quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Ainda sobre o milagre chinês.

 

Ainda sobre o “milagre chinês” (II)

Segunda parte da resposta de Maurilio Botelho e Marcos Barreira ao artigo de Jones Manoel, em que os autores refletem sobre o "milagres chinês", o capital fictício e a "política" na era da simulação.

COMPLEXO DE 15 PRÉDIOS DEMOLIDOS EM HUAIAN, NA CHINA.

Por Maurilio Botelho e Marcos Barreira

Confira aqui a primeira parte deste artigo.

Parte II: Capital fictício e “política” na era da simulação

V

Tanto a orientação imediata e unilateral para o concreto presente na maior parte da esquerda atual quanto a crença de que o dinheiro não precisa representar uma produção substancial de riqueza, mas apenas relações subjetivas ou convenções sociais manipuláveis de acordo com a vontade política, fazem parte de um mesmo contexto histórico geral. Não há espaço nessas interpretações para as mediações do valor, do capital etc. – e, por isso, do dinheiro como mercadoria geral e forma de manifestação do capital. Por outro lado, elas indicam, cada uma à sua maneira, além da perda de qualquer padrão objetivo e substancial, uma perda da realidade histórica. O que escapa aqui é, sobretudo, o conjunto de mudanças estruturais pelas quais o capitalismo passou desde os anos 1970 e o modo como elas indicam uma crise fundamental no interior das relações capitalistas. As causas desse processo estão, como já indicamos na primeira parte desta anticrítica, no esvaziamento de trabalho com a produção intensiva e na crescente socialização direta dos processos de produção (que mina a lógica da socialização pelo valor, isto é, da socialização mediada pela troca de trabalhos produtivos imediatos).

Há muito a teoria social encontra, por assim dizer, vestígios dessa transformação, sem ser capaz de reunir os sinais dispersos em um todo coerente. Pelo contrário, a fragmentação social real no contexto da crise sistêmica do capitalismo tende a produzir um pensamento afirmativo da própria fragmentação. O que se perde aí é precisamente a mediação social do valor como contexto sistêmico de relação. No final dos anos 1980, no entanto, a teoria marxista ainda reavivou uma expressão inicialmente orientada para o “estado da cultura”, falando acerca da condição pós-moderna, a fim de caracterizar o conjunto de transformações iniciadas com a crise do fordismo e seus desdobramentos no plano da acumulação de capital.1 A interpretação das tendências fragmentárias, relativistas e orientadas unilateralmente para o “concreto” e o “imediato” não como meras ideologias, mas também como produtos de uma determinada condição social, dá um passo para além do marxismo tradicional, que, ironicamente, entende o pós-modernismo como uma redução do real à discursividade, mas invariavelmente combate os produtos da fragmentação social reduzindo-os a um mero “discurso errado” sobre o real. Algo semelhante ocorre com o problema da substância do capital. Desde 1971, quando se rompeu o vínculo substancial entre mercadoria e dinheiro, isto é, a dissociação entre a última moeda mundial (dólar) e a sua mercadoria-base (ouro), ocorreu uma profunda mudança na base do sistema monetário. Tendo o capitalismo seguido seu curso após a desconexão, e como as mudanças que ela produz não são imediatamente perceptíveis a partir do tacanho ponto de vista empírico, assume-se que essa é uma condição perfeitamente “normal”. Assumindo isso, porém, admite-se também a instabilidade financeira crescente, a multiplicação dos mercados secundários, a complexidade dos derivativos, a inflação estrutural e o endividamento sistemático como partes da nova normalidade. Além de reduzir os processos de fragmentação do nexo social a um plano discursivo, que é denunciado como pura ideologia, esse ponto de vista se une à tendência geral para a simulação que está na base da lógica econômica da “pós-modernidade”. Ele já não tem qualquer consciência do seu próprio condicionamento histórico: enquanto a mercadoria-dinheiro se desprende da sua substância em um processo de crise estrutural e de ficcionalização da riqueza, o ponto de vista “materialista” se converte na ideologia afirmativa dessa desconexão entre a riqueza capitalista e os seus fundamentos materiais. 

A crise dos referenciais teóricos da antiga esquerda marxista – que, em todo caso, nunca entendeu criticamente as categorias de base do capitalismo – se deu em meio ao esgotamento do modelo de planejamento estatal do mercado que vigorou desde a década de 1920. Por mais que se apresentasse como um antípoda do capitalismo, sempre entendendo este a partir da combinação reducionista de propriedade privada e “livre mercado”, a realidade dessas sociedades “pós-revolucionárias” consistia precisamente no contrário, isto é, no processo de afirmação histórica das relações capitalistas fundamentais, a começar pela instituição da força de trabalho e do seu disciplinamento no contexto de construção da economia nacional. Desde o início, e em conformidade com o conceito reduzido de capitalismo, a intervenção do Estado foi confundida pelo marxismo tradicional com uma forma de poder não capitalista, mesmo quando ela atuava para implementar a acumulação primitiva e o desenvolvimento das relações de valor-mercadoria-dinheiro. O resultado da “modernização recuperadora” em economias de base fortemente rural (como a Rússia no início do século passado) foi uma formação social assentada na contradição entre a manutenção das categorias de base do capitalismo que o “primado da política” ajudou a instituir e a limitação do elemento concorrencial do mercado, o que deu origem a uma sociedade profundamente disfuncional.2

