terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Cobras, lagartos e os pontos centrais do programa de esquerda.

 Elenira Vilela: Cobras, lagartos e os pontos centrais do programa da esquerda

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Elenira Vilela: Cobras, lagartos e os pontos centrais do programa da esquerda


18/01/2022 - 14h27

Cobras e lagartos

Devemos ocupar os espaços com os pontos centrais do programa da esquerda e debatê-los com a população em todos os lugares

Por Elenira Vilela*, em A Terra é Redonda

O debate no campo da esquerda tem sido praticamente monopolizado por alguns temas e eu pouco me manifestei sobre eles.

Tenho sido cobrada por muitos e muitas militantes e dirigentes, então entendo que no papel que ocupo devo alguns esclarecimentos.

A primeira questão é: por que não escrevi mil textos e (quase) não entrei nas tretas sobre esses temas?

Ou porque acho que eles são secundários e já tem muita gente se posicionando ou porque penso que mesmo sendo importante o que supostamente combate determinada posição penso que acaba por fortalecê-la pelo método de enfrentamento.

Então, não se sinta enganada(o), mas primeiro eu vou falar do que considero deveria estar tendo todo o peso nos nossos debates e depois vou falar pontualmente de cada caso desse.

Não, não pule a leitura direto pra lá! O que é importante é importante e quantidade gera qualidade, se a gente só fala de um assunto a gente transforma ele em importante mesmo que a gente sempre comece falando que não é o centro ou qualquer outra tergiversação.

Então dedique alguns instantes à leitura disso, antes de chegar lá nas polêmicas do momento.

O programa da esquerda

Considero que toda a militância de esquerda deve dar importância a debater insistentemente o programa que deve ser defendido por todas as candidaturas de esquerda. Não, não acho que devemos esperar Lula, a Fundação Perseu Abramo, a direção do partido ou quer que seja abrir essa pauta, esperar sermos convidados a uma reunião e aí darmos nossa opinião.

Penso que devemos ocupar os debates com os pontos centrais do programa e debatê-los com a população em todos os lugares.

Temos que fazer a quantidade de manifestações públicas tornar central o nosso programa: seja na fala de militantes, dirigentes, parlamentares, grupos políticos sobre o fato de que o governo e as representações parlamentares em todos os seus aspectos, desde a escolha das(os) candidatas(os) e mesmo da formação de candidaturas coletivas, passando pelos debates e eventos organizados (sejam presenciais ou virtuais), os posicionamentos públicos em entrevistas ou materiais divulgados e nos debates com comunidades em seus territórios, bases sindicais, segmentos sociais organizados (especialmente os que têm tido maior capacidade de mobilização: movimentos feministas, movimentos negros, movimentos periféricos, movimentos sindicais das diversas categorias: especialmente educação, serviço público, entregadores antifascistas, saúde, petroleiros e transporte, entre outros; movimentos das torcidas organizadas de futebol antifascistas e de esquerda, ocupações e movimentos por moradia, movimentos de pessoas com deficiência, movimentos de pessoas em situação de rua, movimentos de solidariedade a pessoas pela fome e contra a violência, entre outros), tudo que se fala tem que abordar o nosso programa.

E qual é o nosso programa?

Um programa de governo de reversão profunda das políticas neoliberais e avanços democráticos e populares como:

(1) a revogação do teto de gastos dos direitos (EC 95); das reformas trabalhistas e previdenciária; da lei das terceirizações das atividades fim e avanço no sentido do novo Estatuto do Mundo do Trabalho proposto pelas centrais Sindicais; da autonomia do Banco Central; do enfraquecimento da legislação de preservação ambiental da liberação de agrotóxicos, da facilitação da mineração, do desmatamento, da grilagem, de criação e manutenção de unidades de conservação e de demarcação e proteção de terras indígenas e quilombolas e de proteção de povos e atividades tradicionais;

