHN KENNEDY FERREIRA*

O Brasil nunca foi um país independente

Segundo o jornal Valor Econômico, na edição do dia 27 de outubro de 2021, para o general Braga Neto “privatizações de Eletrobras e Petrobras em nada afetam a soberania”. Para quem alienou os interesses e, por conseguinte, o destino do Brasil ao imperialismo estadunidense, a afirmação é uma necessidade, quase uma autodefesa. A rigor, Braga Neto não é o primeiro general dessa lavra de entreguistas a manifestar surpreendente e alienante visão de soberania; antes dele outros já manifestaram, (e, provavelmente, outros ainda o farão) a opinião de que soberania é meramente de integridade territorial. Por isso, podem abrir mão dos instrumentos de planejamento econômico, como é o caso de uma empresa de energia.

A ideia básica de comunidade de destino, como conteúdo precípuo da de nação, simplesmente desaparece. Entretanto, esse desaparecimento não é um acaso fortuito, pois uma comunidade de destino é tudo que o Brasil não foi desde 1822.

Nossa construção hipertardia, destinou à oligarquia e burguesia uma exclusividade política sobre o Estado e uma práxis autocrática que se revela numa vigia permanente aos de baixo e impede, portanto, a  incorporação ativa (não subordinada, mero digitador da urna eletrônica) das classes populares ao sistema político e a capacidade do Estado decidir soberanamente os destinos dessa nação, sem subserviência vexatória ao Império do norte porque, supostamente, sempre estivemos ao lado deles. como afirmou o então comandante da Marinha, almirante Ilques Barbosa Junior, que nossos destinos estão alinhados com os EUA, bradando que “que o Brasil enfrentou ‘três guerras mundiais’ ao lado dos EUA (Isto É 09/01/2019). Aliás, é famosa a máxima do ex-secretário de Estado, John Foster Dulles, de que “os EUA não têm amigos, têm interesses”. Entretanto, nossos generais pensam serem amiguinhos deles.

Essa visão subordinada, está vinculada aos interesses ideológicos e aos lastros econômicos subalternos predominantes dentro da elite econômica e da burguesia brasileira.

Essa visão alienante de soberania é funcional não apenas para afastar as classes populares – os farialimers têm acesso livre a Brasília – do debate sobre as grandes questões nacionais, mas também para travar uma guerra (ora aberta, ora velada) aos direitos trabalhistas e sociais[i]. A guerra é aberta nos massacres aos povos originários, ataques armados a quilombolas, aos pobres das periferias, aos movimentos de sem teto e sem terra, aos ribeirinhos, assassinatos nunca suficientemente apurados de líderes sociais etc.; é velada nos discursos supostamente modernizadores que sustentam uma produção legislativa de destruição dos direitos trabalhistas e sociais, preconizada pela famosa Uma Ponte para o Futuro[ii], programa político do golpista Michel Temer, revogando de fato o título VIII da Constituição de 1988.

Como nenhuma guerra é improvisada, pelos menos da parte do atacante, já que o atacado pode ser surpreendido, esta também foi meticulosamente planejada, ainda que seja heterogêneo o conjunto dos atores que concertaram a conspirata antinacional e antipopular consubstanciada no golpe jurídico-midiático-parlamentar-militar. Na primeira fase do golpe, entre 2016 e 2018, o parlamento e a mídia representaram a face pública dos golpistas. 2019 e 2020 o Partido Militar, bem acomodado no governo, representou essa face pública e as manifestações dos seus próceres indicam que estiveram o tempo todo por trás dos acontecimentos.

Fracassado o governo, como era previsível por qualquer análise que não se prenda às vulgaridades rasas do chamado mercado, o Partido Militar[iii] emite sinais de abandono da figura nefasta que escolhera para consecução do seu projeto, sem abrir mão do projeto[iv]. Ou seja, continuam apostando nas vulgaridades rasas do mercado, embora não tenham nenhum exemplo histórico bem-sucedido para nele se apoiarem.

A pátria amada está refém dessas forças reacionárias, a República é historicamente tutelada pelas forças militares, desde a 1889. O desafio das forças populares é retomar a iniciativa política e resgatar a ideia de pátria como comunidade de destino com poder decisório soberano sobre tal destino, o que, evidentemente, exige a mais ampla democracia, conceito que vai muito além de digitar um número na urna eletrônica, requer ampla participação no debate sobre as grandes questões nacionais e mecanismos de controle efetivo sobre os governantes.

No ano em que se comemora o bicentenário da independência é hora de popularizar o tema da independência nacional. Um povo tutelado e miserável, não obstante as riquezas naturais do território que ocupa, não é independente. Um povo que tem medo do guarda da esquina, porque ele tem licença para matar, não é independente.

Um povo que não pode celebrar livremente a sua diversidade, porque calar a diferença é concebido como unidade, não é independente. É tudo isso que deve ser proclamado no bicentenário da independência; independência de fato, não uma mera separação jurídico-política da metrópole.

*Jair Pinheiro é professor de ciência política na UNESP-Marília.

*John Kennedy Ferreira é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA.

 

Notas


[i] Jair Pinheiro. “O golpe e a guerra às classes trabalhadoras”. In: Lutas Sociais, São Paulo, vol. 23, n.º 42, p. 109-123, jan/jun. 2019.

[ii] Fundação Ulysses Guimarães, 29 de outubro de 2015. Disponível em: <file:///C:/Users/Usuario/AppData/Local/Temp/UMA-PONTE-PARA-O-FUTURO.pdf>

[iii] Marcelo Pimentel Jorge de Souza, “A palavra convence e o exemplo arrasta”. In: João Roberto Martins Filho (org.). Os Militares e a Crise Brasileira. São Paulo: Alameda, 2021.

[iv] Além do famoso twit do general Vilas Bôas, então comandante do Exército, de 07/04/18, de ameaça ao STF, cito alguns exemplos de engajamento do Partido Militar na construção da tragédia que se abate entre nós. O inusual lançamento de uma candidatura presidencial na AMAN: Bolsonaro é recepcionado por aspirantes da AMAN (NOV/2014) https://www.youtube.com/watch?v=MW8ME9S87SI

General Santos Cruz em campanha: “Bolsonaro representa democracia, representa a liberdade; o Haddad representa a ditadura, representa o fascismo, representa nazismo, representa racismo, divisão do país em cores, regiões etc., então é a hora da opção o gigante acordou…” https://twitter.com/JJaimeBr/status/1457102189877415937  e, em tom de advertência, como se tivesse fundamento o que dizia, General de divisão Ajax Porto Pinheiro fala sobre o que está por vir ao Brasil !!!; 14 de out. de 2018 https://www.youtube.com/watch?v=bAFhQT21vBo

Por fim, uma matéria jornalística que estranhamente não repercutiu no Brasil: Bolsonaro presidente, el proyecto secreto de la cúpula militar, disponível em: https://www.letrap.com.ar/nota/2018-10-5-20-42-0-bolsonaro-presidente-el-proyecto-secreto-de-la-cupula-militar