Os primeiros anos desse modelo podem ser explicados historicamente como parte do conflito entre diferentes etapas da modernização capitalista, ainda que seu conteúdo real fosse dissimulado pela ideologia oficial de partido.3 Tratava-se, inicialmente, apenas da reconstrução econômica depois da guerra civil, isto é, da transformação da pequena produção agrária e artesanal em grande produção industrial. Esta última, no entanto, já era em grande parte identificada em termos ideológicos com a estrutura econômica do socialismo, enquanto os elementos capitalistas eram associados à permissão de liberdade de comércio. O desenvolvimento do comércio estatal, por sua vez, expulsaria gradativamente os elementos capitalistas.4 Pouco a pouco, esse elemento de plausibilidade histórica, ainda que ideologicamente distorcido, se dissipou. Já nos anos 1930, os dirigentes soviéticos afirmavam, com base no programa de industrialização e de coletivização, que estavam criadas as bases técnico-materiais do socialismo na URSS. Nos anos 1950, esse processo, interrompido pela guerra, foi retomado e os mesmos dirigentes declararam a “vitória total e definitiva” do socialismo, além do surgimento de um sistema socialista mundial. Em 1961, de acordo com XXII Congresso do PCUS, a URSS havia ingressado oficialmente na “nova etapa” da “construção da sociedade comunista”. A China, como parte do “sistema socialista”, porém, denunciou a regressão da URSS a um capitalismo de Estado, enquanto, na mesma época, parte da esquerda ocidental criticava a ofensiva das reformas de mercado nos países do Leste.5 Na década de 1980, finalmente, esse socialismo tornava-se inteiramente irreal. Uma vez alcançado o objetivo de modernização de base, com a transformação das massas agrárias em força de trabalho para a grande indústria, a “aplicação consciente da lei do valor” nos “mercados planejados” se tornou irremediavelmente contraproducente e se chocou precisamente com o amadurecimento da socialização capitalista em um novo patamar, que tende à eliminação do trabalho vivo do processo de produção imediato. Para além da estagnação prolongada, e a consequente escassez material, cresciam no seu interior, a partir da periferia do bloco soviético, as tendências destrutivas da economia mafiosa e do fundamentalismo. 

As contradições internas do “mercado planejado” levaram à implosão das economias da antiga URSS e do Leste. No “socialismo real”, a socialização pelo valor não foi colocada “sob controle”, uma vez que ela é, por definição, uma forma irracional e desmedida, e muito menos superada. O que desapareceu foi apenas o seu mecanismo funcional interno. Esse mecanismo dinamizador das relações mediadas pela mercadoria se converteu em uma “concorrência negativa”, na qual já não podiam ser estabelecidos os critérios sistêmicos de rentabilidade.6 A reprodução social foi mantida em suas formas capitalistas básicas, já percebidas como uma “segunda natureza”, mas dependia de uma mediação específica da “consciência burocrática” para aplicar os recursos e estabelecer as necessidades. Após a virada histórica iniciada no final dos anos 1980, a esquerda marxista do Ocidente deu uma guinada em direção ao pragmatismo político (no plano teórico, isso convergiu com a ascensão de um neorreformismo acadêmico e com a diluição final das categorias da crítica da economia política no neokeynesianismo). Ela reagiu aos acontecimentos com uma derradeira “mudança de paradigma” diante da crise da objetividade do valor que, em vez do antigo objetivo de suprimir as condições capitalistas, prefere declarar obsoleta a teoria do valor. A própria forma abstrata da dominação torna-se, assim, irreconhecível. No antigo aparato burocrático e militar do Leste, por sua vez, as pretensões ideológicas socialistas foram denunciadas como “cosmopolitas” e deram lugar ao princípio da “regeneração” nacional-estatista, superando as lacunas ideológicas entre antigos leninistas, monarquistas, nacionalistas e até mesmo neofascistas.7

Tudo isso indica uma época histórica de crise e rupturas na qual impera a mais profunda confusão ideológica. Para os náufragos da experiência historicamente derrotada do socialismo de caserna, porém, as coisas parecem estar mais ou menos onde sempre estiveram, tratando-se apenas de um revés na “correlação de forças” política. Também aqui, tanto o esgotamento do processo de modernização quanto a crise subsequente dos antigos referenciais, uma vez que todos eles se alimentavam desse mesmo processo, são reduzidos a uma simples crise ideológica.8 Essa profunda desconexão com o contexto histórico real precisa se transformar então na construção de uma história alternativa e no “revisionismo” histórico, que é compartilhado com os conservadores mais delirantes, mas em sentido ideológico inverso. Em ambos os casos, porém, o “comunismo” volta ao centro do debate mundial, ainda que para a esquerda marxista residual ele retorne, de um lado, como idealização positiva e historicamente descontextualizada da política de massas dos anos 1920-1930 e, de outro, como negação barata dos crimes históricos da era stalinista. É nesse contexto que a China surge como tábua de salvação ideológica e último ponto de contato com o desenvolvimento capitalista atual. A sobrevivência do regime chinês, no entanto, se deve também à recusa da “linha” socialista a partir da qual era denunciada a “restauração” capitalista na ex-URSS. Desde as reformas do final dos anos 1970, a China desenvolveu estruturas econômicas e sociais muitos mais flexíveis que a dos mercados planejados do Leste. Com o aprofundamento das reformas (que deram início a uma nova rodada de acumulação primitiva no campo) e uma estrutura produtiva de baixos salários e longas jornadas nas novas áreas industriais, a China se integrou totalmente à dinâmica da globalização.