(2) de reversão e anulação, interrupção de privatizações em qualquer âmbito com a revogação do Plano de Parcerias e Investimentos (lei 13.334/2016);

(3) da revogação da Reforma do Ensino Médio e das mudanças no ENEM, no PROUNI, no FIES;

(4) forte reversão das prioridades orçamentárias, retomando investimento em educação, saúde, moradia, assistência social, cultura e todas as áreas que tem a ver com direitos sociais e trabalhistas, com a soberania nacional e política econômica voltada ao povo e não à facilitação do aumento das taxas de acumulação do grande capital financeiro, latifundiário, mineiro, de igrejas fundamentalistas, da indústria armamentista e das grandes empresas de mídia burguesa;

(5) alteração substancial da política econômica, com reversão da tendência de alta das taxas de juros básicos, da mudança substancial das política cambial (que exige a revogação da política cambial recém sancionada por Bolsonaro no apagar das luzes que entrega ao BC autônomo e ocupado pelos agentes do mercado), da retomada do investimento na economia, especialmente na infraestrutura, gerando empregos direta e indiretamente e investindo na reindustrialização e no desenvolvimento, incluindo volumes altos de investimento na ciência, tecnologia e inovação, incluindo busca ativa pelo retorno dos cérebros que evadiram do país desde o golpe viabilizado pela cobrança de impostos sobre dividendos e grandes fortunas e heranças, incluído a auditoria da dívida pública;

(6) retomada da política externa altiva e ativa com prioridade para as relações sul sul, fortalecimento dos BRICS e CELAC e defesa da paz e autonomia dos povos, com uma profunda reconstrução dos instrumentos de defesa da soberania nacional, incluindo revogação de legislações que facilitaram enormemente a compra de terras por pessoas e empresas estrangeiras, retomada dos instrumentos de defesa do espaço aéreo;

(7) defesa de um governo radicalmente (no sentido fundante dessa palavra de que busca enfrentar os problemas a partir de suas raízes históricas e estruturais) antirracista, feminista, anticapacitista, antiLGBTfóbico, contra a toda a forma de opressão e discriminação e promotor da igualdade material por meio de políticas de equidade com a defesa de indígenas e quilombolas. Um governo que retome e amplie as medidas na busca por Memória, Verdade, Justiça e reparação, em relação aos crimes de Estado nas ditaduras e ao longo da colonização e escravidão;

(8) alteração na regulação do funcionamento das forças armadas e forças internas de segurança, mantendo-as longe da política, com a mudança da formação para uma que respeite os direitos humanos, que extermine a ideologia do inimigo interno e não permita que o povo ou qualquer segmento dele seja tratado como inimigo, fim da xenofobia, do elitismo e do anticomunismo nessas forças e promoção de segurança pública por meio de inteligência, enfrentamento aos crimes financeiros que sustentam o crime organizado e desmilitarização e unificação (ou pelo menos articulação) das polícias e fim da guerra às drogas como política de extermínio da população negra para uma política de saúde pública em relação ao consumo e de legalização e controle sobre a venda;

(9) regulamentação constitucional dos meios de comunicação privada e recriação de todos os órgãos extintos ou que sofreram intervenção como a EBC, a rádio MEC, a Cinemateca, o Arquivo Nacional, a Voz do Brasil e a Rede Brasil para a retomada de seu papel soberano, de democratização da comunicação e preservação da história nacional, além da retomada da prioridade ao fomento e regulamentação da comunicação popular, como de rádios e jornais comunitários, veículos de mídia independente como portais e canais populares e de organizações da classe trabalhadora e dos movimentos populares;

(10) enfrentamento com urgência da fome (retomando e ampliando o Bolsa Família e a política de estoques reguladores de alimentos) e dos efeitos da pandemia e do golpe, aí incluindo atendimentos especiais de saúde especialmente aos sequelados pela COVID, pela fome e por transtornos emocionais decorrentes da desestruturação social, do desemprego e dos longos períodos de isolamento (aí incluídas as sequelas da violência doméstica) e assistência social (retomada da construção e fortalecimento cada vez maior do SUAS) e busca ativa e investimento para recuperar a evasão e as fragilidades na formação da educação formal durante a pandemia por falta de condições de trabalho às profissionais da educação e de acesso a estudantes de todo o país por falta de condições de acessar aulas e materiais do ensino não presencial;

