Alcino Ferreira Camara Neto
e Matias Vernengo*
Introdução
O Brasil estagnou nos últimos anos, antes mesmo da crise atual, não tendo participado da expansão dos primeiros anos do século XXI (a despeito da recém-abortada aceleração do crescimento, a média de crescimento do Brasil de 2002 até 2008, perto de 3,8%, permaneceu abaixo do crescimento global até a crise, de aproximadamente 4,5%), também conhecida como Bretton Woods revivido que beneficiou muitos países periféricos, nem tampouco nas últimas duas décadas do século XX, porque, em última análise, o crescimento não é essencial para a acumulação de capital. Construímos na periferia capitalista um paraíso do capitalismo rentista. Nossa elite globalizada e cosmopolita manteve os padrões de consumo compatíveis com o centro capitalista. E se nosso atraso e estagnação relegam à miséria mais abjeta boa parte de nossa população, numa sociedade com passado colonial e escravista, isto não tira o sono de nossas elites.
Este passado que faz do Brasil uma das sociedades mais injustas do mundo levou-o a ser denominado Rússia Tropical por um de nossos mais famosos cientistas sociais. De fato, segundo Gilberto Freyre (1933, p. 51) “nesta espécie de Rússia americana que é o Brasil – de mística revolucionária, de messianismo ... sente-se o laivo ou o resíduo masoquista.” Por isso aqui haveria “menos a vontade de reformar ou corrigir determinados vícios de organização política ou econômica que o puro gosto de sofrer” (ibid. p. 52). Se Gilberto Freyre via na formação agrária, escravista, apoiada na grande propriedade e no monocultivo do açúcar o balizamento da formação cultural do Brasil, nos parece que na transformação da economia após a crise da dívida nos anos 80 podem entender-se as características centrais de nossa sociedade, que se recusa a crescer e distribuir os frutos do desenvolvimento.
O masoquismo de nossas políticas monetária e cambial só pode ser entendido à luz da formação de uma classe rentista com padrões de consumo internacionalizados, os modernos senhores de engenho, que vivem das nababescas remunerações de suas contas bancárias, possibilitadas pelo Banco Central, a Casa Grande da globalização financeira. Para esta elite, que vive dos gastos exorbitantes com a conta de juros, os problemas da atual senzala, a favela, fazem lembrar “aquele mórbido deleite em ser mau com os inferiores” que seria “bem nosso,” e aparentemente ainda é (ibid. p. 370). A chibata de antanho é a taxa de juros Selic, que impõe a disciplina do mercado, supostamente essencial ao desenvolvimento.
Se a Casa Grande e a Senzala criaram uma sociedade desigual e polarizada, a Conta de Juros Grande e a Favela potencializaram nossas iniquidades. O sentido da colonização, a produção de bens primários para o mercado internacional e a necessidade da mão-de-obra escrava relegaram os grupos sociais não diretamente envolvidos nessas atividades à marginalidade econômica, como meros apêndices. Na nossa formação tivemos uma sociedade de senhores e escravos, o resto sendo apenas desajustados.
De fato, Caio Prado Júnior (1942, pp. 281-82) dizia que: “entre estas duas categorias [senhores e escravos] definidas e entrosadas na obra da colonização, comprime-se o número, que vai avultando com o tempo, dos desclassificados, dos inúteis e inadaptados; indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma.” De alguma forma isto ainda é verdade. Entre os rajás financeiros e os intocáveis trabalhadores informais da favela comprime-se a maioria da população brasileira, envolvida em tarefas produtivas que são secundárias para a lógica do nosso capitalismo, embora sejam, ou deveriam ser, centrais para o desenvolvimento.
O problema é que, da crise da dívida para cá, criou-se um sistema no qual o crescimento é, por assim dizer, inorgânico, desnecessário e subsidiário para o funcionamento da economia. A especulação e o biscate, a riqueza fácil e a miséria ubíqua, são centrais, para entender nossa sociedade. A economia produtiva é, de certo modo, inadaptada, como dizia Caio Prado. Por isso mesmo, a estagnação é instrumental para a acumulação de capital. Na verdade, esta patologia não é um fenômeno local.