A combinação de elementos estatistas e monetaristas, no entanto, não era nenhuma novidade ou exclusividade da economia chinesa; ela já existia há muito tempo como fator de adiamento da crise nas principais economias ocidentais (sem falar em expoentes do “capitalismo asiático” como Taiwan, Singapura ou Coréia do Sul, marcados pela forte presença do Estado no “projetamento” da economia). Depois da crise de 2008, as tendências liberalizantes e desregulacionistas foram fortemente questionadas e a tendência a uma retomada do protagonismo estatal foi reforçada em muitos países. Isso, porém, não significa um retorno à velha ordem pós II-Guerra, constituindo apenas um momento no interior do processo de crise mundial – o que implica também um declínio da ordem estatal como tendência geral, ainda que não homogênea, como se pode ver em muitos exemplos de fragmentação do poder político em âmbito mundial. No contexto da crítica do valor, esse momento em que o Estado é chamado para atuar como “última instância” contra a crise foi antecipado por Kurz já em 1991: “em oposição total à ideologia e expectativa hoje predominante, a crise provocará também no Ocidente um novo salto histórico, do polo monetarista ao estatista. Só que dessa vez não como outro surto de modernização, mas sim como progressiva administração de emergência estatista do sistema global em colapso” (KURZ, 1994 [1991], p.204). Também aqui falta na esquerda saudosista de uma ordem capitalista centrada no Estado a perspectiva histórica que permite diferenciar as formas de mediação político-estatais em um período de ascensão da modernização e essas mesmas formas no contexto atual, marcado pelas tendências opostas à ordem anterior, isto é, pela crise e fragmentação da estrutura capitalista.

O reforço do elemento estatista, na contramão das reformas de mercado implementadas pelo PCCh nas últimas décadas, não está ligado a um novo surto de modernização, mas, pelo contrário, segue a tendência geral de administração da crise que se faz presente também no “polo ocidental” da economia mundial. Ele ocorre, portanto, em um mundo unificado pela concorrência imediatamente global, que funciona como uma estrutura de investimento com bases produtivas sempre decrescentes. Esse novo salto em direção ao estatismo não implica em um novo tipo de “planejamento” do mercado; em vez disso, ele atua como garantia precária dos processos de mercado que já não conseguem se expandir de modo sustentável. Dessa forma, a China lida hoje não com o famigerado problema da “transição”, mas apenas com as contradições da socialização capitalista amadurecida em escala global. O crescimento chinês nas últimas décadas já se deu em grande parte em uma luta desesperada não só contra o “atraso” interno, mas também contra as contradições já amadurecidas do mercado mundial, onde a dificuldade crescente de integrar de forma rentável a força de trabalho foi compensada, inicialmente, pelo retorno da mais-valia absoluta e, em seguida, pela escalada do endividamento. O problema agora se torna a incompatibilidade entre a produção cada vez mais intensiva e automatizada e o discurso ideológico oficial da integração pelo trabalho.

Para uma parte da esquerda ocidental, o modelo chinês, imediatamente integrado ao mercado mundial, em um quadro de interdependência econômica e administração de emergência, teria preservado um conteúdo “socialista” devido à condução da integração ao mercado mundial pelo aparato político-estatal, ou seja, a diferença do modelo chinês em relação ao Ocidente residiria principalmente nos métodos de condução política adotados pelo PCCh. Fica evidente nisto um conceito de socialismo inteiramente oco, que abandona as determinações categoriais da crítica do capitalismo, com as quais nunca se soube muito bem o que fazer, para se agarrar à “experiência concreta” tomada como positiva em si mesma, seja qual for a sua determinação. Tudo gira em torno da interpretação ideológica que o aparato partidário-estatal faz das “relações de poder”. Isso soa familiar e se parece com o velho debate sobre “plano-mercado” dos anos 1930-1960, mas em uma constelação histórica inteiramente diferente. Por um lado, a China ainda tenta integrar as massas rurais em uma forma de reprodução social baseada na lógica da mercadoria – o velho problema da “modernização recuperadora” –, o que exigiria um esforço de crescimento continuado por algumas décadas. Esse objetivo nada socialista da superação do atraso e da criação de uma força de trabalho em linha com as forças produtivas no âmbito da economia nacional esbarra atualmente nas restrições do mercado mundial ditadas pelas novas revoluções tecnológicas; de outro lado, o “planejamento” passa a ser feito não mais a partir da concentração do poder político, que criava “do nada” as condições de uma acumulação primitiva, e sim como mera adaptação aos novos imperativos da concorrência imediatamente global. Que o “planejamento consciente do mercado” como eliminação da dinâmica da concorrência, para além de um salto inicial, era uma impossibilidade lógica ficou demonstrado com décadas de estagnação seguidas do declínio da URSS e seus satélites. Sem essa ênfase política “recuperadora”, que se esgotou nos anos 1970, o que ainda pode ser planejado é um processo adaptativo inteiramente diverso. Essa dificuldade suplementar – de fato, uma barreira objetiva – é então idealizada como a nova qualidade positiva do “socialismo chinês”. A base desse pequeno “equívoco” não é outra senão a subordinação da reflexão teórica ao imediato e ao princípio da vontade abstrata, sem “lastro” na realidade. A cultura de simulação pós-moderna, que encontra sua tradução econômica nas teorias “dessubstancializadas” do dinheiro, tem assim, desdobramentos também na política em geral, que se torna ela própria um tipo de simulação.