(11) Prioridade absoluta às crianças brasileiras reconhecidas como sujeitos de direitos e à maternidade na sua contribuição social, com investimentos pujantes em todas as políticas públicas que devem beneficiá-las e protegê-las, além de promover seu desenvolvimento pleno e a reparação das sequelas que os ataques à infância promovidos desde o golpe deixaram.

O mesmo com a população idosa do país; defesa radical da laicidade do Estado, com enfrentamento à credonormatividade, com o fim dos privilégios a determinadas denominações religiosas que tem sido aparelhadas como verdadeiros mercadores da fé enriquecendo uns poucos e promovendo ideologias antipopulares, assim como a defesa radical da tolerância religiosa punindo qualquer manifestação de intolerância e discriminação religiosa especialmente contra religiões dos povos originários e de matriz afro, mas também contra a islamofobia e qualquer outra forma de opressão por meio da imposição de valores religiosos de determinados grupos ao conjunto da população;

(12) mudança da política de tarifação pública, especialmente da energia elétrica e da Petrobrás, de maneira a desvincular dos preços internacionais, retomar a cadeia de produção e distribuição até o consumidor final de maneira a garantir o manejo deste setor tão estratégico e permitindo enfrentar uma das maiores causas da inflação galopante que vem indexando a economia nacional. Reestruturação do Estado com reorganização das careiras, reposição salarial, reabertura de concursos e ampliação de efetivo, fim das intervenções em universidades federais e nas atividades técnicas dos setores. Realização do Censo ampliado e melhorado.

Teoria e prática

Bom, vou parar por aqui porque quem sou eu pra escrever o programa completo, não é mesmo?

Mas alguns dirão: impossível! Esse é praticamente o programa da revolução e não temos força social pra bancar isso.

Bom, primeiro não há nada de revolucionário nessa lista. Ninguém está sendo expropriado de seus meios de produção, nenhuma tomada do Estado pela classe trabalhadora por armas, nenhum planejamento completo da economia e da vida social, nada de fim da propriedade privada, nem mesmo dos meios de produção, nadinha.

Bem longe disso. Absolutamente tudo é nos marcos da social democracia capitalista com menores níveis de exploração e opressão.

Segundo, é verdade que não temos correlação de forças para aprovar vários pontos desse programa nem mesmo no âmbito do PT e maiores dificuldades para aprová-lo na sociedade.

Mas qual é nossa obrigação? Tensionar de maneira responsável mas contundente a que o programa seja o mais avançado possível e deixar claro que o movimento social organizado e a classe trabalhadora vai lutar por ele, o que for para o programa de governo e vencer, ótimo!

Se ganharmos, o que for implementado como política de governo: melhor ainda! O que ficar fora será objeto da disputa social, das lutas de rua, da pressão nas conferências e nos diversos mecanismos de participação política e de greve e paralisações. A guerra contra a burguesia não terminou, não terminará se elegermos Lula e mesmo que metade do Congresso Nacional seja do PT, do PSOL e demais partidos de esquerda e centro-esquerda…

A gente sabe disso na teoria desde sempre. E na prática também, basta olhar para todos os exemplos na história do Brasil, da América Latina e do mundo. Como conta a anedota do filme Democracia em vertigem quando algum político encontra um mega empresário da indústria de construção civil e pergunta “Ué, você por aqui?” ao que o empresário responde “Nós estamos sempre por aqui, vocês é que vem e vão”. A burguesia já está pressionando o futuro governo Lula e temos que fazer o mesmo.

Mas assim vamos acabar prejudicando a candidatura?

