por Michelle Amaral da Silva
Desci do ônibus e caminhei tranquilamente. Havia muitos caminhões parados em ambos os acostamentos, com todos os caminhoneiro(a)s e suas famílias aparentemente já bastante habituados à situação.
Rodrigo Santaella
Depois do absurdo massacre, por muitos qualificado de genocídio, ocorrido na província de Pando em princípios de setembro, por muito pouco foi evitado – e provavelmente apenas adiado – um acontecimento similar na cidade de Santa Cruz de la Sierra.
Desde os dias 15 e 16 de setembro, algumas das mais importantes estradas que levavam à capital cruceña estavam bloqueadas pelos camponeses, como medida de pressão para que os governadores opositores (dos departamentos de Tarija, Santa Cruz, Beni e Pando) assinassem o documento que permite a convocação para o referendo de aprovação da nova Constituição boliviana.
Domingo, 21 de setembro, estive toda a tarde no “bloqueio-sul”, que estava instalado na localidade de “La Mora”, mais ou menos a 60 km de Santa Cruz. Para cruzar tais bloqueios, é necessário caminhar e ter a sorte de conseguir algum transporte do outro lado. Neste, especificamente, o trajeto era de mais ou menos 9km.
Desci do ônibus e caminhei tranquilamente. Havia muitos caminhões parados em ambos os acostamentos, com todos os caminhoneiro(a)s e suas famílias aparentemente já bastante habituados à situação. Antes de chegar à parte central do bloqueio, atravessei jogos de baralho, dominó, rodas de música e até um minifutebol.
Ao chegar no centro da organização dos camponeses responsáveis pela ação, conversei durante mais ou menos uma hora e meia com alguns deles, pois tinha a intenção de ficar uns dias lá para tomar umas notas a respeito da maneira como eles se organizavam e dos objetivos concretos da manifestação.
Não fui autorizado a ficar, como era de se esperar. Depois de uma rápida reunião que fizeram a mais ou menos dois metros de distância de mim, os dois que pareciam ser os líderes, pelo menos daquele setor, me argumentaram, falsa e cordialmente, que ali já havia muita gente. Me disseram para ir a outro bloqueio.
Nas entrelinhas, o que me disseram – e a situação deixou bastante claro – é que não podia permanecer ali porque não tinha nada que me credenciasse para tanto, e nada que me fizesse ter a confiança dos organizadores e dos milhares de participantes da movimentação. Além das minhas boas intenções e da minha mochila, levava comigo um sotaque portenho bastante carregado, um passaporte brasileiro e um caderno. Pouco mais de uma hora não era suficiente para explicar o porquê da minha vontade de ficar.
Em uma sociedade tão polarizada política e socialmente como está a boliviana nestes últimos meses, na qual o conflito social histórico se está convertendo em diversas oportunidades em luta concreta, é bastante legítima a preocupação dos grupos sociais organizados por manter distante quaisquer tipos de ameaças, por menores que sejam.
Vale ressaltar que, durante o curto período em que permaneci com os camponeses organizados e nas duas horas durante as quais estive caminhando, posso garantir não haver visto nenhum tipo de violência e armas de fogo. Sim, o que havia e sempre existe nas manifestações camponesas e indígenas bolivianas é a “caña hueca” (cana oca). É um pedaço de cana usada pela “polícia sindical”, uma arma quase simbólica usada para manter a organização nas assembléias e marchas. Disso sim estavam armados alguns camponeses.
Segui meu caminho a Santa Cruz de la Sierra a pé, lutando para acomodar a mochila em um ônibus lotado que, para a minha sorte, seguia esperando alguns caminhantes para ganhar um pouco mais de dinheiro. Chegando na zona urbana, começou a montar-se o quebra-cabeças que, com os três dias que permaneceria na cidade, viria a formar a motivação principal para o título deste relato.
A sociedade cruceña – e leia-se a sociedade cruceña que luta pela autonomia, porque alguns setores da cidade de Santa Cruz, como o Plan 3000, bairro popular de 250 mil habitantes, apóiam em massa o movimento camponês – estava se preparando para uma verdadeira guerra.
Já no ônibus, um senhor bastante amável de pele bem clara, bem vestido e com um boné da marca Tommy, me alertou: “tome cuidado ao falar com os camponeses, eles carregam muitas armas e estão sempre bêbados e drogados, o que os pode tornar bastante violentos”, depois de haver explicado durante 15 minutos como no resto do continente as notícias chegam distorcidas, e como agora em Santa Cruz eu iria perceber como esses movimentos são financiados desde o Palácio Miraflores e usam inteligência cubana para invadir “nuestra capital”.