VI

Outro aspecto da cultura de simulação atual é o modo cada vez mais arbitrário com que as facções de esquerda já de fato “pós-políticas” lidam com a história e com a sua própria “condição”. Isso vale tanto para os novos “realistas” de mercado do que restou do marxismo, quanto para os sobreviventes do antigo radicalismo de esquerda. Os “realistas”, voltados agora para a China, podem apenas embaralhar antigas noções “desenvolvimentistas” fora do seu contexto com a atitude pragmática pró-mercado que dá o tom na política chinesa desde o início das grandes reformas e que trocou a retórica da luta de classes na “transição” socialista pelo reestabelecimento da “disciplina na fábrica” e das “palavras de ordem produtivistas”.9 O primado da política, que se achava “relativamente autônomo” no contexto da modernização recuperadora, não só perde essa autonomia face aos processos econômicos, mas tem ainda de se adaptar à lógica da ficcionalização (capitalização das terras, ampliação de créditos, investimentos improdutivos etc.). É precisamente aqui, transformando-se a necessidade em virtude, que se proclama a reinvenção do socialismo como superação consciente do fetiche da mercadoria em uma economia de “projetos” e orientada para o “valor de uso”. Quanto mais a política é esvaziada e adaptada às pressões objetivas da socialização capitalista, mais ela é celebrada como um poder demiúrgico capaz de criar ou redefinir as condições econômicas de acordo com a sua “vontade”. Essa noção em si mesma descolada do tempo presente, busca refúgio nas analogias históricas superficiais da teoria do sistema-mundo e na suposta oposição entre mercado e capitalismo também adotada por Arrighi: “ao ‘fabricar o mercado’ o Partido Comunista da China criou as condições para se reinventar e, mesmo, reinventar o socialismo. Essa reinvenção do socialismo na China só foi possível pelo reencontro da China com instituições milenares que levaram o país a ser o ‘centro do mundo’ durante séculos”.10

Essa fórmula propõe uma convergência extemporânea da abordagem do problema do desenvolvimento periférico tal como era colocado nos anos 1950-1960 com a teoria de Arrighi sobre o deslocamento do centro da acumulação mundial. Arrighi, porém, falha fundamentalmente neste ponto, pois sua análise da nova divisão internacional da produção não considera a produtividade do capital (ou da produção da massa de valor), que é central para a caracterização da acumulação. Sua noção de “acumulação” é, portanto, totalmente enganosa.11 O caso de Arrighi é exemplar: ele não viu qualquer relação entre a expansão do capital fictício e o crescimento industrial no Leste da Ásia. Ao contrário, Arrighi pensava que aquela parte do globo correspondia a uma “exceção” em termos de investimentos produtivos – sempre tomando o conceito de “produtividade” em sentido apenas “concretista”, “material”. Esse processo foi interpretado como uma nova era de “expansão material”, ou seja, como ampliação da infraestrutura e da circulação de mercadorias, uma ideia compatível com a sua definição limitada do capitalismo como um poder político concentrador que se funde com os processos econômicos, mas permanece basicamente como um contraponto “político-estatal” da economia de mercado. Toda essa construção é pensada a partir de uma abordagem de “longa duração” que entende o funcionamento do sistema-mundo moderno como um processo cíclico. Os processos de crise e de expansão, seja da esfera financeira ou do contexto “material”, bem como a formação dos poderes hegemônicos, são interpretados por meio de padrões de repetição histórica a partir dos quais não pode haver qualquer limite interno da acumulação de capital, mas apenas fases ou períodos de transição nos quais se instaura uma instabilidade momentânea e que preparam o caminho da renovação a partir de novas lideranças.12

Claro que nessa “perda da história”, em que as categorias básicas do capitalismo são esvaziadas em nome de uma naturalização do mercado, já não há possibilidade de se compreender a especificidade da crise sistêmica e nem o papel dos “circuitos deficitários” na reprodução cambaleante da economia mundial. Mais ainda: ela oferece a oportunidade de reconstruir o conceito de socialismo em termos puramente afirmativos, pois a ascensão chinesa estaria enraizada na “tradição mais antiga do desenvolvimento não capitalista baseada no mercado” (ARRIGHI, 1996, p.359). O socialismo, definido inicialmente como poder de Estado, pode então ser redefinido pelo novo realismo como “socialismo de mercado”. Então, resta apenas o elogio da incorporação em larga escala das massas pobres do campo à produção industrial e à vida urbana, isto é, da transformação das massas agrárias em força de trabalho e da socialização pelo valor, emprestando a essas formas um caráter socialista puramente idealizado no mesmo momento em que elas se deparam com limites objetivos intransponíveis.