Bom, temos que tomar todos os cuidados pra que isso não aconteça, mas isso não impõe uma aceitação calada de qualquer atitude do Lula, da DN ou da coordenação nacional da campanha que virá a se formar.

Por isso escrevi o texto sobre a importância dos setoriais, por exemplo.

É preciso estabelecer uma ligação mais profunda com os diversos setores sociais, como defendem o Mano Brown ou o Galo e essa ligação também vai ter resultados eleitorais e resultados na defesa da continuidade e realizações do futuro governo.

Então ela é essencial, pro antes, pro durante e pro pós eleições, tanto pra que Lula possa concorrer, para que ganhe e com uma base parlamentar grande, que tome posse, que governe e que faça o governo que queremos e defendemos.

Além dessa relação com a ampliação da base social de militantes e simpatizantes atuantes, outro aspecto é enfatizar cada vez mais que dirigentes, lideranças, pessoas públicas e candidatos nossos fizerem propostas condizentes, próximas ou de afirmação desse programa precisamos amplificar, nas redes, nos debates, nos meios de comunicação a que tivermos acesso, nos debates partidários, setoriais e na nossa atuação de base.

Quando alguém fala algo que discordamos muito costumamos dar um super destaque, criticar muito, fazer textões em resposta. Quando fala algo que a gente concorda tratamos como “não faz mais que a obrigação”.

O efeito disso é que é muito mais fácil saber o que somos contra do que o que somos a favor, mesmo entre os nossos.

Só que isso é contraproducente no debate com a base: precisamos dedicar mais tempo a valorizar o que concordamos para aproximar as pessoas e depois fazer o debate sobre o que discordamos já com perspectivas de luta que seja alterado e incorporado ou avance naquele sentido.

Mas para isso é preciso colocar a racionalidade antes do fígado.

Eu não estou dizendo que não podemos criticar a postura de um dirigente, quem me conhece sabe que eu faço isso e muito.

Mas eu não faço só isso. E não faço principalmente isso, especialmente em contextos amplos externos, mas nem internamente. E se fiz (e eu sei que fiz) estava errada.

Se você vir posicionamentos do Lula pela revogação da Reforma Trabalhista, de um (a) dirigente pela descriminalização e legalização do aborto ou de um(a) governador (a) pela desmilitarização da polícia, divulgue bastante, debata com a base o porquê de ser fundamental e então porque é fundamental (re) eleger aquela pessoa ou alguém que ela apoie.

Além de toda essa mobilização em torno do programa e da construção de candidaturas condizentes com ele (sim, é óbvio que isso vai chegar no Alckmin, mas lê só mais um pouquinho), temos que pensar e organizar a nossa atuação nesse ano eleitoral.

Primeiro essa atuação não pode girar somente em torno de atividades eleitorais, nem mesmo pra você que acha que tudo gira em torno de eleição. Como eu disse anteriormente o processo será muito difícil e a mudança na correlação de força na sociedade não acontece apenas, nem mesmo principalmente, com votos.

É preciso manter todo mundo militando e mobilizado, fazendo luta, pressionando, barrando as maldades do projeto do golpe que o governo está aprovando e isso significa que ainda vai ter mobilização Fora Bolsonaro e precisam ser cada vez maiores, que devemos fazer greves, mobilizações específicas contra a boiada passando, luta por manter serviços e criar ou fortalecer organizações de base (territoriais, temáticas ou por categorias ou locais de trabalho) que servirão de ponto de apoio para criação de comitês em todos os cantos do país para eleger Lula e deputadas(os) federais, senadoras (es), governadoras (es) e deputadas (os) estaduais.

Sobre isso a terceira tarefa: faça campanha para deputada(o) federal tanto quanto faça pra Lula.

