sábado, 4 de outubro de 2008

ARTIGO - Os desafios e as oportunidades da A. Latina.

por Michelle Amaral da Silva

Em entrevista concedida à publicação espanhola El Viejo Topo, o intelectual paquistanês discute os processos políticos na América Latina, as guerras e o fundamentalismo islâmico, o futuro do capitalismo e do socialismo.

Em entrevista concedida à publicação espanhola El Viejo Topo, o intelectual paquistanês discute os processos políticos   na América Latina, as guerras e o fundamentalismo islâmico, o futuro do capitalismo e do socialismo.
Joan Benach y Salvador López Arnal,

El Viejo Topo

Tariq Ali é um conhecido intelectual, escritor, historiador, cineasta e ativista paquistanês, autor de livros de história e política, assim como de vários romances. Ali escreve regularmente para revistas e jornais como The Guardian, Monthly Review, Z Magazine e é editor e assíduo colaborador de Sin Permiso e New Left Review. Entre seus livros mais recentes estão "Confronto de fundamentalismos: cruzadas, jihads e modernidade" (Alianza editorial, 2004), Bush na Babilônia: a Recolonização do Iraque (Alianza editorial, 2005), "O Poder das Barricadas: uma Autobiografia dos Anos 60" (Foca, 2007), Piratas do Caribe: o Eixo da Esperança (Foca, 2008). Nesta entrevista, o intelectual fala sobre os atuais processos políticos que estão ocorrendo na Venezuela e na América Latina, sobre as guerras e o fundamentalismo islâmico, sobre o futuro do capitalismo e do socialismo.

O título de seu último livro faz referência a "piratas" e a "eixos de esperança". Quem são esses piratas e que esperança eles representam? Em favor de quem o senhor fala?

Falo em favor dos que desafiam a ordem existente. Historicamente, no século XVIII e no início do século XIX os piratas eram pessoas que estavam fora da lei, que se viam forçadas a viver fora da sociedade, a escapar da lei e da ordem ou a escapar das embarcações. Muitos deles eram marinheiros habituados em barcos das armadas espanholas ou inglesas. Nesses barcos piratas, havia um ambiente muito diferente. Não quero exagerar, mas existem documentos que mostram que, às vezes, esses barcos eram uma espécie de "comuna", com decisões baseadas em discussões, realizando, inclusive, votações sobre alguns assuntos. Habitualmente se comenta que os piratas eram violentos, que desafiavam as armadas inglesas ou espanholas, mas estas práticas comunitárias a que me refiro não costumam ser citadas.

Em meu livro, faço referência a esse aspecto concreto. Os "piratas" de hoje são líderes latino-americanos, eleitos democraticamente na maioria dos casos, exceto Fidel Castro, o líder de uma revolução bem-sucedida. Os "piratas do Caribe" são os que desafiam o "Consenso de Washington", quem desafiam as políticas econômicas impostas por esse Consenso e quem, no caso de Hugo Chávez, não tem medo de dizer o que pensa. Dizem diretamente a verdade, tal como a vemos.

Eles são os piratas em um mundo como o atual, onde na Europa e na América do Norte a política se converteu em algo completamente insípido, dominado pela "boa imagem", mostrada na televisão, e onde a política se vê condicionada pela forma como é apresentada nos meios, por grupos de interesses etc. A esses líderes latino-americanos, nossos piratas rebeldes, não importa tudo isso, desafiam essa maneira de fazer e, além disso, ganham eleições. Pode ser que não ganhem sempre, mas no momento estão ganhando e representam um momento importante na história da humanidade.

Assim, súbita e inesperadamente, algo está acontecendo. É verdade, não devemos exagerar, mas tudo isso, em minha opinião, conduz a uma esperança.

O senhor também reflete, em seu ensaio, sobre o que esses dirigentes compartilham. Existem, em sua opinião, pontos de vista comuns entre eles?

Sim, creio que existem pontos de vista comuns entre Chávez, Evo Morales e Rafael Correa e, talvez, não sabemos ainda, também com Fernando Lugo no Paraguai. Vamos ver. Existe algo comum em todos eles. Embora venham de circunstâncias diferentes, querem fazer algo parecido e colaboram entre si, continuamente falam entre si e se apóiam mutuamente. Realmente, isso é algo muito estimulante.

Você acredita então que Brasil, Chile ou Uruguai seguem, em vez disso, uma trajetória mais neoliberal? Não crê, por exemplo, que a presidência de Lula no Brasil representa uma grande mudança em relação ao estado anterior das coisas? Suas políticas não seriam parte dessa "esperança de mudança"?

Não há dúvida de que esses países representam uma mudança - é o caso do Brasil, por exemplo - mas se trata somente de uma mudança do grupo dirigente. Em termos de políticas econômicas, são continuistas. Há alguns anos, o antecessor de Lula no Brasil, Fernando Henrique Cardoso, disse: "Lula parece demais comigo, ele deveria se comportar um pouco mais como ele mesmo". Isso indica claramente até que ponto Lula tem seguido uma linha ortodoxa em assuntos econômicos. Em relação às mudanças que tem realizado, o mais importante até agora tem sido se negar a aceitar e a apoiar o que os Estados Unidos pretendem fazer na Bolívia e na Venezuela. Lula não ajudará a desestabilizar esses países. E também, não se pode esquecer que Lula tem ido a Havana para encontrar Fidel Castro, para dizer que lhe deve muito, algo realmente assombroso para um líder brasileiro.

Portanto, em fins concretos, Lula e seu governo não representam uma ofensa para os Estados Unidos, mas também não estão sendo escravos de sua política externa.

E quais foram os principais fatores que não têm permitido a Lula e seu governo irem mais longe?

Creio que ele poderia ter ido mais além do que chegou e creio que as pessoas queriam que ele tivesse ido além. Mas creio também que, durante seu primeiro mandato, um grupo de assessores que estavam junto dele se transformou: de um grupo de pessoas que um dia esteve na esquerda, passaram a tomar partido em favor das políticas neoliberais. É o caso, por exemplo, de seu ex-ministro da Fazenda, Antonio Palocci, que havia sido membro de um grupo trotskista muito sectário.

Esses assessores, ou ao menos parte deles, mudaram, na sua atuação depois da conversão neoliberal, suas maneiras dogmáticas de ver e fazer - do tipo "isso é o que deve ser feito", "não existem alternativas" - de quando formaram parte da esquerda. Na maneira como pensavam ou faziam as coisas, eram como se fossem "bolcheviques neoliberais". E Lula aceitou isso porque lhe disseram que era a única maneira que podiam vencer e que, depois, veriam o que acontecesse.