Esse modo atrapalhado de lidar com a história e com as categorias do sistema do capital, aliado à confusão ideológica típica das épocas de crise, é apoiado pelos últimos “radicais” marxistas, que partem, ainda que indiretamente, em defesa do “socialismo de mercado” contra qualquer tentativa de recolocar o problema do objetivo socialista para além das categorias do capitalismo em crise. No fundo, eles não podem pensar as mudanças estruturais do capitalismo e tem de recolocar sempre as mesmas condições fundamentais, como se a história fosse um “eterno retorno do mesmo”, apenas para legitimar – em um plano ideológico destituído de conteúdo – uma posição “política” inteiramente abstrata. Com o esgotamento do processo de modernização que alimentava o “ponto de vista operário”, esse radicalismo sem qualquer determinação há muito foi reduzido a uma subcultura nostálgica e “performática” – e também um nicho de mercado –, que quanto mais crê em si mesma mais se afasta da realidade do capitalismo atual. Daí que esse radicalismo duvidoso já não seja a expressão das lutas de classes, como no passado, nem possua uma conexão real com as novas lutas sociais que emergem com a crise. No plano teórico, não se trata mais de trazer para o plano da consciência uma “posição de classe” estabelecida objetivamente “em si”, como no marxismo tradicional, mas de criar uma classe “para si” por meio da ideologia; em vez da afirmação objetivista do comunismo não como ideia, mas como movimento real, afirma-se agora a ideia do comunismo (!) contra a realidade do movimento histórico. A posição “política” desse marxismo residual de aparência radical, ou da ideia comunista sem movimento comunista, permanece, portanto, limitada ao plano do discurso sobre as lutas sociais; um discurso que traça estratégias de poder imaginárias e esbraveja na mesinha das crianças contra as ideologias rivais enquanto o grande banquete na mesa dos realistas conduz a política na direção do mercado.

Ao tratar a defesa do “socialismo de mercado” chinês como um singelo “desvio de direita” e não como uma ruptura radical com os fundamentos da crítica de Marx ao capitalismo, o marxismo residual revela (mais uma vez e, provavelmente, a última) uma incompreensão das categorias dessa crítica. Não por acaso, suas posições sobre o socialismo podem apenas repisar momentos da reflexão marxista tradicional dos anos 1960, como no debate Sweezy-Bettelheim, em que as “relações de produção” ficam limitadas ao plano imediato da divisão do trabalho, da relação dos “quadros” e “técnicos” com a força de trabalho, sem que a sua forma (capitalista) seja considerada. Na melhor das hipóteses, a forma-mercadoria é colocada em um segundo plano como mera superestrutura jurídica ou como parte da circulação (mercado, preço etc.). O conceito de relação de produção capitalista permanece preso ao “concretismo”, ou seja, ao devir empírico do trabalho concreto nas unidades de produção. O marxismo tradicional, especialmente em sua vertente mais “politicista”, sempre se mostrou, portanto, completamente ignorante em relação ao problema da condição (negativa) de mercadoria da força de trabalho, da forma-valor das relações sociais ou do “modo de produção baseado no valor” (Marx).13 Seja como for, mesmo nesse plano imediato o marxismo residual e aparentemente radical se vê agora em uma posição profundamente desconfortável, não só porque já se desconectou de qualquer “movimento real”, mas porque essa retomada do debate clássico dos anos 1960-1970, mesmo em termos puramente ideológicos, teria de chegar à conclusão oposta, pois qualquer um dos critérios daquele debate, seja a “restauração do mercado” ou a restauração do poder de classe, só pode levar a uma caracterização da China atual como vanguarda do capitalismo mundial. Mesmo nos termos da habitual redução “concretista”, a posição pró-chinesa atual coloca a defesa do “socialismo de Estado” em uma contradição aberta com a denúncia das disparidades e hierarquias sociais, relações de gênero etc. que, no Ocidente, são mobilizadas (de modo igualmente reducionista) contra o capitalismo.

O paradoxo aqui é que a formação de uma fábrica mundial no gigante do “capitalismo asiático” serviu ao discurso ideológico aparentemente radical para recusar de modo errôneo as contradições da socialização capitalista em escala global, uma vez que ele permanece fixado em um quadro de referência de desenvolvimento nacional e sem explicar a diferença entre crescimento (local) em termos materiais e a crise da acumulação, que é global, e para a qual nem se possui um conceito. Esse discurso pode apenas repisar eternamente a contradição aparente entre uma “evidência empírica” de crescimento econômico local (já declinante) e a teoria da crise, sem nem mesmo entender qual é o problema subjacente. Por outro lado, a mesma ideologia que saúda o dinamismo da indústria chinesa, não atribui nenhum papel relevante à numerosa força de trabalho formada em meio à ascensão industrial chinesa, ou seja, as “contradições de classe” desvanecem (de um modo que seria denunciado nos debates do passado como o mais miserável “economicismo”) quando se trata de olhar os conflitos sociais internos.

De qualquer forma, seria falso interpretar estes últimos de um modo que apenas reproduz os padrões do passado já superado. Para traçar um quadro adequado dos novos conflitos sociais em tempos de fragmentação do capitalismo é preciso recolocar, a partir das condições de uma crise mundial qualitativamente diferente das anteriores (que eram crises de afirmação da modernização e também não podiam ser imediatamente globais em termos de reprodução social capitalista ou em termos materiais), a questão das desigualdades e hierarquias, das identidades e do agir coletivo, bem como o problema central da integração-exclusão pela sociedade do trabalho. O foco, contudo, já não pode ser o conflito sociológico redutor, que permanece preso de modo fantasmagórico a momentos e identidades de etapas anteriores do capitalismo. Esse novo quadro dos conflitos sociais e lutas de interesse/reconhecimento têm de partir, em linhas gerais, não mais da antiga centralidade do trabalho – e de um (grande) sujeito coletivo derivado dessa centralidade –, mas da oposição fundamental entre as necessidades concretas e a lógica abstrata restritiva da mercadoria, que precisa se concretizar em diferentes lutas sociais concretas contra a lógica da abstração capitalista que impede o acesso das pessoas à riqueza material.14 Para tanto, é fundamental estabelecer uma crítica teórica dos conceitos de base do capitalismo e uma redefinição do objetivo socialista para além das limitações do marxismo e da sua ideologia anacrônica da modernização, sem o que, as lutas sociais teriam de permanecer defensivas e limitadas a algum tipo de sonho de integração na sociedade capitalista que já não é mais capaz de integrar em grande escala.