E sem essa de campanha pra legenda, porque infelizmente brasileiro, em sua maioria, não é politizado o suficiente pra votar em partido, é preciso não deixar a pessoa votar naquele que o filho ou a vizinha dizem que é gente boa da região e convencer as pessoas a votar em uma pessoa específica e se por algum motivo a pessoa rejeitar sua primeira opção, tenha mais duas do partido no bolso. Mas nunca ofereça três ou quatro ao mesmo tempo, isso não passa firmeza, parece que pra você tanto faz e voltamos ao indicado pela vizinha que é da região.

E agora o que você queria:

O debate conjuntural

Sobre a federação: sou a favor se for com o PCdoB porque eles precisam disso pra sobreviver e alguns pontos específicos têm que ficar muito acordados e assinados.

Sobre demais partidos, aí incluídos o PSOL e o PSB, não acredito que as necessidades por criar a federação superem as questões envolvidas nas demandas por cenários estaduais, então não acho que seja algo com o que se preocupar verdadeiramente.

As chances, por exemplo, de fechar com o PSB são quase nulas, visto que é praticamente impossível fechar acordos suficientes nas eleições estaduais de São Paulo e de Pernambuco, o que já é suficiente para que a federação não saia.

Eu sou contra mesmo que fosse possível, por vários motivos. Mas se tenho 98% de certeza que não vai chover, não levo guarda chuva. Principalmente quando vi que tem um monte de amigos carregando um.

Concordo com a maioria das pessoas que escreveu em contrário a essa construção de federação com o PSB, como o Julian Rodrigues.

Sobre Alckmin: não vou entrar no debate de quem é o autor, mas sim do porque avalio que prosperou, dois motivos:

(a) uma parte da direção nacional do PT e dos mais próximos da campanha Lula avaliam que tirar Alckmin da disputa de São Paulo contribuem e muito para eleger Haddad;

(b) a burguesia vê como forma de encaminhar o plano C deles para as eleições, conforme André Esteves, a saber: colocar a canga no provável governo Lula.

Apesar de achar que muitos esforços devam ser envidados para eleger Haddad governador, afinal ter o governo do maior estado da federação em PIB e em população tem peso enorme na correlação de forças na superestrutura e é determinante para muita coisa, inclusive pra ampliar significativamente a bancada de esquerda na Câmara, eu tenho muitas dúvidas que isso seria suficiente ou mesmo necessário, afinal a força da máquina tucana seguirá na mão de tucanos, mas a volatilidade dos votos está grande e pode fazer virar o vento em São Paulo.

Não acho esse argumento suficiente para aceitar o segundo motivo pelo qual essa história ganhou as manchetes; a burguesia quer colocar a canga no governo.

E ela vai fazer isso de qualquer forma: tentando manter o BC autônomo da vontade do povo e a seu serviço como está, pressionando por reformas como fez quando exigiu uma Carta ao povo brasileiro e depois logo no primeiro ano de governo Lula uma primeira reforma da previdência que retirou muitos direitos.

E mesmo sabendo que essa pressão vai rolar sempre, quanto mais longe do centro do governo estiver melhor, então não é aceitável alguém com o perfil do Alckmin na chapa.

A presença dele mobiliza menos voto a favor do que vai retirar, por dois motivos:

(a) quando alianças são feitas a primeira soma é de ônus e não de bônus e pouquíssimo da base de apoiadores do Alckmin virá com ele;

(b) vai desmobilizar não necessariamente votos, mas militância. Esse ano a eleição será uma guerra e precisaremos de toda a militância com sangue nos olhos e muito tesão para rebater o mar de mentiras que serão veiculadas pelo Telegram e assemelhados, para estar na rua consolidando a base e o programa, além da base parlamentar e o que se ganha lá se perde aqui muito mais, em um lugar que não podemos nos enfraquecer.