É claro que, uma vez que se compromete com essa maneira de pensar, não é fácil mudar. Esse é o pacto que Lula firmou para obter o poder. Depois, ele se sentiu tão feliz que deixou o sistema seguir como estava. O Movimento Sem Terra (MST) havia observado que, durante o primeiro mandato de Lula, em muitas partes do Brasil cresceu a repressão, embora não por parte de seu governo, e sim por parte dos latifundiários.

Creio, portanto, que, até agora, Lula tem sido uma grande oportunidade falida.

Permita-nos sair desse assunto e formular uma pergunta mais pessoal. O senhor dedica seu livro a Eduardo Galeano, que escreve "é como a espada de Bolívar: buscar mover um império e mover um continente". Não é algo utópico o que atribui a Galeano e que o senhor parece compartilhar?

Não, não creio de forma alguma que o tema sobre o qual Eduardo escreve seja utópico. Ele não escreve somente sobre seu país, Uruguai, mas crê que seu país é parte do continente, e isso é algo realmente comovedor. Quando se lê seus três volumes sobre a América Latina, se vê que são realmente maravilhosos, e que é mais comovedor é que ele vê seus países como um só continente, e é isso que eu creio também.

Sempre gostei de seu trabalho e, para mim, tem sido um grande amigo. Sendo assim, já que estava escrevendo um livro sobre América Latina, sobre seu continente, quis fazer-lhe uma homenagem.

Em seu livro "Piratas do Caribe", o senhor explica que se reuniu em várias ocasiões com Hugo Chávez, a quem apresenta como um líder político extremamente inteligente e instruído. Sobre que temas falaram em suas conversas? Que outras impressões concretas o senhor teve do presidente da República bolivariana como político e como pessoa?

Creio que a primeira conversa que tive com Hugo Chávez foi muito breve. Foi em Porto Alegre, me parece que em 2003. Ele veio conversar por um momento e me disse: "Eu leio seus livros e gostaria que viesse a Venezuela para podermos nos ver". Assim ocorreu. Nesse mesmo ano fui à Venezuela, onde mantivemos longas conversas e, em especial, uma longa conversa sobre a guerra no Iraque, sobre o que iria ocorrer e sobre uma possível resistência que poderia produzir diante desta guerra. Eu disse a ele que acreditava que, rapidamente, surgiria muita resistência e que os norte-americanos se dariam conta, com rapidez, de que entrar no Iraque seria fácil, mas que se manter ali seria muito, muito difícil, tal como tem efetivamente ocorrido.

Depois, tivemos outras conversas e discutimos sobre muitas outras coisas, como o estado atual do mundo, o papel dos Estados Unidos, sobre Cuba, sobre a situação na Venezuela após o golpe etc. Embora o tivesse conhecido há muito pouco tempo, discutimos de forma muito descontraída e tranqüila, como se fôssemos velhos amigos, sobre vários assuntos.

No posfácio publicado na edição espanhola de seu livro, há referência à derrota sofrida no referendo constitucional venezuelano no final de 2007. O senhor observa que, se agirem de forma correta, essa derrota pode servir para realizar passos positivos mais adiante. Em sua opinião, qual a principal lição que se pode extrair desse resultado? Que mudanças políticas e econômicas deveriam ser lançadas na Venezuela?

Creio que a principal lição que se pode extrair é que nunca se pode pensar na participação popular como algo já feito, conseguido para sempre. Uma característica fundamental, inclusive definidora, do processo venezuelano foi a intensa mobilização da população. Esse é um feito crucial. Mas essa mobilização massiva não pode se dar de forma permanente. Creio, além disso, que o referendo confundiu muita gente. Alguns acreditaram que Chávez pretendia, com o referendo, ter um poder ilimitado, outros acreditaram que ele queria fazer algumas mudanças na Constituição, com algumas das quais não estavam de acordo... Assim, foi um referendo confuso demais, que queria conseguir muitas coisas e usar a popularidade de Chávez para conseguir. As pessoas rejeitaram tudo isso. Chávez é um líder inteligente, disso estou seguro, e, embora eu não tenha falado com ele depois da derrota, acredito que a situação fará com ele se faça muitas perguntas. Por exemplo, por que o povo, seu mesmo povo, não votou nele? Creio também que, nesse referendo, a população percebeu que havia muito pouco em jogo.

E pelo que faria às mudanças que, na opinião do senhor, deveriam realizar-se.

Creio que, quando se está no poder, a formação de um partido político é um problema. Muita gente se une simplesmente porque tem o poder. É muito melhor lançar um partido quando se está na oposição. Então se pode saber realmente com quem se pode contar, quem são seus amigos e quem não é. Portanto, acredito que pressionar para a formação de um partido único que uniria a esquerda não foi uma boa idéia. Chávez o levou a cabo; de acordo, pois já vamos ver. Em segundo lugar, creio que em nível de maior responsabilidade e poder, alguém tem que ser capaz de reunir um grupo de pessoas que seja capaz de discutir, de debater, de não estar de acordo com você. Mas Chávez é uma pessoa tão forte e tão popular que muito pouca gente diz a ele, de forma crítica, as coisas de que não gostam. E isso é um grande problema.

Outra lição que espero que também se tenha aprendido é que, no lançamento, na realização prática de muitas das idéias políticas que se acordaram, existe um grave problema. Uma das causas que dificultam sua superação é que, em geral, a burocracia na Venezuela não tem sido amistosa com Chávez, não é sua amiga, não quer. Assim, para pôr em prática essas políticas alternativas, é necessário encontrar outros mecanismos, algo nada fácil a menos que se mude por completo os aparelhos do Estado. Ele, até agora, não foi capaz de fazê-lo. Desde já, eu admito, não é algo fácil de realizar.

E o que o senhor recomendaria para tentar solucionar alguns problemas associados a essa burocracia paralisadora, quando não é simples nem claro quem é o adversário da revolução?

A primeira coisa que temos que fazer é entender que existem problemas, problemas muito reais. No lado bolivariano, já sabemos onde está a oposição, sabemos que existem inimigos e quem nunca gostará de nada que se faça. Esses não interessam muito. Me interessam muito mais o que se faz para melhorar as condições dos venezuelanos, de tal modo que as mudanças sejam fixadas e institucionalizadas e seja impossível voltar atrás. Esse é desafio.