Trata-se, portanto, da exigência de mediação entre as manifestações diretas e “empíricas” das relações de poder/exploração e hierarquias sociais com as formas abstratas de dominação do capital. Isso implica, de um lado, uma crítica da racionalidade capitalista geral enquanto processo fetichista que traz em si a sua própria finalidade;15 de outro, implica a superação do ponto de vista “concretista” no qual foi formada a mentalidade da esquerda ocidental, especialmente a partir da década de 1970. Esse ponto de vista não é capaz de abordar corretamente nem os fundamentos da dominação do capital em geral nem os mecanismos cada vez mais abstratos de adiamento da crise que estão na base da atual economia de bolhas e de simulação financeira.

O ponto de vista que delineamos neste texto é que, em vez de aceitar a “dessubstancialização” do capital como um fato “natural” e diluí-la nas relações de poder de um capitalismo apresentado como o eterno retorno do mesmo, seria preciso inverter essa lógica e mostrar a perda de substância do capital como fundamento da crise e da fragmentação do capitalismo atual. Ao colocar esse problema, consideramos que a crise precisa ser vista também em termos de uma “cultura da simulação” que se torna parte da reprodução do capital. A assim chamada condição pós-moderna reflete apenas a atual falta de conceitos para uma caracterização adequada do esgotamento do processo de modernização e dos seus desdobramentos cultural-simbólicos. Isso é completamente diferente de criticar o pós-modernismo como ideologia, sem buscar o nexo entre a ideologia e sua condição social real. Outro aspecto da nossa posição diz respeito à compreensão do papel desempenhado pelo “socialismo real” e da sua progressiva “desrealização”, já no século passado. Isso de modo algum se confunde com uma exigência abstrata de superação imediata do capitalismo, sem consideração pela tensão permanente entre imanência e transcendência, integração e “desvinculação”, teoria e prática etc. – temas tratados abundantemente em mais de três décadas de desenvolvimento da crítica do valor.  O que está em questão é, em primeiro lugar, uma análise em perspectiva histórica que aponta precisamente o fato de que tal superação não era possível no estágio até então alcançado pelas forças produtivas sociais; em segundo lugar, nossa posição tenta lançar luz sobre a diferença entre processos de modernização recuperadora, dentro dos limites de economias nacionais semi-rurais, e o processo atual de administração da crise de um capitalismo “maduro” cuja tendência geral de declínio se tornou imediatamente global. A questão de saber em que medida é possível pensar uma superação no contexto atual do capitalismo de crise é algo que diz respeito, em primeiro lugar, à teoria, que precisa colocar abertamente o problema, confrontando a ideia de que o capitalismo pode prosseguir eternamente a sua marcha, e que já nem precisa de fundamentos objetivos para tal, bastando a “vontade” e o “poder de disposição”.

Nada disso pode ser apreendido por um suposto realismo que declara “utópica” qualquer crítica das categorias fundamentais do capitalismo e que pensa a redefinição do objetivo socialista como uma “transição” pelo (e para) o mercado supostamente não capitalista – e além do mais, conduzida por um aparato que assimila todas as funções do management empresarial; nem tampouco por um radicalismo superficial, que se orienta sobretudo por visões nostálgicas do socialismo e pode apenas revisitar velhas ideias de uma crítica reducionista concentrada nas formas imediatas do “exercício do poder”. Ambas as orientações são completamente inadequadas para uma compreensão do processamento da crise atual. Por isso, elas encontram um ponto de apoio comum na denúncia vazia de um socialismo para além da forma-mercadoria a ser prontamente instaurado, sem qualquer mediação ou determinação. Trata-se de um pobre espantalho, uma fuga em relação ao conjunto de problemas concretos – tanto históricos quanto atuais – levantados pela teoria da crise. A primeira dessas mediações de que não se pode fugir é justamente o estado geral da economia mundial, no qual a nossa posição se concentrou.

A questão mais imediata que se coloca hoje é, portanto, a de saber qual é de fato o caráter das intervenções do Estado chinês: se estamos diante de um conjunto de medidas de emergência para desarmar a armadilha da bolha imobiliária interna formada na conjuntura pós-2008, dentro de um contexto geral de retorno precário à regulação, ou se tais medidas avançam na construção do socialismo por meio do mercado e da exportação de capitais (sic). Os pacotes de salvamento das instituições financeiras reproduzem uma tendência global que se verifica também no Ocidente ou são uma inflexão revolucionária orientada para a “expropriação dos capitalistas”? Em outras palavras: qual o sentido histórico geral das tendências da economia global e qual o papel da China em particular? Avanço do socialismo em meio ao deslocamento do centro da acumulação para o Oriente ou recrudescimento do estatismo como momento da administração da crise global da acumulação?