Nesse caso, confesso que acho que a discussão está andando com argumentos fracos de lado a lado e acho que a forma como vai se encaminhando tem significado, mesmo que a aliança não se consolide, muito mais como uma execução do plano de canga no nosso possível futuro governo, porque aceitamos a versão de que o jantar do grupo Prerrogativas foi armado pra esse encontro, o que é simplesmente falso, ou que o encontro dos dois era o fato mais importante do jantar, quando a arrecadação – que não foi pra homenagear Lula, mas para a campanha contra a fome e o evento é anual – e a fala da Coalizão Negra naquele espaço e para aquela plateia de homens brancos ricos ou com prestígio e porque divulgamos ridículas teorias conspiratórias de que Dilma não foi convidada, o que novamente é falso.

Lula pode conversar com Alckmin? Pode, principalmente quando é o França ou outra pessoa que demanda.

Ele vai conversar com a direita, com golpistas, com gente da burguesia? Vai. Eles que o estão procurando, porque eles não podem ignorá-lo mais e isso é ótima notícia. Problema seria se Lula desse prioridade ou pior ainda exclusividade a esse tipo de agenda.

Mas não, ele tem feito agenda com catadores, movimento negro, sindicalistas do serviço público e centrais sindicais, petroleiros, juventude, agricultores familiares e nessas agendas ele faz algo que poucos dirigentes e lideranças mesmo de esquerda fazem: ele escuta, presta atenção, não fica ali de corpo presente, olhando pro celular e preocupado que chegue logo sua vez de falar e poder sair.

Essa postura é fundamental e todo mundo precisa adotá-la. Aqui em Santa Catarina o pré-candidato ao governo só se reúne com dirigentes partidários de siglas de esquerda e centro (e mesmo de centro direita), quase todos homens brancos e velhos que provaram eleitoralmente que representam muito pouco da sociedade.

E isso é problema e infelizmente eu sei bem que não é um problema exclusivo de uma pessoa ou de um PT estadual.

Sobre Quáquá, Cantalice, identitarismo e ataques à Dilma e relativização do golpe. Bom Washington Luiz, que é o nome do Quáquá infelizmente é uma perda pessoal pra mim. Nos conhecemos há quase 30 anos, fizemos movimento estudantil juntos e já fomos muito próximos.

Eu reconheço o importante trabalho que ele fez na prefeitura de Maricá, com projetos emblemáticos e que são exemplo a ser seguido. Mas no debate interno e no debate da pauta das opressões vem mudando e pra pior há anos.

Ele cortou relações comigo quando um dia fez uma postagem dizendo que a “deputada fulana devia rodar bolsinha ao invés de perder seu tempo criticando-o na tribuna”, ou algo do tipo.

Não posso recuperar o texto literalmente porque na ocasião me bloqueou em todas as redes depois que eu debati que não podemos ser misóginos e machistas nem quando criticamos pessoas da direita.

A conversa evoluiu e ele me contou que a pessoa criticada em questão era um homem que inclusive respondia acusações de bater na própria mulher. Aí eu realizei que no conceito dele ao chamar o sujeito no feminino isso já era um xingamento, ou seja o xingamento era ser mulher, pra ele ser mulher é depreciativo.

Ser mulher e profissional do sexo é outra forma de xingar adequadamente um homem e que bate em mulher. Ele não o xingou de agressor de mulher, o xingou de mulher.

Obviamente que eu fiquei deveras irritada e fui bastante incisiva do quanto ele estava sendo machista ao agir daquela forma e ele acabou por me chamar de pseudofeminista e usar os mesmos argumentos que insiste em usar hoje: estar certo falar assim porque ele é da favela, ele estava sendo sincero e o movimento feminista não entendeu, é histérico e só atrapalha a verdadeira luta do povo.

Ser da favela não o autoriza a ser machista, porque se o povo da favela reproduz o machismo e a misoginia estruturais, também são suas maiores vítimas, já que na favela o que mais tem é mulher e mulher preta.

As que mais sofrem estupros são as mulheres pretas, elas também são 60% da classe trabalhadora brasileira, elas também ganham 30% em média do que um homem branco ganha, então ser da favela e defender a favela exige ser feminista e antirracista e ensinar os manos a deixarem de ser misóginos e machistas e não se afirmar apoiando o machismo que eles reproduzam.