Nossa elite rentista é o resultado de um fenômeno global, que se iniciou com o colapso da ordem monetária de Bretton Woods nos anos 70. Da Grande Depressão, e, em particular, a partir da Segunda Guerra Mundial, até o colapso do sistema de taxas de câmbio fixas em 1973 os fluxos de capital foram mantidos sob controle. Com isso, como queriam os arquitetos de Bretton Woods, as taxas de juros foram mantidas em níveis relativamente baixas, possibilitando a expansão dos gastos sem, contudo, levar ao endividamento insustentável.
Se por um lado as taxas de juros baixas permitiram a expansão do crédito, o consumo de massas, e o endividamento estatal para o alargamento dos benefícios sociais, particularmente nos países centrais, de outro, os rentistas, aqueles que vivem da remuneração do capital, sofreram perdas relevantes. Ao longo dos anos 50 e 60 os bancos americanos foram criando um mercado paralelo, fora dos EUA, e, portanto, não regulado pelo FED. O euromercado foi a ponta de lança da liberalização financeira (Helleiner, 1994).
A abertura financeira e a elevação das taxas de juros a partir da posse de Paul Volcker no FED mudaram radicalmente a estrutura do sistema monetário e financeiro internacional. A eutanásia do rentista de Keynes transmutou-se na revanche dos rentistas, como diria Pasinetti (1997). As taxas de juros mais elevadas dificultaram os gastos do governo, incrementando o peso financeiro da dívida, e aumentando os gastos com encargos da dívida em detrimento dos encargos sociais. Um mundo mais favorável aos credores do que aos devedores implicou menores taxas de expansão da demanda, e maiores níveis de desemprego. Estes, por sua vez, reduziram o poder de barganha da classe trabalhadora e mantiveram em xeque as pressões inflacionarias.
Isto levou a uma deteriorização da distribuição de renda, tanto no centro como na periferia. No caso dos EUA, a distribuição de renda hoje atingiu os mesmos níveis de desigualdade de antes do New Deal de Roosevelt (Piketty e Saez, 2003). Embora alguns autores argumentem que a desigualdade teria sido causada pelas mudanças tecnológicas, que aumentaram o prêmio à educação (e.g. Goldin e Katz, 2008), como mostrado por Krugman (2007), foram as mudanças políticas dos anos 70 que permitiram a revolução contra as políticas redistributivas da Era Dourada do capitalismo. Galbraith e Kum (2002) enfatizam o papel do choque dos juros do fim dos anos 70 na elevação da desigualdade no mundo como um todo.
A abertura financeira no Brasil começou lentamente como resultado da estratégia governamental para lidar com os dois choques nos preços do petróleo nos mesmos anos 70, mas somente foi completada nos anos 90, após o Plano Real. No Brasil, a partir de 1994, não somente as taxas de juros foram positivas e elevadas, mas invariavelmente tivemos as taxas mais altas do mundo.
No Brasil a forma mais fácil de ganhar dinheiro ainda é emprestando para o Estado. Basta adquirir títulos públicos para ganhar taxas de remuneração espetaculares. A riqueza fácil de uns, entretanto, está assentada na miséria das massas. Como era de se esperar, a distribuição de renda piorou, e os salários como proporção da renda foram comprimidos em quase 10%, ao mesmo tempo em que os salários médios caíram, a despeito do ufanismo da mídia e de parte dos economistas, que sugerem erroneamente que a distribuição melhorou e que somos um país composto majoritariamente pela classe média.
A política macroeconômica do governo, desde o Plano Real, e ainda durante o governo Lula, sustentou e amplificou as desigualdades centenárias do nosso país. A política fiscal, fundamentada nos permanentes superávits primários, é o principal elemento da nossa ortodoxia econômica. Os gastos exorbitantes com os juros, que alimentam a conta de juros grande, implicam que nossos governos estão fundamentalmente a serviço dos rentistas. Mas isto somente é possível pela coordenação com a política monetária, que mantém as taxas básicas de juros reais mais elevadas do planeta.