No dia seguinte, já hospedado em um hotel (por 35 pesos bolivianos, cerca de R$ 10) bastante agradável e totalmente vazio, pude parar um pouco para observar os noticiários televisivos. “Santa Cruz cercada”, dizia o letreiro permanente na parte inferior da tela de um dos quatro canais privados da capital cruceña, enquanto se transmitia a entrevista de um parlamentar da bancada oriental que afirmava que “qualquer banho de sangue que aconteça na quarta-feira (24 de setembro), será responsabilidade total do governo do presidente Evo Morales”.
O clima de filme de ação prosseguia com a declaração do prefeito da cidade de Buenavista: “temos fontes confiáveis, das quais não posso revelar os nomes por segurança, que afirmam que os camponeses estão armados com dinamites e escopetas”. A imagem volta para a apresentadora, que anuncia que existem boatos de que foram vistos dois caminhões carregados totalmente com armamentos modernos e munições. A reportagem termina com a frase: “Estão se aproximando...” e segue para o intervalo. Faltavam dois dias para a chegada dos camponeses...
A idéia dos organizadores e dos milhares de participantes dos bloqueios era marchar até Santa Cruz, para, na quarta-feira, dia 24 de setembro, aniversário da cidade, entrarem todos na praça central (que se chama, justamente, praça 24 de setembro), local antes proibido por lei para os indígenas, e agora proibido simbolicamente.
Era isso que a sociedade cruceña autonomista queria evitar. E era para isso que era preparado o massacre. A marcha, além de um instrumento de pressão para que avançassem os diálogos entre governo e oposição em Cochabamba e para que os governadores oposicionistas assinassem o documento que garantisse o referendo de aprovação da nova Constituição boliviana, era também um ato simbólico para sentar presença camponesa no centro de Santa Cruz, no centro da oligarquia boliviana.
Isso me afirmou com todas as letras Juan Kea, jovem trabalhador do Plan 3000 e presidente da organização Juventud Igualitaria Andrés Ibañez, cuja família estava participando de um dos bloqueios e se somava à marcha. No fim do dia, o governador do departamento de Santa Cruz, Rubén Costas, afirmava que a recepção dos cruceños aos camponeses ia ser totalmente pacífica, e que não seria permitida a entrada de gente armada na cidade. Por outro lado afirmava que “caso venham para destruir nossa cidade, a população não vai recebê-los com 'aves-maria', e não poderemos nos responsabilizar pelas reações do nosso povo”.
No dia 23 de setembro, véspera do aniversário da cidade, fui ao Comitê Pró Santa Cruz, entrevistar o assessor da presidência, Jimmy Ortiz, com o intuito de coletar alguns dados para um artigo que pretendo escrever sobre a questão das autonomias na Constituição boliviana. No fim da conversa, por curiosidade, perguntei:
- E para o senhor, o que pode acontecer amanhã?
- Qualquer coisa, meu filho, qualquer coisa. O governo do MAS tem relações com as FARC, com o ETA e usa táticas guerrilheiras. Usa os camponeses de boa fé para provocar. Eles estão nos provocando, e tudo vai depender da reação da nossa gente. Mas a paciência tem limites.
E assim acontece. Algumas declarações, alguns “boatos”, algumas palavras cuidadosamente postas em determinados contextos, e está criado um clima de guerra. Antes do dia 24 de setembro, já havia justificativas, culpados e heróis para a suposta batalha do dia seguinte. No dia 23 de noite, houve uma manifestação do movimento Nación Camba, na praça central. O orador terminou dizendo: “e amanhã defenderemos Santa Cruz como pudermos... e nossos filhos são os que vão agradecer!”.
Nesse clima, passaram a noite os autonomistas cruceños, enquanto os camponeses, por questões políticas principalmente, mas seguramente também para evitar que fossem massacrados, negociavam suspender a marcha. E assim aconteceu. A marcha foi suspensa, os camponeses deram uma trégua até 15 de outubro para que o diálogo em Cochabamba pudesse avançar e muitas famílias acordaram muito mais aliviadas.
A marcha simbólica à praça central de Santa Cruz não foi cancelada. Foi adiada. Caso os governadores opositores não assinem o documento, o cerco a Santa Cruz voltará a acontecer. Mas, para além do imbróglio político atual, com o poder e o protagonismo político que os movimentos sociais ganharam e seguem ganhando nos últimos anos na Bolívia, em algum momento próximo essa marcha vai acontecer, e os camponeses indígenas vão marcar presença na praça central de Santa Cruz. E quem pára para pensar a respeito, tende a concluir tristemente que o mais provável é que, pelo motivo que seja, o clima de guerra seja mantido, enfatizado,ou criado outra vez.
Que, em caso de um futuro massacre, as lembranças dessa conturbada semana de setembro de 2008 não tenham se perdido pelo tempo.
Rodrigo Santaella é estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC) e atualmente faz intercâmbio acadêmico na Universidad Nacional de La Plata, Argentina.
Fonte: Brasil de Fato.
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