Em São Paulo, resolveram levantar um memorial em homenagem aos advogados que defenderam os perseguidos da ditadura. Ideia excelente e ainda melhor pelo fato de não haver a menor interferência do poder público. Já houve tentativa igual em Brasília, mas na capital da mordomia a resistência foi muito pouca.
Aproveitando a oportunidade, vou atender pedido de muita gente, que há anos, das mais diversas formas, me pedem para identificar advogados que mais defenderam perseguidos, como Sobral Pinto (foto). Duas ressalvas. Num esforço de memória, recordei 20 advogados, sempre à disposição, é possível e até compreensível que existam outros, mas os principais estão aqui. Desculpas a advogados paulistas e de outros Estados, são muitos, me concentrei no Rio.
DESSES 20, SÓ UM COBRAVA PELA DEFESA
Escritórios em grupos e advogados isoladamente não cobravam coisa alguma, nem mesmo custas e despesas obrigatórias das defesas. Só um não abria mão do pagamento, era o criminalista Heleno Fragoso. Devia ter os seus motivos, que certamente não eram financeiros. Muitos perseguidos não tinham como pagar, eram socorridos por outros advogados. Que se entregavam desveladamente a essas causas, muitas vezes arriscando a vida e a liberdade.
SOBRAL PINTO
Começo com ele, podia começar por outro. É que Sobral, além de grande advogado, desprendido, combativo, era de notável sinceridade. Suas cartas ficaram famosas, poucos deixaram de recebê-las. Pouco antes do golpe, foi um dos quatro advogados que me defenderam. Fez a defesa oral, magnífica.
Mais ou menos 10 dias depois do julgamento, recebi uma carta dele: “Helio, estou muito satisfeito de ter participado da tua defesa, você devia ter sido absolvido por unanimidade. Mas quero deixar bem claro que existem entre nós grandes diferenças políticas e ideológicas”.
SOBRAL DEPOIS DO GOLPE
Anticomunista convicto e irrefutável, cumprimentou Castelo Branco pela posse em 9 de abril de 1964. Os golpistas tanto falaram que “estavam salvando o Brasil do comunismo”, que Sobral acreditou. Mas com o aumento brutal da tortura, fez um reexame de sua posição.
E no dia 29 ainda de abril, mandou uma das cartas a Castelo Branco: “O senhor é Chefe do Estado Maior do Exército, não pode estar fingindo de presidente”. Enorme repercussão, embora ninguém se arriscasse a publicar a carta. Telefonei para Sobral, pedi autorização para revelá-la, só a Tribuna publicou.
COMO ADVOGADO, FOI PRESO 3 VEZES
A ditadura não respeitava ninguém, Sobral não se submetia nem se intimidava. Defendia muitos presos na Justiça Militar, embora contestasse essa instância. Com aquele vozeirão, quando lhe davam a palavra, respondia: “Não tenho nada a dizer a vocês” (ficavam furiosos, gostavam se serem tratados como senhores), “não têm poderes para julgar civis, por isso se chama Justiça Militar”.
Os presidentes dessas Juntas tentavam silenciá-lo, “faça a defesa, é a sua vez”. E Sobral, gritando: “Vocês estão exorbitando, soltem meu cliente”. Era preso, levado para uma delegacia, o que aconteceu três vezes.
Nessa terceira prisão, foi levado para uma delegacia desativada, ficou vários dias, ninguém sabia onde. A OAB decidiu: quando o doutor Sobral fosse a uma Junta Militar, deveria estar presente, sempre, um advogado representando a OAB.
A RUMOROSA PRISÃO DELE EM 1968
Foi a Goiás fazer uma conferência, convidado pelo governador Otávio Lage. Em pleno AI-5, o mais truculento de todos os decretos ditatoriais, foi preso e retirado da tribuna, com o governador perplexo e estarrecido. Levado e desaparecido por vários dias, repercussão nacional, acabou solto.
Continuou como defensor dos perseguidos, desassombrado. Não apenas ele. No seu escritório, se destacaram com defesas heroicas: Oswaldo Mendonça (que também me defendeu, só na Justiça Militar fui processado 27 vezes), Bento Rubião, Paulo Arguelles.
ELY MOREIRA
Não muito conhecida do público, admirada pelos colegas. Notável desprendimento, dignidade, dedicação à humanidade. Com paralisia infantil desde pequena e dificuldades financeiras, fez um curso tão brilhante, que foi aplaudida de pé quando recebeu o diploma.
Montou um escritório com 3 ou 4 colegas, morava no subúrbio, vinha de trem até a Central e a pé até a Rua Dom Manuel, onde é hoje o Tribunal de Justiça. Incansável, dedicada, era das poucas respeitadas pelas Juntas Militares. Ninguém sabia como conseguia sobreviver, com a doença, a falta de dinheiro e o trabalho que consumia o dia todo.
DE DEFENSORA DE PRESOS
À COMISSÃO DA VERDADE
À COMISSÃO DA VERDADE
Seu nome é Rosa Cardoso, trajetória exemplar. Está desperdiçando tempo. Se a Comissão fosse criada com todos os torturadores vivos (inclusive os que se chamavam de “presidentes’), tudo bem. Mas quase 35 anos depois?
Marcelo Cerqueira também com muitas defesas sérias. Mais tarde presidente do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros), que fora presidido por Rui Barbosa.