Portanto, minha recomendação é que Chávez passe, agora, muito mais tempo na Venezuela, que vá a todas as cidades e povos, que fale com as pessoas, que veja, que detecte quais são os problemas reais que existem.

Está dizendo que percorra o país ele mesmo, diretamente.

Sim, exatamente, e não somente, mas acompanhado de uma equipe de pessoas próximas e amigas. Creio que isso é o mais importante a fazer. Associado a isso, está o fato de que ele realmente necessita formar uma equipe forte. Sempre disse que um grande perigo do processo venezuelano é que é demasiadamente dependente de uma só pessoa. Se os Estados Unidos ou algum outro país ou grupo lhe assassinasse, o processo poderia chegar ao fim, e isso é algo realmente perigoso. Essa é uma debilidade enorme da revolução bolivariana.

Portanto, em minha opinião, Chávez tem que organizar uma equipe com forte liderança, de modo que, se algo lhe acontecer, o processo possa continuar.

O senhor crê então que há planos concretos para assassinar Chávez?

Não sei. Creio que isso pode ocorrer, que se os Estados Unidos perdem o controle diante do que está acontecendo, tentará assassiná-lo, mas provavelmente não de maneira direta, e sim através da Colômbia ou de algum outro meio indireto. O que os Estados Unidos costumam dizer é: "não fomos nós, outros o fizeram, foi um dissidente chavista". Essa é a maneira como costumam atuar.

Em todo caso, está claro que espero que isso não ocorra. Creio que sua segurança é muito boa.

Vamos agora a um país próximo e amigo. Que opinião tem sobre o presidente do Equador, Rafael Correa?

Acredito que Rafael Correa é um político e economista muito capaz e inteligente, que tem mostrado muita coragem ao dizer a forma como quer transformar o Equador. A forma como ganhou tão rapidamente o referendo constitucional, a forma como conseguiu uma maioria, a forma como tem uma equipe com liderança e seu partido, todos são aspectos muito favoráveis e indicativos muito positivos de que o processo equatoriano vai por um bom caminho.

E quanto à Bolívia, cujo vice-presidente Álvaro Garcia Linera é seu amigo e colaborador de New Left Review? O senhor crê que a presidência de Evo Morales poderá seguir adiante em seu processo de transformação? A oligarquia boliviana deixará o governo de Morales respirar por algum instante?

Essa é uma pergunta difícil. A situação da Bolívia é a mais difícil no conjunto de todos os países de que estamos falando, já que a burguesia de Santa Cruz é realmente muito perversa. Estão tão acostumados a dominar o país que não podem permitir deixar o poder a um político de origem indígena. No conjunto da burguesia crioula da América Latina, existe muito racismo, mas especialmente na Bolívia, onde dominaram os indígenas durante muitíssimo tempo, desde que a Bolívia se converteu em um país. E, desde então, odeiam perder esse poder para Morales.

Creio que se trata de gente realmente má, que tem o completo apoio dos meios de comunicação privados, a maioria dos quais, certamente, é propriedade de quem também dirige o jornal El País. O grupo Prisa [dono do El País], e a cadeia de meios controlados por essa empresa na Bolívia, apóia as formas mais reacionárias de poder e oposição no país. Também aqui, o que levou Evo Morales ao poder foi a massiva mobilização dos movimentos sociais. Tanto Morales como García Linera têm que entender que isso é o que os manterá no poder. Se essa mobilização diminui, ou se eles crêem que essa mobilização deve diminuir, o que eles conseguirão é que se reduza o forte apoio que tem hoje e, então, a situação não permitirá que eles se mantenham no poder. Assim, não se conseguirá na Bolívia um processo de transformação real.

Fidel Castro forma também parte de seu "Eixo da esperança". No entanto, o senhor, anos atrás, criticou diversos aspectos do processo cubano. Por exemplo, seu sovietismo fechado, a repressão estalinista contra alguns intelectuais, a perseguição aos homossexuais, sua forte burocracia...

Sim, e o apoio à invasão da Tchecoslováquia pela União Soviética, por exemplo..

Exatamente, exatamente. O senhor abandonou suas críticas agora? Eu sua opinião, qual pode ser a evolução de Cuba em um futuro próximo?

Eu creio que, em Cuba, muitas coisas têm mudado. Me parece que, desde o colapso da União Soviética, muitas novas idéias se colocaram em marcha ali. Como sinalizei no diário, quando visitei Cuba fui muito sincero com as pessoas sobre o porquê de não ter visitado a ilha até então, e sobre quais eram minhas críticas ao processo de revolução cubana. Muita gente me disse, com franqueza, que era muito bom visitar Cuba naquele momento (final de 2005), já que havia, durante os anos 1970, muitas coisas das quais eu não havia gostado em absoluto.

Cuba e sua gente constituem uma realidade incrível, vibrante, muito viva. Colocar esta ilha sob uma camisa-de-força chamada "socialismo" de Brejnev foi uma loucura. Poderia haver destruído o espírito das pessoas. Mas isso não ocorreu. O que ocorreu foi a burocratização da hierarquia cubana, a geração de um sistema educativo totalmente hierarquizado e burocrático. O sistema cubano de educação, certamente, permitiu a instrução de toda a população, mas é também um sistema que não promove a crítica, tal como agora ocorre no ocidente. Ao não permitir que existam dissidentes, críticos, que não se ofereçam diversas visões nos jornais, e que estes publiquem o mesmo um dia após o outro, a imprensa se converte em algo entediante. O mesmo ocorre ao não deixar publicar alguns livros, escritores e poetas. Isso não é o que realmente representa a revolução cubana.

Agora, as coisas estão mudando. Já não há restrições para os homossexuais. Volta-se a publicar livros que antes eram proibidos. Lentamente, acredito que estão entendendo os erros que cometeram, e isso, realmente, é algo muito esperançoso.

O assunto, portanto, não é permanecer calado, não fazer crítica: eu sou crítico. Agora, bem, se a pergunta é se eu gosto ou não de que exista Cuba, a resposta é que sim.

Deixe-nos perguntar algo mais sobre este tema. Aceitando sua análise, por que então ocorreram esses erros em Cuba?

Houve duas razões. A primeira foi que os Estados Unidos queriam destruí-la, e, nessa época, ou se estava com os Estados Unidos ou se estava com a União Soviética. Não existia outro caminho, não havia outra possibilidade.

