terça-feira, 12 de agosto de 2014

ECONOMIA - A Bolsa, onde tudo faz sentido.


A Bolsa, onde tudo faz sentido
Negócio da dívida, controle de empresas privadas, especulação à velocidade da luz. A Bolsa não é apenas uma das engrenagens-chave do sistema capitalista − desde sua aparição, encarna um propulsor fundamental: a insaciável busca do poder de gerar cada vez mais dinheiro
por Paul Lagneau-Ymonet, Angelo Riva

Situada na confluência da racionalidade estatal com as lógicas de mercado, a Bolsa é, ao mesmo tempo, um lugar, um dispositivo de troca e um espaço social. No início, era o local de reunião e principal círculo de encontro de particulares, pessoas de negócios, intermediários legais e astutos. O acesso à Bolsa, em geral um edifício de prestígio distinguido em meio à paisagem urbana, foi por muito tempo objeto de conflito entre esses ocupantes. Ter um lugar garantido onde se realizavam as trocas comerciais era a melhor maneira de ter acesso a benefícios. O desenvolvimento das telecomunicações e da informática a partir da década de 1980 fez com que se especulasse sobre o fim da dimensão geográfica das atividades da Bolsa. Contudo, a localização desses estabelecimentos não se modificou na mesma medida que o progresso da técnica permitia imaginar. Ao contrário, suas atividades se concentraram ainda mais em algumas metrópoles, em estado de concorrência intensa e contínua: Londres, Paris, Frankfurt, Zurique e Genebra, na Europa; Nova York e Chicago, nos Estados Unidos; Tóquio, Hong Kong, Xangai e Cingapura, na Ásia Oriental. Instituições financeiras públicas e privadas, tanto concorrentes como complementares, se concentram nesse espaço que reúne mão de obra altamente especializada. A concentração física favorece o intercâmbio de informação cujo valor não se reduz ao seu conteúdo: nos negócios, a forma de trocar informação é tão importante quanto a própria informação, porque condiciona seu valor efêmero e seus usos possíveis. Enquanto as maiores instituições financeiras do mundo (bancos, fundos de investimentos, fundos especulativos) utilizam computadores e algoritmos cada vez mais poderosos e rápidos, as Bolsas se esforçam para manter seus servidores de informática o mais próximo possível de seus melhores clientes. Dessa forma, a Bolsa de Paris decidiu transferir seus computadores para a periferia de Londres e alugar espaços que protegem os financistas da cidade para que eles ganhem um punhado de nanossegundos na transmissão de suas ordens para a Bolsa.
Trocas comerciais
Dentro de uma Bolsa, seja ela um monumento arquitetônico ou um emaranhado de redes informáticas, materializa-se sua segunda dimensão: um dispositivo de trocas comerciais. A formação dos preços empíricos com os quais se realizam as transações resulta de duas confrontações pacíficas. De um lado, está o confronto entre compradores e vendedores de um ou mais tipos de títulos. A concorrência pela troca anima aqueles que estão prontos para comprar ou vender. De outro lado, entre os particulares ou as instituições que realizam trocas, se opõem o comprador e o vendedor: cada um quer fazer prevalecer seu interesse, contrário ao da contraparte. É a confrontação sobre os termos de troca.1 Se os dispositivos que permitem o desenrolar desse comércio variam segundo cada país e época, todos cristalizam, nas regras formais e informais, as relações de força entre as partes desiguais que concorrem à troca. A distribuição dos ganhos das operações da Bolsa entre essas partes e sua intermediação constituem o risco dessas lutas de “poder sobre o poder de definir as regras”.2
Intermediação
A Bolsa é, portanto, um espaço social atravessado por uma luta dupla: a troca e os termos dessa troca. A confrontação entre interesses dissonantes depende muito da intermediação. Agentes (hoje, os bancos) realizam, por meio de comissão, as transações dos que dão ordens de operações na Bolsa, mas que não querem ou não podem lutar diretamente pela troca e seus termos. Esses intermediários são concorrentes entre si e disputam as ordens de compra ou venda. Para fazer prevalecer suas posições, investem em estratégias particulares e coletivas inscritas nas relações de força que, para além da Bolsa propriamente dita, estruturam um espaço financeiro, subespaço do campo do poder nacional.3 Nesse espaço onde se disputa o poder sobre os diferentes poderes, definem-se as condições da autonomia e a capacidade de ganho dos financistas. Trata-se de um lugar financeiro que compreende de fato instituições e agentes públicos e privados (bancos, seguradoras, a empresa gestora da Bolsa, empresas cotizadas, gestores de ativos, autoridades de regulação, banco central e ministério das Finanças), ao mesmo tempo solidários – porque sempre estão em rivalidade com outros espaços na perpetuação das atividades financeiras, de investimento, intermediação ou gestão – e concorrentes em suas práticas profissionais e na definição de modos de funcionamento. A imposição de determinada organização de atividades em vez de outra é a forma de assentar uma posição, e a do ofício correspondente, contra as de outros interventores.
