Numa escola em Havana, a Revolução e seu legado
"Em tempos de
retomada das relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos, vêm à
tona as contradições centrais não resolvidas pelo processo
revolucionário", analisa Carlos Moacir Vedovato Junior, Membro das equipes de português do Colégio Santa Maria, Santa Cruz e do Cursinho Popular da ACEPUSP, em artigo publicado por Outras Palavras, 13-12-2015.
Eis o artigo.
Numa escola em Havana (Conducta, 2014), filme do cubano Ernesto Daranas, parece ter levantado, um debate interessante, ainda que restrito. Comentadores da educação, como Antônio Gois, compararam o filme ao célebre Entre os muros da escola (Entre les murs, 2008, de Laurent Cantet). Por outro lado, alguns críticos como Renato Hermsdorff, estabeleceram relações entre o longa-metragem cubano e o clássico de François Truffaut Os incompreendidos
(Les quatre cent coups, 1959). Tais comparações parecem ter como centro
apenas o conteúdo do filme. O que parece ter sido pouco analisado é a
maneira como a própria forma indicia as relações sociais da atual
sociedade cubana.
O filme narra a relação entre Carmela,
professora que leciona há muitos anos, e seus alunos numa escola na
capital da ilha. A professora busca superar a burocracia para criar um
ambiente de liberdade e respeitabilidade entre os alunos na sala de
aula. Entretanto, no início da narrativa, Carmela sofre um infarto e
precisa ser afastada do colégio. É, então, substituída temporariamente
por uma outra professora, mais jovem. Os alunos se solidarizam com a
professora antiga. A professora mais velha termina dividindo as aulas
com a mais nova para que possa voltar a lecionar. Durante o filme, o
espectador fica sabendo que Carmela dá aulas desde a Revolução Cubana.
Vale lembrar aqui a importância que a educação teve nos discursos da
revolução no início da década de 1960. Nesse sentido, o fio condutor da
narrativa está vinculado a um trabalho fundamental para a Revolução de
1959: o ensino.
Entre os alunos da escola estão Chala, um “menino problemático”, que trabalha para sustentar a mãe dependente química, e a menina Yeni,
melhor aluna da classe, filha de um trabalhador ilegal em Havana por
ser de uma província (Holguín) e não da capital. No decorrer da
narrativa, sabemos, pelas imagens, dos lugares degradados pela pobreza
em que ambos moram. Além disso, há sequências em que são vistos Chala
cuidando de cães para briga e capturando pombas – subempregos para “pôr o
pão na mesa”, como diz a professora, num dado momento do filme. Também o
pai de Yeni trabalha também em condições precárias. A construção das
duas personagens (o menino e a menina) está ligada, dessa maneira, ao
trabalho. Além dos ambientes internos, particularmente de casas, em que
se flagra a pobreza dos trabalhadores, Numa escola em Havana
capta, por vistas panorâmicas, aspectos decadentes da capital: prédios
antigos, deteriorados, marcas da história; ao mesmo tempo, as imagens da
escola apresentam um espaço bastante conservado.
A constância de dois
elementos formais configura a rítmica do filme: as sequências em que
vemos parte das crianças da escola na igreja, cantando à Virgem da
Caridade do Cobre (padroeira de Cuba) algo como “que a guayabera não se
manche de sangue” (a guayabera é a camisa típica dos cubanos). Nesses
momentos em que a canção religiosa é a trilha, também aparecem imagens
de adultos trabalhando e crianças estudando, todos aparentemente
felizes; e vemos os cães treinados por Chala, brigando de maneira
violenta (uma das sequências mostra o cão treinado pelo menino sendo
morto por outro). A antítese entre as imagens que marcam o ritmo da
narrativa é de ordem aparente, na medida em que ambas são fundamentadas
na lógica do trabalho dos cubanos: o trabalho idealizado com a canção religiosa e a violência da realidade material com o trabalho de Chala.
Há algo de
melodramático na construção da história do aluno com apenas onze anos e
de sua mãe (que indiretamente dá a entender que se prostitui), na medida
em que, além da crença na educação por parte da professora, um dos
temas centrais do filme é a criança que se esforça para sustentar a mãe
alcóolatra; entretanto, é preciso pensar as relações sociais da sociedade representada. Mais do que no Brasil, em Cuba
é bastante comum a situação de Chala: o subemprego para complementar a
renda da casa. A prostituição é também um dado do cotidiano de muitas
trabalhadoras e trabalhadores, particularmente em Havana
e em outros pontos turísticos da ilha. Dessa maneira, não se trata de
meros estereótipos folhetinescos, mas da realidade concreta dos
trabalhadores em algumas regiões de Cuba. Todas as situações por que
passa Chala terminam culminando com o modo de o menino estar na escola,
apresentando problemas de conduta (como indica o título do filme). No
entanto, não é apenas o menino que passa por dificuldades para estudar;
também Yeni (chamada pelos outros alunos de
“palestina”, por ser de outra região) não consegue se manter na escola,
na medida em que ela e seu pai (que está em Havana por uma única
“oportunidade” de trabalho), em função da lei, deveriam estar em outra
cidade.
Parece ser um princípio de composição a questão do trabalho, na medida em que as três personagens principais, Carmela, Chala e Yeni,
têm seus destinos diretamente influenciados por ele; no entanto, as
formas de trabalho dos três se opõem, revelando aspectos da sociedade
cubana atual, formando uma contradição.
De um lado, temos o
trabalho de Carmela, professora que ainda usa uma máquina de escrever
“para escutar as palavras”, como ela mesmo diz. O trabalho com a
educação é um dos pontos fundamentais para a construção do socialismo desde a Revolução Cubana
(um dos marcos do processo é a transformação de quartéis em escolas).
Em uma cena do filme, vemos a professora ensinando o pensamento de Jose Marti
(herói da independência cubana no século XIX) e, em outra, vemos as
crianças na sala de aula entoando uma canção que, segundo a letra,
mostra o desejo das crianças de serem como o “Che”. O
trabalho de Carmela é ambientado em um espaço conservado. Podemos lê-lo
como o conjunto de valores revolucionários e que parcela da população
pretende conservar. De outro lado, entretanto, temos as imagens de
degradação (em que muitas vezes vemos o busto de Jose Marti) da capital
cubana, em que se ambientam o trabalho precário de Chala e do pai de Yeni. Tais condições de trabalho ganham força no chamado “Período Especial”, em Cuba, crise que se inicia com o declínio da União Soviética,
e se evidencia durante toda a década de 1990. Essa, se a leitura não
estiver errada, parece ser a contradição central do filme.
Em tempos de retomada das relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos,
vêm à tona as contradições centrais não resolvidas pelo processo
revolucionário. A história (num mundo em que há um projeto histórico
revolucionário, como Cuba) e a ideologia entram em tensão com as
condições materiais do presente. O filme parece não apontar um horizonte
em que se mantenha o projeto socialista.
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