A segunda razão, e ainda mais importante, foi que, infelizmente, o único modelo de socialismo para a maioria das pessoas continuava sendo o modelo soviético de um partido controlado pelo Estado, um jornal de um Partido, uma televisão estatal. Era esse o modelo. O modelo que Cuba deveria ter tentado seguir e pôr em marcha deveria ter ido um modelo com profusão de idéias novas, como no caso da Tchecoslováquia de Alexander Duccek durante a primavera e o verão de 1968. No entanto, isso não ocorreu.

Assim, pois, creio que a combinação, a soma de ambas as razões que forçaram Cuba a seguir esse caminho. Mas agora estão se dando conta de seus erros, e espero que mudem.


O senhor critica as posições de quem defende a possibilidade de "mudar o mundo sem tomar o poder", como sustenta Jonh Holloway, por exemplo, em aparente metáfora paradoxal. Observa que essa via, esta formulação teórica, é uma forma de voltar para a arena política. Estenderia essa crítica ao movimento zapatista? O que diz de suas estratégicas políticas?

É curioso. Jonh Holloway tentou teorizar as concepções e análises do movimento zapatista, mas, se nos fixarmos bem, o que realmente fizeram os zapatistas em uma determinada zona do México, foi tomar o poder. Portanto, para mim, a questão é: por que não realizar uma estratégia parecida no conjunto do México e não somente em Chiapas? É uma contradição, em minha opinião. Toma-se o poder em Chiapas, se armam, ajudam e protegem as pessoas, e acabam, então, formulando teoricamente que o único modo de fazer tudo isso é através da renúncia da tomada do poder. Essa formulação é uma espécie de "fracasso" pós-moderno ou algo assim.

Me parece que o que os zapatistas fizeram e fazem em Chiapas é maravilhoso. Mas quando decidiram realizar uma marcha desde Chiapas até México DF, o que achavam que iam conseguir com isso? Não sei. Uma vitória moral? Muito bem, mas uma vitória moral dura apenas um dia, a menos que se siga alguma outra coisa. Portanto, creio que a formulação, a concepção que discutimos, é uma postura equivocada, e me parece que as mudanças na América Latina, com as vitórias na Venezuela, Bolívia e Equador, têm sido muito moralizadoras. Também creio que se López Obrador tivesse ganho no México, a situação teria sido muito diferente. Não digo que a situação teria sido como Venezuela, mas seria muito diferente, uma grande derrota para o "candidato americano". Me parece que, quaisquer fossem as críticas que os zapatistas pudessem formular a López Obrador, deveriam ter pedido para as pessoas saírem às ruas, votarem nele e fazerem campanha a seu favor. Não fizeram isso. A partir de então, a situação no México se polarizou por completo, e a direta roubou fraudulentamente as eleições. O que conseguiram então com essa atitude de "não quero manchar as mãos" com a política institucionalizada? Uma derrota, uma dura derrota.

Mas não crê que pode haver perigos na posição que você defende...

Claro, claro. Uma posição que tenta ajustar a própria política ao espírito da época sempre é algo perigoso. Alguns o fazem se entregando, simplesmente, ao neoliberalismo. Muita gente de esquerda fez isso ao decidir: "não há outra alternativa", "simplesmente tem que se fazer isso". Mas o que tento sinalizar é que outros fizeram isso através de sua renúncia em participar da política.

Em minha opinião, ambas as posturas são erradas.


O senhor acaba de fazer referência a isso, de alguma forma. Por que acredita que tantos e tantos intelectuais de esquerda mudaram de ideologia, se transformando em porta-vozes de causas pouco nobres, amparando-se, quando é o caso, em uma terminologia democrática, defensora dos direitos humanos e da liberdade sem limites? O senhor, em seu livro, explica o caso de Teodoro Petkoff na Venezuela. Qual a causa dessas mudanças políticas, ideológicas e culturais? A ambição pessoal? A revisão honesta e autocrítica de sua própria ideologia e de seu fazer político? Os efeitos da derrota na URSS? A impossibilidade de vislumbrar mudanças efetivas a curto ou médio prazo?

Se comentamos sobre o caso de Petkoff, podemos ver que se trata de uma combinação de todas estas coisas. Ele esteve na guerrilha na Venezuela, que foi uma estratégia errada que fracassou. Então, Petkofff esperava poder conseguir um lugar no poder como político da burguesia. Aceitou um ministério no segundo governo de Rafael Caldera, um governo que resultou em um desastre. Quando Chávez conseguiu a vitória, creio que a primeira consideração instintiva de Petkoff foi uma reação arrogante e um tanto racista: "se este tipo chega a ser presidente, por que eu não posso, então, ser presidente da Venezuela?" Em seu caso, sem dúvida, sua própria psicologia é muito importante.

Mas se deixamos de lado Petkoff e vemos o tema de uma forma mais global, podemos dizer que se trata de um problema geral, que foi implementado depois do colapso da União Soviética e a vitória do capitalismo. Não que a União Soviética fosse um modelo para o socialismo, mas como a URSS, a Europa Oriental e China como país socialista não existem mais, gerou um grande território vazio. Com a vitória do capitalismo e a entrada do capitalismo na China e a decisão desse país de tomar essa rota, o espaço socialista virtualmente desapareceu de um dia para o outro. Nesse mesmo momento, muitos intelectuais adiaram suas restrições, deixando-as de lado. É como se tivessem viajado em um barco que estava acostumado a fazer frente a todo tipo de dificuldade, mas que, em um dado instante, ao enfrentar uma tormenta de tal dimensão, quando finalmente o barco em que viajavam foi a pique, se viram perdidos no meio do mar, sem saber exatamente onde estavam. E então se dirigiram a eles mesmos: parece que o mar está calmo agora, será que é um mar apropriado? Vamos, então, agitar suas águas.


Não há dúvida de que o senhor gosta muito de metáforas sobre barcos, mares e oceanos.

Sim, efetivamente, eu gosto. Mas o que acabo de apontar é o que realmente ocorreu. É uma explicação materialista de um fenômeno. É preciso explicá-lo desse modo, não existe outro modo de explicar a psicologia humana. Acreditaram que não havia outra alternativa e, então, para muitos deles, foi exposto outro problema: se não se adaptavam ao novo, não poderiam ser capazes de obter nada. Ou seja, que se queriam obter êxito, ganhar dinheiro, manter seus salários, teriam que aprender como era esse novo mundo que estava surgindo. Em outra camada de intelectuais, se gerou a sensação de que não existiam outras alternativas, e foi então que iniciaram uma espécie de retirada para dentro de si mesmos. Conheço muitos intelectuais de origem judia que nunca foram sionistas, mas que, depois do colapso soviético, começaram a ir nessa direção e, agora, pouco tempo depois, são sionistas duros. Muita gente fez uma mudança parecida. Esse foi o resultado da derrota. E acredito que tenhamos que sentir pânico diante disso, temos que vê-lo como uma perspectiva de longo alcance. Depois da derrota de qualquer revolução e da aparição de uma restauração sempre aparece o mesmo problema.