Entender a Bolsa como um lugar específico, um dispositivo de mercado e um espaço social impede referir-se a ela como o mercado por excelência. A plena compreensão das atividades financeiras obriga a restituir as dimensões sociais – ou seja, conflituosas e irredutíveis à perseguição atemporal de ganhos monetários – das instituições, dos agentes e suas práticas. As condições de constituição e funcionamento de uma Bolsa são, portanto, produtos das histórias locais cujas camadas sedimentadas formam a base do solo financeiro onde repousa. A longa duração dessa instituição não quer dizer que ela siga igual; revela, antes, as forças contrárias que (des)constroem sua mobilidade.
Concorrência interna e externa
No princípio dessas dinâmicas, em geral centenárias, estão intricadas as relações de concorrência e de complementaridade no seio de cada espaço, por sua vez concorrentes de outros espaços financeiros nacionais ou estrangeiros. Essas relações de poder se imbricam em processos de disputa para a elaboração de regras que se repetem em diferentes escalas: formas comuns de servir às regulações oficiais, sejam ditadas nacionalmente ou, como é o caso atualmente do direito aplicado aos negócios, produzidas internacionalmente e em seguida transcritas localmente.4 Assim, as instituições financeiras e seus agentes, notadamente uma Bolsa e seus intermediários, possuem seus próprios ritmos em função de suas posições relativas em um ambiente financeiro e outros espaços sociais nos quais elas se inscrevem e com os quais interagem.
As tentativas recentes de fusão entre operadores de Bolsas nacionais – que a partir da década de 2000 passaram a ser oriundos principalmente de empresas privadas elas próprias cotizadas nos mercados geridos por elas – lembram como, apesar da desmaterialização das trocas financeiras, a localização das atividades da Bolsa ainda é um desafio crucial. Em 2011, a Bolsa de Londres tentou tomar o controle da de Toronto; e a de Cingapura falhou em tentar comprar a de Sydney, porque industriais canadenses e o governo australiano se opuseram, por medo de perder o controle de uma instituição organizadora da economia nacional. Quanto à New York Stock Exchange (NYSE), que possui, entre outras, a Bolsa de Paris desde 2007, ela não pôde se fundir com a Deutsche Börse: a direção-geral da concorrência da Comissão Europeia considerou que essa agrupação constituiria um grande monopólio na Europa, e o Land de Hesse (cujos poderes regulamentários se estendem à Deutsche Börse, localizada em Frankfurt) não quis aceitar uma fusão-aquisição transnacional que poderia afetar a fortaleza frankfurtiana de empregos qualificados.
Regulação
Se por um lado as Bolsas não são mais lugares de encontro físico entre compradores, intermediários e vendedores de títulos financeiros, por outro suas localizações constituem ainda hoje centros de poder: determinam suas jurisdições e, por consequência, a capacidade dos poderes públicos e das instituições financeiras privadas de determinado campo de poder nacional de promover seus interesses contra os de outras economias nacionais. Como dizia Max Weber em 1896: “A Bolsa não pode ser um clube de ‘cultura ética’. […] Os capitais dos grandes bancos já não são melhores que os fuzis e os canhões”.5
Antes de se perguntarem de qual país sairá a próxima “mega-Bolsa” (de que serve celebrar os sucessos capitalistas de empresas privadas que não param de praticar a arbitragem regulamentária entre países e de servir aos interesses “crematísticos” de seus acionários?), os poderes públicos (regionais, nacionais e inter ou transnacionais) deveriam recorrer aos meios dos quais dispõem apesar de tudo – a regulamentação estritae as pressões políticas – para que as Bolsas cumpram sua função histórica: conter e ordenar o comércio de capital em determinado território.
 

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