A política monetária, por sua vez, está assentada na independência operacional do Bacen. A independência do Bacen, por sua vez, depende de uma teoria peculiar, segundo a qual este somente pode afetar a inflação no longo prazo, e qualquer desvio desta meta reduziria sua credibilidade, repercutindo negativamente em sua relevância como instrumento anti-inflacionário. A evidência empírica, entretanto, para a proposição de que os bancos centrais, aqui ou alhures, não têm efeitos reais sobre o nível de atividade é inexistente.
Na verdade, a evidência sugere que os bancos centrais têm pouca capacidade de controlar a inflação quando esta é de custos, e eles têm efeitos significativos sobre o nível de atividade, no curto e no longo prazo. Em outras palavras, o Bacen pode reduzir o crescimento médio da economia, e ao mesmo tempo pode não ser instrumental para manter a inflação sob controle. Nos últimos anos, parece claro que o Bacen ao manter a taxa básica em níveis estratosféricos foi central para explicar o desempenho comparativamente pobre da economia brasileira.
Pior ainda, a aceitação da independência operacional do Bacen, e o medo demonstrado pelo PT ao escolher um presidente para a instituição que não era ligado ao partido, ou às ideias do partido, mas que vinha do mercado financeiro, e, portanto, os acalmaria, mostra que vitórias eleitorais não são suficientes para alterar a política econômica. Esta dependeria muito mais do que os mercados demandam do que o que o eleitorado votou. Isto implica que o significado da democracia não é bem aquele que a maioria julga ser.
Democracia e Banco Central independente
Para muitos a democracia resulta da existência de mecanismos formais que garantem a eleição do presidente pela maioria da população, e a proteção dos direitos das minorias. Poucos, se é que algum, analistas associam a democracia com as instituições econômicas. A partir dos anos 80, e crescentemente nos anos 90, os economistas passaram a defender a ideia da independência dos bancos centrais. Embora isto seja defendido como medida técnica, tem efeitos profundos sobre o processo democrático.
Não é surpreendente que a profissão tenha passado a defender a independência do banco central no mesmo período em que houve uma maior liberalização financeira. O papel do discurso sobre a independência do Banco Central é prestar autoridade aos argumentos favoráveis aos mercados financeiros. A estabilidade financeira e os ganhos reais dos rentistas estariam acima do bem e do mal. Interessantemente, a crise americana, que começou em agosto de 2007, pode representar o começo do fim da chamada vingança dos rentistas.
Ben Bernanke disse, há poucos meses, ao anunciar o resgate da gigante dos seguros AIG, que “não existem ateus nas trincheiras ou ideólogos em crises financeiras”. De fato, nenhum liberal ortodoxo, avesso à intervenção estatal, foi encontrado para criticar as medidas do FED e do Tesouro. Fica claro neste momento que frente à profundidade da crise um pacote fiscal considerável maior até do que o que foi recentemente aprovado será necessário para tirar os EUA da recessão.
Poderíamos dizer, em certo sentido, que a frase de Nixon – “agora somos todos keynesianos” – continua válida, já que ninguém questiona a necessidade de intervenção estatal, mas apenas a forma mais adequada da intervenção já que, ainda que timidamente, todos, até os antigos arautos de desregulamentação, do estados mínimos e da privatização, começaram a concordar que os mercados não são autorregulados. A desregulamentação é vista, pela maioria, como a principal causa da débâcle de Wall Street, e a necessidade de re-regular passou a ser vista com bons olhos.
O Federal Reserve, embora criado em 1913, teve sua estrutura reformada em 1935, durante o New Deal de Franklin Delano Roosevelt. Foi nesse período que a função de emprestador de última instância e a necessidade de coordenar a política monetária e fiscal foram estabelecidos como princípios de boa administração macroeconômica. Em meio à maior crise financeira desde a Grande Depressão as instituições criadas durante o New Deal mostram como, apesar de quase três décadas de revoluções conservadoras, atuam no mesmo espírito com o qual foram desenhadas e até mesmo estendem suas funções, resgatando instituições que não estariam na alçada do Fed.