Poderia ilustrar essa última consideração?

Seja depois da revolução inglesa e da restauração monárquica de 1666, depois da vitória inglesa durante a batalha de Waterloo e a posterior derrota final da revolução francesa, inclusive quando se tratava da versão deformada que dirigia Napoleão Bonaparte, em todas essas situações sempre podemos encontrar uma mudança massiva em pessoas que, uma vez, deram seu apoio à revolução e que, de repente, mudam de lado, de repente se tornam verdadeiros reacionários. Um escritor que explica essa situação muito bem é o grande romancista francês Stendhal. O ódio de Stendhal por essa gente era tão forte que ele lhes chamou de "ultras". São os conservadores e as pessoas que se transformam, que também passam a ser conservadores. Com poucas mudanças, os textos de Stendhal podem ser lidos como se fossem de agora mesmo. Depois do final da União Soviética em 1991, ocorreu exatamente o mesmo fenômeno. Mas está claro que a derrota pode durar 20 anos, talvez 25, mas a partir de então as coisas voltam a se pôr em marcha outra vez. E quando isso ocorre, as pessoas que mudaram de lado são, precisamente, as que passaram a ser mais reacionárias frente a novas mudanças que vão surgindo, já que esses caminhos põem em questão as próprias decisões que elas tomaram.

Assim, para essas pessoas, o momento mais importante é o momento de sua renúncia ao que acreditam. Nada é tão importante como isso. Diante de qualquer coisa que você diz ou faz, que trate de alterar minimamente a renúncia que eles praticaram, não querem saber de nada. Perturbam-se, tornam-se perversos, são violentos no que escrevem. Isso se pode ver em muitas coisas que são publicadas sobre Chávez e a Venezuela no El País, no que diz Petkoff, ou no Le Monde. Por exemplo, um dos correspondentes mais maldosos do Le Monde na América Latina é um brasileiro que havia sido trotskista.

Seria, em sua opinião, uma espécie de reação psicológica associada ao fato de perder uma situação de poder ou, ao contrário, com o fato de ganhar em uma revolução.

Sim, é certo, alguns também se comportam desse modo inverso. Mas o que tento dizer é que, como nos afeta em maior medida, não deveríamos pensar nesse fenômeno de perda como algo novo, e sim como algo que sempre ocorreu.

Outro exemplo, muito parecido. Podemos pensar no que ocorreu durante a guerra civil espanhola. Durante os anos 1970 e 1980, muita gente disse: "sim, claro, claro que estamos a favor da república; a república era o certo e, se pudéssemos, teríamos ajudado a república...". Em vez disso, durante a última década, pode-se ler muita gente, novelistas, escritores, que dizem: "na realidade, ambos os lados cometeram atrocidades..." Sim, claro, disso já sabemos. Mas de que lado você está? Embora se trate somente de temas históricos, não querem, de forma alguma, tomar partido. Assim é como se comportam.


Refletindo sobre o movimento cidadão pela paz, o que acha que ocorreu para que o movimento contra a guerra que, há cinco anos, mobilizou milhões de pessoas em todo o mundo, tenha perdido tanta energia, apesar da situação no Iraque continuar sendo uma tragédia absolutamente determinada? Por que a opinião pública não reage, agora, como talvez fosse de se esperar, contra as terríveis conseqüências desta ou de outras guerras?

Creio que nunca houve um movimento contra a guerra do Iraque. Foi mais um "espasmo", um espasmo de indignação e raiva por parte dos cidadãos da Europa e da América do Norte para tentar deter uma guerra que acreditavam ser imoral, baseada em mentiras e promovida por políticos profissionais de alguns países. É por isso que se mobilizaram e que saíram às ruas. Dois milhões em Madrid, um milhão e meio em Londres, dois milhões e meio em Roma, quase 500 mil em Nova York, 800 mil em São Francisco. As pessoas saíram às ruas para deter a guerra. Quando viram que nada poderia detê-la, para alguns foi um trauma, para outros foi desencanto. Não podemos fazer nada mais, assim se retiraram.

Ao mesmo tempo, o fracasso dos meios de comunicação em informar o que realmente estava acontecendo no Iraque, desempenhou também um papel nisso, na desmobilização. Os meios não puderam deter as mobilizações, mas evitaram que as pessoas constituíssem um movimento. Desempenharam um papel importante. E, junto a isso, também encontramos o papel desempenhado pela islamofobia, ao sinalizar coisas como "os iraquianos são todos muçulmanos", "não podemos dizer que existe uma resistência" etc. Pode ser que não estejamos de acordo com sua visão política, mas é claro que no Iraque existe uma resistência contra a ocupação norte-americana. No início do século XX, pessoas como essas, argelinos, marroquinos e líbios, resistiram, mas ninguém disse que não constituíam a resistência pelo fato de serem "islamitas".

Nestes momentos, as tendências de islamofobia, amplamente promovidas na Europa e na América do Norte depois dos atentados de 11 de setembro, estão impedindo um movimento autêntico, porque o que está ocorrendo agora no Iraque é escandaloso: um milhão de iraquianos morreram, três milhões e meio refugiados, dois milhões foram feridos. E, diante disso, muitos cidadãos do mundo não querem saber de nada, dizem que não lhes importa, ou crêem que nada podem fazer. Assim, para mim, o que ocorreu no Iraque depois da ocupação é que tem havido uma revisão muito grande dos movimentos sociais e dos cidadãos europeus, uma revisão que, infelizmente, não foi aprovada.

Nesta época, também se cumpre o sexto aniversário de guerra dos Estados Unidos no Afeganistão, que é vista por muita gente, diferente do Iraque, como uma "boa" guerra na "guerra global contra o terror". Essa é sua opinião? Que ponto de vista a esquerda deve ter em relação a esse assunto?

Depois do 11 de setembro, me opus à guerra do Afeganistão e me opus, em primeiro lugar, a uma televisão canadense ao me confrontar com uma pessoa que apoiava firmemente Bush. Eu perguntei a ele: "Quais são os objetivos desta guerra?". Não me respondeu. Eu disse que se tratava de uma simples vingança depois do 11 de setembro. E me respondeu: "Sim, e o que tem isso de mal?". E assim começou o debate.