MODESTO DA SILVEIRA
Não tenho espaço correspondente aos serviços que prestou. Notável, competente, coordenador, exemplar. Eram tantos processos, que advogados criaram “grupos coletivos de defesa”.
Todos queriam Modesto para organizar os grupos. Estavam com a razão, que competência. Está em atividade até hoje, mais reverenciado do que nunca.
EVANDRO E RAUL LINS E SILVA
Me defenderam sempre, antes do golpe. Quando Evandro tomou posse na Academia, minha filha Ana Carolina Fernandes, grande profissional, foi fotografá-lo para a Folha. Conhecendo Ana Carolina, muito amiga do seu neto, disse para ele, “defendi seu pai 8 vezes”. Ela, irreverente, perguntou: “Quantas vocês ganharam?”. E ele, com a risada de sempre, respondeu: “Adivinha?”. Todas, lógico.
Eu ia ao escritório da Primeiro de Março. Técio e Raulzinho, filhos de Raul, andavam lá ainda de calças curtas. Técio começou a advogar sem diploma. Raulzinho, notável desembargador, aposentado há pouco tempo.
Raul e o irmão Evandro, inteiramente dedicados à causa pública. Raul morreu em 1968, o ano do AI-5. Sabia que estava doente, foi embora numa quarta-feira, tinha julgamento importante no dia seguinte, quinta. Disse para o filho Técio: “Se eu não puder comparecer amanhã a esse julgamento, vá no meu lugar, não podemos deixar sem advogado um perseguido político, preso e torturado”.
É evidente, Raul já não estava em condições de ser advogado de ninguém, nem mesmo dele, “lá em cima”, sua absolvição estava garantida. Técio saiu do enterro (comigo), foi para o Tribunal. O juiz (uma pena que não saiba o nome dele) podia ter impedido, sabia que Técio ainda não era formado. Terminando, o juiz disse: “Bela defesa, doutor”. Com isso, honrou a justiça e a humanidade.
EVANDRO, CHEFE DA CASA CIVIL DE JANGO
Em 1961, o tresloucado Janio Quadros mandou o vice João Goulart para o outro lado do mundo e renunciou. Evandro estava na comitiva, quando Jango foi liberado para assumir, convidou Evandro para Chefe da Casa Civil. Evandro me chamou no escritório, contou o fato e disse: “Agora não posso ser mais teu advogado nem o Raul. Como você naturalmente vai para a oposição, não tem sentido o Raul defender um oposicionista como você”.
Continuou: “Mas você não ficará sem advogado. Vou te indicar um jovem que será um dos maiores criminalistas e juristas do Brasil. Seu nome é Evaristo de Moraes Filho, eu comecei com o pai dele, o patrono dos advogados do Brasil, ele começou comigo. Assim teve início uma grande amizade e ganhei dois advogados, pois Evaristinho tinha sociedade e escritório com George Tavares, outro notável e histórico advogado.
ANTES DO GOLPE E DEPOIS DO GOLPE
Fizeram a defesa antes de 1964, em dois processos. Mas depois não pararam mais. Toda a fase dos desterros, sequestros, confinamentos, foi com eles. No dia em que fui intimado a comparecer à Polícia Federal, em 1967, na Rua da Assembleia, 70, almoçamos num restaurante ali perto, atravessamos a rua, nos apresentamos ao delegado, às 3 da tarde em ponto, como fora marcado.
No almoço, talvez sentindo que eu não estava à vontade, Evaristinho e George me disseram várias vezes: “Helio, não vai acontecer nada. Nunca acompanhamos um cliente intimado a prestar depoimento, que ele fique preso”. Era verdade, mas não em nosso caso.
EVARISTINHO
Fora dos meus julgamentos, onde não havia praticamente defesa, só acusação, Evaristinho construiu reputação notável. Na defesa final, fazia os juízes chorarem, que poder de exaltação. Morreu muito cedo, num câncer que o matou em menos de um ano.
Almoçávamos sempre. Mas até hoje não me esqueço dessa, que só fui entender meses depois. Evaristinho me disse: “Helio, estou pensando em abandonar a advocacia, os processos são longos, muitas apelações, não tenho mais paciência”. A conversa daquele dia era a comunicação que não compreendi, mas até hoje não esqueci.
GEORGE TAVARES
Outra figura que merece e recebeu todos os louvores. Sem Evaristinho, defendia também muitos presos políticos. Com Augusto de Moraes Rego, fizeram duas defesas em Juntas Militares, não saíram, foram postos num camburão e “jogados” no fim do mundo. Ficaram quatro dias presos, depois levados, George para Jacarepaguá e Augusto para outro local ignorado. Também foram soltos por intervenção da OAB, inquestionável.
PS – Em 1936, quando Prestes foi preso por causa da Revolução Comunista de 1935, a OAB indiciou Sobral Pinto para defendê-lo. Anticomunista, Sobral aceitou defendê-lo, Prestes é que não queria.
PS2 – Palavras de Prestes: “O que esse mocinho (Sobral eram muito jovem) vai conseguir é que eu fique a vida inteira na prisão”.
PS3 – Prestes só aceitou mais tarde, quando a mãe do Brigadeiro Eduardo Gomes convenceu-o de que Sobral era grande advogado, e não ligava para o fato dele ser comunista.
PS4 – Ficaram amicíssimos, quando Prestes voltou do exílio, em 1979, quem estava no aeroporto para abraçá-lo? Doutor Sobral, como 86 anos de idade.
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