A importância da recuperação norte-americana para o resto do mundo, e para o Brasil, não pode nem deve ser minimizada. Apesar das repetidas afirmações de economistas do governo e do mercado sobre o descolamento da economia brasileira dos mercados externos ou sobre nossa capacidade de manter taxas de crescimento superiores ao do resto do mundo, em particular o mundo desenvolvido, estamos, como seria de se esperar após anos de liberalização, mais integrados à economia global. Ou seja, se a crise americana não for contida e atingir proporções dramáticas, terá efeitos ainda maiores sobre a Ásia e a Europa, não só diretamente, mas restringindo o crédito e a capacidade de importações dessas regiões e tendo um efeito multiplicador que nos atingirá em cheio. Todas as regiões – e não somente os EUA – com as quais comerciamos seriam afetadas, e nossa capacidade de importar ficaria limitada, exigindo uma contenção da demanda doméstica.
Além disso, a crise já está tendo outros efeitos sobre a economia brasileira que poderão até se ampliar. Não é surpreendente que os preços de várias commodities, que cresceram significativamente desde 2002, tendo efeitos positivos na balança comercial de vários países periféricos, incluído aí o Brasil, tenham parado de subir e algumas venham a cair de forma significativa. Isto imporá adicionais restrições à capacidade de financiamento dos déficits em conta corrente. A tese do descolamento, portanto, não se sustenta.
O keynesianismo, longe de ser contraditório, ou representar um “novo socialismo”, como sugeriu Nouriel Roubini recentemente (até porque há décadas que os Republicanos são mais keynesianos que os Democratas, que se transformaram no partido da responsabilidade fiscal) é parte da estabilidade institucional dos EUA.
Ao contrário do Brasil, e desde a depressão, as políticas macroeconômicas por lá são anticíclicas. Nesse sentido, a despeito da retórica sobre a necessidade de restabelecer a responsabilidade fiscal após os 8 anos de George W. Bush na Casa Branca, o que se pode esperar nos próximos quatro anos são déficits fiscais crescentes e maior endividamento público. Mesmo com a expansão fiscal, e com taxas de juros moderadas, o desemprego irá aumentar. Há ainda a possibilidade de que a crise se estenda por um período mais longo do que esperado anteriormente e tenha efeitos similares aos da crise que se abateu sobre a economia japonesa na década de 1990, com consequências muito maiores para o resto do mundo.
Enquanto isso no Brasil a crise tem levado a uma redução gradual e lenta das taxas de juros pelo Bacen, e a uma redução tímida da meta de superávit primário (ainda alta), a despeito de já se notar reações em certos setores do governo, especialmente no Ministério da Fazenda, que pregam uma queda mais acentuada. Apesar disso, é bem possível que a taxa de câmbio se desvalorize, como de fato já tem ocorrido, e que a economia desacelere, apesar de já estar crescendo menos do que a média da América Latina, desempenho que se repete por quase todo o período de expansão na região (2003-2008).
A solução para a crise, que virá e será significativa no Brasil, passa por fazer do Bacen uma instituição que responda aos anseios da sociedade, e que, portanto, seja independente do mercado financeiro e dos interesses dos rentistas, mas não do governo eleito pelo povo. Sem comprimir a Conta de Juros Grande não há solução nem para crise, no curto prazo, nem para a miséria da favela. Sem democracia de verdade, que passa por acabar com a independência do Bacen, não reduziremos nossa imensa dívida social.
À guisa de conclusão
Acreditamos que a crise financeira, lastimavelmente, não servirá para que reavaliemos as políticas dos últimos 6 anos. A notícia de que, em função da queda da receita tributária, pretende-se cortar gastos e reduzir a política de contratação e recuperação salarial que vinha sendo anunciada reforça a tese de que não teremos uma transformação de política na direção e na magnitude que se necessita. Entre o medo de arriscar do governo e a invulnerável fortaleza das elites rentistas acasteladas no Comitê de Política Monetária (Copom), restam poucas esperanças.
É provável, portanto, que a opressão da conta de juro grande sobre a favela se mantenha, e que nosso déficit democrático continue favorecendo os privilegiados que votam no Copom, em lugar dos pobres coitados que o fazem em seus respectivos distritos eleitorais!
Fonte:Desemprego Zero.
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