No início, os norte-americanos argumentaram duas razões: capturar vivo ou morto Osama Bin Laden e, segundo, destruir o Afeganistão como uma base segura onde estava a Al Qaeda. Não puderam capturar Osama porque ele escapou, mas nem a Al Qaeda nem Osama estão no Afeganistão. Por que então seguem ali? No último ano e meio, milhares de civis foram assassinados pelos exércitos dos Estados Unidos e da Otan. Essa é uma guerra que se realiza em nome da Otan e a Espanha tem tropas que, na minha opinião, deveriam sair de imediato daquele território. Não há nenhuma razão que justifique manter tropas européias no Afeganistão. O ataque, a ocupação deste país se converteu simplesmente em uma guerra estratégica. O secretário-geral da Otan, Jaap de Hoop Scheffer, disse em Washington há poucas semanas que a autêntica razão para essa guerra é o que Afeganistão é um país muito estratégico na luta com a China. Não podemos deixá-los sozinhos, é essa a autêntica razão. E se a razão da Otan para ocupar esses países é que os Estados Unidos mantenham, embora parcialmente, sua hegemonia mundial, então a coisa acabará muito mal.


Muitos políticos conservadores, embora não sozinhos, cobertos de certos laicismo, têm mostrado muito interesse em demonizar os muçulmanos em geral e o fundamentalismo islâmico em particular. O senhor escreveu o seguinte: "Os políticos e os meios de comunicação criaram uma imagem dominante do Islã como um refúgio de barbudos terroristas. Atualmente, pode-se ler em quase todas as partes novelistas direitistas loucos, como Martin Amis, falando sobre o Islã como uma 'religião maligna'. Lutar contra isso é uma árdua tarefa". O que o Islã representa para o senhor? Por que, de três grandes religiões universais - cristianismo, judaísmo e islamismo - somente o islamismo nunca sofreu nada equivalente à Reforma que rompeu - parcialmente, admitamos - o poder da hierarquia católica dominante na Europa até o século XVI?

Ao pensar nesse tema, há muitos e diferentes aspectos que poderíamos considerar. Existem muitas razões pelas quais não houve uma reforma no Islã. Um ponto crucial é que ele foi expulso da Europa, depois da reconquista espanhola, pela igreja católica e pela Inquisição e, afinal, com a queima pública de livros pelo arcebispo Cisneros, na praça pública de Granada. Portanto, foram exterminados, empurrados, expulsos, e isso criou um espírito de gueto e de derrota, e quando as religiões foram derrotadas e reclusas nos guetos, então não é um bom momento para que a religião e a cultura sejam reformadas. Mas, enfim, essa é uma discussão e um debate interessantes.


Essa seria, então, a razão mais importante, em sua opinião.

Não. A questão mais importante creio que seja a seguinte: o forte aumento da islamofobia no ocidente, promovido pela cultura oficial, se relaciona, como eu apontava, antes, com os meios do império norte-americano e com a conquista do Iraque e do Afeganistão. Assim, quando se matam milhares e milhares de pessoas - um milhão somente no Iraque - as pessoas pensam que, certamente, isso não é bom, mas também pensam ao mesmo tempo, que depois de tudo são só muçulmanos, árabes. E, portanto, "o que se passa"? Por isso, creio que é uma questão realmente perigosa. Há aproximadamente um ano, na Grã-Bretanha, uma mulher publicou um texto onde comparou o que se escreve hoje sobre os muçulmanos com o que se escreveu sobre os judeus na imprensa ocidental, e concretamente na britânica, não na Alemanha, no final dos anos 20 e início dos anos 30 e, às vezes, realmente, as frases eram exatas. Nós podemos nos perguntar se, das muitas das coisas escritas sobre os muçulmanos hoje em dia, se trocarmos a palavra "muçulmanos" por "judeus", elas poderiam ou não ser reescritas e até mesmo publicadas atualmente. Os judeus eram imigrantes, viviam em pequenos guetos, tinham um vestuário curioso, comiam alimento peculiares, falavam uma língua estranha, tudo isso foi atacado. O mesmo ocorre, neste momento, com os muçulmanos: os judeus foram também acusados de terroristas, de bolcheviques, de que haviam feito a revolução russa. Então, perguntava-se coisas como: tem certeza de que não há bolcheviques entre as comunidades judias da Europa ocidental? Os alemães iniciaram tudo isso, mas sabemos que foi muito comum também na França e na Grã-Bretanha. E, nos Estados Unidos. Não podemos esquecer os Estados Unidos.

Foram preconceitos muito comuns que foram revitalizados de novo, mas contra uma cultura e uma religião diferentes. Tudo isto teria que ser evitado, não deveria haver lugar para essas coisas. Como vocês sabem, não sou, em absoluto, uma pessoa religiosa, os ataques à religião não me ofendem pessoalmente. Mas tudo isso é diferente, trata-se de ataques a uma cultura, a toda ela, em sua globalidade.


Tudo isso que o senhor observa nos recorda alguns estudos que mostram como a televisão, os jornais ou os meios de comunicação estabelecem preconceitos e estereótipos de como são os islamitas.

Sim, realmente, todo esse processo segue sem parar. Se dentro do mundo islâmico falam com pessoas como eu - e há milhares como eu - eles não gostam de nos mostrar como somos porque rompemos o estereótipo. Assim, mostram as pessoas de duas formas diferentes: ou como gente muito religiosa, ou como gente que odeia o mundo islâmico e que dá apoio aos norte-americanos dizendo: "por favor, Estados Unidos, venha nos ajudar a lutar contra essa gente que existe em nossa sociedade". Esses são os estereótipos que se mostram, continuamente, nos meios.

Deixe-nos recordar agora um aniversário. Este ano celebramos o 125º aniversário de falecimento de Marx. O que permanece vivo e o que está morto em seu legado? Poderia dizer em poucas palavras o que significa a obra de Marx para o senhor?

Realmente, estão me formulando uma pergunta muito ampla. A meu modo de ver, o mais importante que devemos entender de Marx é que ele nunca acreditou que pensar era uma atividade religiosa. E, assim, ele não gostava de nada que o tratasse desse modo, algo que começou a ocorrer quando ainda estava vivo. Ele não gostava em absoluto, devemos nos recordar sempre. Há marxistas demais que se converteram em garantidores de seus textos, em lugar de serem analistas críticos de suas idéias. Isso é realmente um perigo muito grande.