Já falar a língua do povo não exige e Lula veio aprendendo isso ao longo do tempo e hoje ele segue falando a língua do povo reproduzindo cada dia menos machismo e racismo.

Esse argumento do sincerão é o mesmo do Bolsonaro, eu falo no microfone o que os outros falam nos cantos.

Bom, isso não é uma qualidade, é um defeito. É um avanço quando alguém não muda seu próprio pensamento, mas reconhece que ele é inadequado a ponto de se regular para não expressá-lo publicamente. Óbvio que o ideal era que a pessoa não pensasse assim e isso é expurgar o preconceito e a opressão entranhadas.

Por isso em certo momento houve uma campanha que perguntava: onde você guarda o seu racismo? Mas ao encontrar você deveria expurgá-lo e não afirmá-lo. E o mesmo vale para machismo e LGBTfobia.

Por isso também a gente diz que as LGBT não vão voltar para o armário, mas seu preconceito e sua discriminação devem voltar, ou ir pro lixo, que é o objetivo final.

Por último, as mulheres estão fazendo uma tempestade em um copo d’água ou não entenderam o que ele disse e a crítica não é machista, é apenas uma constatação política. Não é quem bate que diz o quanto dói e onde dói, é quem apanha.

Dia desses, o Luís Felipe Miguel escreveu “agora inventaram o identitarismo ostentação” (novamente não consigo recuperar as palavras textualmente, porque também fui bloqueada por ele em todas as redes porque estava tentando explicar a ele como ele escolhe criticar os movimentos contra as opressões muito mais do que os opressores) e nessa mesma linha vai o que li do Cantalice e sua pseudocríticas ao que ele chama conceitualmente errado de identitarismo.

Como esse texto está virando um livro, eu coloco aqui pra você ler em outro momento o texto que fiz sobre isso.

Lá afirmo que o único identitarismo no caso é o dos homens privilegiados tentando defender seu direito que eles consideram sagrado de falar sobre tudo, mesmo do que não entendem, mesmo do que não sentem, mesmo do que não sabem.

E explico também como é razoável agir quando alguém te conta que você está sendo machista, racista, lgbtfóbico e tals, spoiler: não é tentando dizer que continua certo e que os movimentos são histéricos ou não entenderam.

Por último, afirmo que ele usou de outra tática do Bolsonaro nesse caso: falar coisas sabidamente polêmicas pra chamar a atenção. E conseguiu.

Não acho que não deveria receber a resposta e insisto que ele precisa receber uma resposta formal da instância partidária à qual compõe e que representa (vice-presidente do PT nunca dá entrevista pra manifestar posição pessoal). Mas não vou ficar falando dele por muito tempo, é dar o que ele quer e precisa.

Eu tenho muito prazer em falar do Quáquá pra falar da Mumbuca, do Vermelinho e do Hospital Ernesto Che Guevara, mas tentando crescer sobre alguém como Dilma Ivana Roussef? Não.

Irrelevante é quem recebeu 54 milhões de votos ou quem recebeu 74 mil? Qual o critério?

Não meço a relevância de ninguém assim. Muito menos de alguém como Dilma Roussef, a quem eu e Quáquá e quase ninguém faz nem sombra. E como bem disse o Ponciano… ela foi à praia e sorriu, porque nem gargalhar precisa.

Foi golpe. O golpe está em curso. Bolsonaro não é uma mudança de rumo do projeto do golpe, mas uma aceleração e aprofundamento desse projeto.

Qualquer um que relativiza esse dado da realidade e tenta culpabilizar uma só pessoa por esse fenômeno da ordem sócio-metabólica do estágio atual do capitalismo é cego e incapaz de fazer análise (se for um cientista social a coisa deu muito errado) ou canalha e trabalha pra fortalecer o golpe e a classe que o promoveu e implementa.

*Elenira Vilela é professora no Instituto Federal de Santa Catarina e líder sindical.

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