Do nosso ponto de vista, o prognóstico é que as tendências de retorno do protagonismo estatal e da regulação funcionam apenas como mecanismos de adiamento da crise. No caso da China, a contenção das tendências especulativas que podem levar a riscos sistêmicos também representam contraditoriamente uma limitação brutal dos meios de que o país dispõe para financiar o seu crescimento. Essa regulação tende, portanto, a fazer com que diminua a capacidade de absorção de força de trabalho interna e de integração social. Nesse caso, não estaríamos vivenciando um ponto de transição e de deslocamento do centro da acumulação capitalista. Em vez disso, a China, cujo crescimento experimentado no passado recente dependia de um ponto de partida muito inferior aos padrões do mercado mundial, bem como da integração no circuito deficitário, estaria agora experimentando os efeitos de um novo estágio do processo de crise global que torna cada vez mais difícil reproduzir as ondas de crescimento das últimas décadas.


Notas
1 Trata-se do ensaio bem conhecido de David Harvey, A condição pós-moderna, de 1989, no qual a pós-modernidade é descrita não tanto como ideologia afirmativa (os diversos “pós-modernismos”), mas fundamentalmente como uma “condição” social geral do capitalismo pós-fordista. Ao mesmo tempo, Harvey estabelece uma ligação dessa condição pós-moderna com um pretenso “regime de acumulação flexível” e não vê nenhum limite para a expansão da acumulação capitalista em termos globais.
2 Para uma interpretação histórica do sentido do “socialismo real” como uma modernização recuperadora e seus desdobramentos, ver KURZ, Robert. O colapso da modernização. Da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994 [1991].
3 Em mais de um aspecto, as sociedades do Leste se aproximavam do “comunismo de caserna” (Kasernenkommunismus) criticado por Marx, em que as forças produtivas estão pouco amadurecidas e a organização da produção obstrui o desenvolvimento multilateral dos indivíduos. O fato de que esse socialismo se desse em condições extremas de “atraso”, em economias isoladas, não como uma superação das relações de valor-mercadoria-dinheiro, mas como a sua imposição histórica, porém, não era nem mesmo imaginável a partir da teoria de Marx.
4 As formulações de Lênin a respeito do “capitalismo de Estado” são exemplares a este respeito. A sociedade pós-revolucionária era interpretada como uma combinação de diferentes formas de produção e pretendia-se instrumentalizar a sua “parte” estatal-capitalista na transição, imaginando-a como um elo entre a pequena produção e o socialismo. Fica evidenciado, assim, o conceito mercantil-circulacionista de capitalismo, no qual o capitalismo “a liberdade de comerciar [o excedente] significa inevitavelmente liberdade para desenvolver o capitalismo”, enquanto a “fábrica socialista” ainda não pode oferecer produtos em troca do excedente.  Ver: LÊNIN, V.I “Teses para o III Congresso da IC”, em Lenin no poder1917-1923Textos pós-revolução. Porto Alegre: LPM, 1979, p. 231.
5 Os aspectos principais dessa crítica aparecem de um modo resumido no debate entre os economistas Paul Sweezy e Charles Bettelheim, nos anos 1960. Aqui, no entanto, o primeiro tangencia o problema da reprodução capitalista do ponto de vista da circulação, enquanto o segundo apenas reduz o problema das relações de produção à pura vontade política. Para além dessa crítica superficial orientada pela circulação ou pela absolutização do então já ilusório “primado da política”, ambas as posições partem de uma ideia de “restauração” capitalista que ignora o sentido histórico fundamental da Revolução de 1917 e seus desdobramentos.
6 Em O colapso da modernização, Kurz analisa em detalhe as contradições internas que levaram ao processo de estagnação e, em seguida, ao colapso dos mercados planejados na antiga URSS e no bloco do Leste. Essa análise foi antecipada, já em 1984, no texto pioneiro Objetivo socialista e novo movimento operário: “Após alcançar a industrialização, para a qual ela foi realmente funcional, a burocracia capitalista estatal precisava se tornar completamente disfuncional na tarefa de ingressar competitivamente no mercado mundial e iniciar um processo de desenvolvimento intensivo (produção de mais-valia relativa) nas condições do mercado mundial […] A grave crise de todo o bloco do Leste como um capitalismo conduzido, por assim dizer, com o freio de mão puxado, deve evoluir inexoravelmente e é provável que, além disso, leve a graves colisões sociais. Através do mercado mundial, a crise do capitalismo do Leste funde-se com a do Ocidente, que corre sem freios para o precipício de um colapso da lei do valor”.
7 Assim, por exemplo, o comunista-nacionalista G. Ziugánov afirmava em meados dos anos 1990: “a rejeição de ambições geopolíticas exorbitantes, que oneravam a economia e que muitas vezes foram ditadas não pelos interesses nacionais, estatais ou históricos, mas sim, pelas pretensões ideológicas da vitória rápida do ‘socialismo mundial’, e a passagem a uma ativa reorientação das forças armadas no sentido da oposição prioritária à ameaças regionais à nossa segurança” (ZIUGÁNOV, Guennádiy. URSS-Rússia: ontem, hoje, amanhã.  DF: Editora ALVA, 1996. p. 128).
8 Tratar-se-ia, então, apenas de recolocar as velhas ideias no seu devido lugar para retomar a “marcha para o socialismo” interrompida pelo triunfo da ideologia rival no final dos anos 1980.
9 Ver BETTELHEIM, Charles. A China depois de Mao. Lisboa: Edições 70, 1978.
10 Ver: JABBOUR, Elias. A nova economia do projetamento é o socialismo 4.0Brasil Debate, 2019.
11 Isso se deve ao fato de Arrighi não desenvolver um conceito adequado de “capital” ou de produção capitalista. Sua argumentação precisa permanecer fenomenologicamente limitada aos processos de “crescimento” em termos técnico-materiais. O crescimento em escala inédita da estrutura de crédito e da especulação é interpretado, por sua vez, como um fenômeno cíclico quase “natural”, sem que se possa estabelecer a conexão entre inflacionamento do “capital fictício” e esvaziamento dos setores produtivos. Como a noção de produção capitalista permanece restrita a um plano limitado e desvinculado da problemática fundamental do “valor”, essa teoria não é nem mesmo capaz de se colocar o problema do crescimento econômico sem expansão da produção de valor. O crescimento baseado no endividamento aparece então como tão substancial – em termos “concretistas” – quanto o da fase ascendente da economia mundial.
12 A argumentação mais recente de Arrighi a respeito do novo papel de liderança exercido pela China, no entanto, é tão ampla que ultrapassa a própria afirmação teórica dos “longos séculos”. Tratar-se-ia, na verdade, de uma reconfiguração mundial cíclica milenar (!), que retoma condições anteriores em um novo patamar civilizacional, tecnológico e econômico. Se o Japão já indicava essa virada da economia mundial para o Oriente, a abertura econômica da China, inicialmente bloqueada pela geopolítica da Guerra Fria, teria feito com que os capitais chineses ultramarinos retornassem para explorar todo o potencial do gigante oriental. Típico dessa visão cíclica que já não tem nenhum referencial histórico-concreto das condições capitalistas atuais, a ascensão da China marcaria então a “fase da volta da China ao centro da economia regional” (ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX. Rio de Janeiro/São Paulo: Contraponto/Unesp, 1996, p. 355) e a economia asiática ao centro do mundo, lugar em que sempre esteve, pois o “capitalismo histórico” “herdou o antiquíssimo problema do desequilíbrio estrutural no comércio entre o Oriente e o Ocidente […], esse desequilíbrio remontava aos tempos romanos” (!) (p. 257-258).
13 Sem o saber, a redução do conceito de relações de produção a uma dimensão empírica (positiva) no plano das relações de poder imediatas mostra seu parentesco inequívoco com as teorias “pós-modernas” centradas no exercício do poder, como atesta o flerte entre Foucault e os maoístas franceses em 1968.
14 A “centralidade do trabalho”, que não desaparece, torna-se então um elemento puramente negativo da sociedade atual.
15 A crítica do fetichismo do capital não é, portanto, uma crítica da ideologia e sim uma descrição da objetividade fantasmagórica do capital. Historicamente, o marxismo tradicional não soube o que fazer com as formulações de Marx que apontam nessa direção, pois ele tinha essencialmente uma visão afirmativa da modernização capitalista. Por outro lado, isso não tem nada a ver com a recusa abstrata da racionalidade ocidental etc., tal como no atual pout pourri da condição pós-moderna inconsciente de si mesma: aqui se junta à dessubstancialização, cultura da simulação, redução do social ao discurso e à ideologia, empirismo raso e manipulação descontextualizada de referências históricas etc., a crítica aparente da racionalidade ocidental manifestada reiteradamente por Elias Jabbour. Essa emulação de um estilo proverbial chinês que, ao mesmo tempo, nega toda reflexão realmente crítica sobre a dialética de racionalidade-irracionalidade da constituição fetichista do capital, dá um toque final multiculturalista ao debate da esquerda “radical”.