Deixando claro esse ponto essencial, creio que temos muito que aprender com um intelectual e um filósofo tão brilhante como ele. A maioria das coisas que escreveu sobre o capitalismo segue corretas hoje em dia. Sua compreensão do capitalismo ou da globalização foi muito importante. Ele realizou, porém, muitas interpretações errôneas já que, igual a todos nós, viveu em uma época determinada que tentou analisar, e nunca se pode estar completamente certo, sempre se cometem erros. Por que ele não iria cometê-los? Portanto, o fato de que algumas de suas previsões não terem sido certas não é muito relevante. Não acontece nada se afirmarmos que Marx se equivocou em tal ou qual ponto. Está claro que não foi um profeta religioso.

Creio que dizer essas coisas sobre ele é o mais importante. E o fato de que muitos marxistas escrevam sobre ele nos indica que sempre permaneceu como um filósofo muito apreciado. Eu também creio que é interessante observar que, durante a maior parte do século XX, as classes dirigentes capitalistas não gostaram nada de usar a palavra "capitalismo". Usaram palavras como "liberdade", "livre comércio", "mercado livre", sempre liberdade, liberdade, liberdade... mas nunca disseram: "sim, somos capitalistas". E uma das razões pelas quais nunca disseram foi devido à sua obra, suas críticas. Marx conseguiu com que muitos se envergonhassem disso. Depois de sua vitória, fizeram-no pela primeira vez, foi quando disseram "o capitalismo triunfou". Mas isso somente depois de sua vitória, não antes.


Gostaríamos de perguntar ao senhor sobre o poeta marxista Erich Fried. O senhor abre o primeiro capítulo de seu livro com um lindo poema: "Prayer at night" (Orador de noite)". Como conheceu Fried?

Conheci Erich Fried muito bem, foi um grande amigo. Eu o conheci em 1968, no movimento contra a guerra do Vietnã e falei com ele nas manifestações na Alemanha e na Grã-Bretanha. Vivia em Londres, e o via de vez em quando, assim como Rudi Dutschke. Mas, apesar de não vê-lo com grande freqüência, cada vez que nos encontrávamos era como se retomássemos uma conversa que havíamos iniciado ali mesmo. Há um poema que Erich escreveu e que cito em meu livro "Anos de luta na rua", uma autobiografia dos anos 60 chamado "Poema pela esquerda". Recordo que, um dia, estava em sua casa conversando com ele quando me disse: "OIha, isso te fará rir porque estará de acordo comigo. É um poema que escrevi sobre os intelectuais franceses". Ele o havia escrito em alemão, e como lhe disse que meu alemão não era muito bom para entendê-lo, me traduziu para o inglês. E eu o incluí nesse livro. A primeira estrofe dizia assim:

Querido Deus em que ainda não creio

Volte a fazer um milagre

Porque já está fazendo falta

Ou, melhor ainda, muitos milagres de uma vez

(Porque um só já não bastaria)

E ajuda a estes intelectuais franceses esquecidos de Deus

Para que finalmente se ponha em moda entre eles

Não ter que seguir as modas intelectuais

Ajuda-os a perder o impulso estilístico

Que em uma fração de segundo os converte

De hereges bons e necessários

Em miseráveis renegados

Ajuda-os a não deixarem cegar-se.

Erich Fried foi uma grande pessoa. Teve que abandonar a Áustria por causa da perseguição alemã quando os nazistas estavam a ponto de prendê-lo. Durante toda a sua vida se opôs, com grande força, ao sionismo, sempre estava em favor dos palestinos e odiou o que os israelitas fizeram, igual à maioria dos meus amigos. Ficou muito triste quando Rudi Dutschke morreu. Eu não pude assistir ao funeral de Dutschke, mas consegui escrever um texto que Erich leu. Ele era assim, outro amigo que nos deixou, uma voz muito importante. Creio que, depois de Bertold Bretch, Fried foi o poeta alemão mais importante.


Deixe-lhe fazer uma pergunta incômoda. O senhor tem observado, em várias ocasiões, que o socialismo e a democracia são muito mais compatíveis entre si do que o capitalismo e a democracia, e que hoje o capitalismo está estrangulando a democracia. No entanto, historicamente, não parece ter sido o caso de países como a URSS, Alemanha Oriental, Hungria ou China. Como fundamentaria sua afirmação?

Eu fundamentaria de forma teórica. O socialismo e a democracia são muito mais adequados e compatíveis entre si, já que o socialismo, como sistema, deveria promover a igualdade, a justiça e o fim da exploração da maioria por uns poucos. E a democracia, como sistema político, também tem como objetivo oferecer uma voz à maioria. Assim, realmente ambos são compatíveis. A grande tragédia do socialismo tem sido que a revolução ocorreu na Rússia e não na Alemanha, ocorreu em um país com uma autoridade czarista, sem nenhuma tradição democrática. Foi quando o ocidente organizou uma grande guerra contra a revolução. Foram criados 17 exércitos para tentar destruí-la, provocou-se uma guerra civil, trazendo de novo as velhas tradições russas para defender o novo regime. Foi realmente uma grande tragédia que a revolução tenha caído assim. Isso pode ser lido nos primeiros escritos dos bolcheviques. Lenin escreveu uma vez que, se não houvesse uma revolução na Alemanha, a revolução russa não sobreviveria. E realmente, de algum modo, teve razão, não sobreviveu, não tem sobrevivido. Vimos a burocratização e todo o resto de coisas conhecidas. Assim, foi realmente triste que tenha ocorrido desse modo. Se tivesse havido uma revolução na Alemanha, creio que as coisas tivessem sido de outra maneira. Igualmente no que diz respeito à revolução de 68 e o ao que os comunistas checoslovacos estavam experimentando, que também foi isso.

Foi um exemplo de conciliação desejada e buscada de socialismo e democracia, sem renunciar a nada, sem desejar voltar ao poder do capital.

Efetivamente. Na Tchecoslováquia, não queriam voltar ao capitalismo, mas sim um socialismo democrático e uma democracia política.

Sempre acreditei que uma das razões pelas quais os soviéticos quiseram destruí-los foi isso, o fato de que sabiam que os trabalhadores checoslovacos da imprensa imprimiam seus manifestos, os manifestos do partido comunista checoslovaco dirigido por Dubcek, e os passavam por contrabando à Ucrânia. Os russos temiam que esse "vírus" se estendesse. Os norte-americanos também estavam extremamente nervosos com isso, com o fato de que se um país europeu passasse a ser uma democracia socialista, o avanço não seria nada bom para seu sistema. Assim, quando os soviéticos invadiram a Tchecoslováquia, a resposta do ocidente foi muito débil. Se olharem as publicações da Otan da época, poderão ver que discutiam esse tema desde um ponto de vista militar, mensurando com que rapidez as tropas soviéticas alcançaram Praga, mas não falavam de nenhum outro problema. A questão é, por que o fizeram, por que as tropas do pacto de Varsóvia invadiram Praga. Creio que, realmente, a experiência da primavera de Praga foi uma experiência singular que teria sido, se tivessem permitido continuar, a direção apontada para conquistar um socialismo democrático.

Mas, por outro lado, admitamos também, a razão pela qual o capitalismo se converteu em um sistema mais democrático foi a causa da ameaça da revolução russa. Foi isso que ajudou a implementar a democracia, que realizou pressão para que as mulheres pudessem votar. Antes da revolução de 1917, no mundo ocidental, a metade da população não tinha direito a voto. Na realidade, a revolução russa os colocou na defensiva e tiveram que fazer concessões: economicamente, quanto à democracia social, politicamente, quanto a direitos democráticos, liberdade de imprensa etc. Uma vez que essa ameaça desapareceu, lentamente foram deixadas para trás. A imprensa e os meios de comunicação têm piorado, e a democracia mesmo tem se enfraquecido, já que, ao não existir nenhuma alternativa econômica real dentro do próprio sistema capitalista, por que ter dois partidos com oposições e concepções opostas? Por que não ter um único partido estatal que pudesse ter diferentes rostos? Depois de tudo, a revolução da China tem mostrado como pode existir somente um partido estatal e existir, ao mesmo tempo, o capitalismo mais dinâmico de todos. De fato, alguns texanos milionários têm visto a China com grande admiração, desejando ter um sistema assim. Talvez consigam.


A atual crise do capitalismo parece nos colocar, realmente, em uma situação muito perigosa. Sabemos que o senhor não tem nenhuma bola de cristal e, tampouco, gosta de artifícios de previsão mas, em seu ponto de vista, qual será a evolução do sistema capitalista a curto ou médio prazo?

Minha previsão é de que estamos, acredito, diante de uma crise muito séria do capitalismo, que tentarão esconder e controlar. Mas, sabem, nunca existirá a crise final do capitalismo. É preciso entender bem isso. Realmente é utópico pensar que o capitalismo destruirá a si mesmo. Nunca acontecerá. A menos que exista uma alternativa, o capitalismo sobreviverá a esta crise, como tem sobrevivido a todas as outras crises. Mas o que podemos esperar é que, desta situação crítica, apareça uma nova geração que seja anticapitalista, e que diga que esta não é a maneira razoável nem justa de organizar e fazer funcionar o mundo. Pode ser utópico, mas isso é o que espero que saia desta crise.

Que seja uma crise como a de 1929 ou de 1931? Quem sabe, o mundo hoje é diferente. Creio que o Estado, os Estados capitalistas, se moverão para tentar controlar e guiar os efeitos da crise. Tudo o que se disse e se tem dito sobre a não intervenção do Estado desaparecerá, ainda que seja improvável que se aceite teoricamente. Por exemplo. As intervenções do Estado, do governo britânico que começam a agir para salvar um banco que foi nacionalizado, mas nunca usam essa palavra. Os norte-americanos falam, agora, de regulações e controles muito restritos para controlar a crise. Em todo caso, por trás da crise norte-americana, há uma estatística que não está presente, um dado que tem efeitos muito importantes, que é a diferença de riqueza entre os 10% da população mais rica dos Estados Unidos em relação aos 90% mais pobres. É, agora, a maior desde 1928. Essa é a situação real.

Finalmente, o senhor crê que, de algum modo, a esquerda necessita, além das ações de resistência ao capitalismo, propor alternativas reais ou ao menos tentativas de ação, que sirvam de exemplo e inspiração? Qual sua opinião sobre esta perspectiva?

Sim, creio que é preciso fazer isso, mas não é fácil, porque, atualmente, a hegemonia cultural e política do sistema capitalista é muito forte, é realmente forte no sentido gramsciano da palavra. Para criar uma contra-hegemonia, devemos criar "contra-instituições", e necessitamos também alimentá-las com novas idéias. Quando, em 1947, Friedrich Hayed e outras pessoas criaram a Mont Pelerin Society, um grupo de liberais opostos ao socialismo, os keynesianos acreditaram que era um pequeno grupo de gente louca. Mas seguiram ativos, debatendo e, cada vez mais presentes, até que, nos anos 1980, Reagan e Tatcher deram apoio a essas idéias. Creio que a esquerda necessita de fortes "think tank" (instituições ou grupos de pesquisa), que não façam nada, mas proponham pensamentos estratégicos. Pode ser que estejam equivocados, mas é importante que comecem a fazê-lo. Por exemplo, que discutam como seria uma economia socialista, que aprendam, e nos ajudem a aprender sobre os erros cometidos durante sete décadas na União Soviética e o que realmente aconteceu; que investiguem qual seria o papel do mercado em uma economia socialista; que proponham como controlar essa economia ou qual seria o papel que deveriam ter os cidadãos em geral e qual seria o papel concreto dos trabalhadores etc.

Precisamos pensar em todas essas coisas se queremos sair na frente. Até agora, tem se realizado poucas análises desse tipo.

Depois de agradecer seu tempo e suas respostas, queremos lhe fazer uma proposta. Parece bem ao senhor que, antes de finalizar esta conversa, a dediquemos ao soldado venezuelano que, com grande dignidade, se opôs a que triunfasse um novo episódio na história universal da infâmia durante o golpe contra Chávez? Poderia nos resumir brevemente essa história que explica em seu livro?

Me parece uma boa idéia. Essa é a história. No momento do golpe fascista contra Chávez e a revolução bolivariana, um general do exército que apoiou o golpe saiu do palácio de Miraflores informando a banda militar do palácio que estava a ponto de aparecer um novo presidente e que, como de costume, deveriam tocar o hino nacional. Como os soldados não o obedeceram, o general irritado virou-se contra um jovem de 18 anos na banda e lhe deu ordem expressa para tocar quando viesse o novo "presidente". O soldado lhe respondeu com essas palavras: "Desculpe, general, de que presidente está falando? Nós só conhecemos um, o presidente Hugo Chávez". O general, enfurecido, lhe disse energicamente que se calasse e obedecesse a suas ordens. O admirável soldado, então, entregou seu instrumento ao general golpista e disse: "Parece que você gosta muito da corneta. Tome, toque você".

Fonte: Brasil de Fato.

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