Referências bibliográficas
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX. Rio de Janeiro/São Paulo: Contraponto/Unesp, 1996.
BETTELHEIM, Charles. A China depois de Mao. Lisboa: Edições 70, 1978.
KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
LÊNIN, V.I “Teses para o III Congresso da IC”, em Lenin no poder1917-1923Textos pós-revolução. Porto Alegre: LPM, 1979. ZIUGÁNOV, Guennádiy. URSS-Rússia: ontem, hoje, amanhã. DF: Editora ALVA, 1996.

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Maurilio Lima Botelho é professor de geografia urbana da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), e autor dos artigos “Crise urbana no Rio de Janeiro: favelização e empreendedorismo dos pobres” que integra o livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social, organizado por Pedro Rocha de Oliveira e Felipe Brito (Boitempo, 2013), “Guerra aos ‘vagabundos’: sobre os fundamentos sociais da militarização em curso”, publicado na revista Margem Esquerda #30 e coautor, com Marcos Barreira, do artigo “’Capitalismo asiático’ e crise global”, da Margem Esquerda #37. Também é organizador do dossiê “Crítica do valor”, da Margem Esquerda #35. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

Marcos Barreira é professor de geografia e Doutor em Psicologia Social pela UERJ. É pesquisador e membro do conselho diretor da Agência de Notícias das Favelas (ANF). Pela Boitempo, colaborou no livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social, organizado por Pedro Rocha de Oliveira e Felipe Brito (Boitempo, 2013) e é coautor, com Maurilio Lima Botelho, do artigo “’Capitalismo asiático’ e crise global”, da Margem Esquerda #37. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

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