Finalmente, um jornal que entendeu o significado da Política Nacional de Participação Social

Hoje em dia, qualquer análise isenta sobre atos de governo precisa pagar um óbolo. É o caso do editorial do "Valor" sobre a Política Nacional de Participação Social.
 
Há um flagrante desconhecimento do editorialista sobre os instrumentos de participação criados pela Constituição de 1988 e já em operação. Dê-se um desconto ao seu desconhecimento: trata-se de um desconhecimento generalizado, já que esses processos foram sistematicamente ignorados pela mídia. Daí o editorialista considerar "estranha" a regulação.
 
O editorial dá voltas e volteios em cima das supostas ambiguidades do decreto e das críticas ao decreto para, finalmente, entender o óbvio. Não se trata de aparelhamento pelo PT, mesmo porque nem Dilma nem Lula "nunca deram a menor indicação de que pretendiam pular o Congresso e usar métodos chavistas".
 
O que ocorreu foi que "o PT perdeu o monopólio dos movimentos sociais e o governo ficou sem o termômetro da insatisfação social. Para evitar ser abalroado de repente por novas ondas de descontentamento, é preciso identificar os novos protagonistas e dialogar com eles, isto é detectar e canalizar a tempo para perto do leito institucional as demandas sociais. É ampliando o controle social que se evitam surpresas, quando as instâncias de intermediação de conflitos, como parece hoje, entraram em curto circuito".
 
Ufa! E não doeu nada cair na real.
 
Do Valor
 
 
A presidente Dilma Rousseff envolveu-se em mais uma enrascada desnecessária, justo quando tem diante de si uma campanha difícil pela reeleição, iniciada prematuramente e marcada pelo radicalismo. O decreto 8243, que institui a Política Nacional de Participação Social, é muito inapropriado para esse ambiente. O decreto pode ser visto de várias maneiras. Parece delírio burocrático, inócuo como todos eles. Personifica o espírito de assembleísmo de algumas administrações do PT. E pode perfeitamente servir de embrião da democracia direta, cujo exemplo extremo é o chavismo. Foi essa última interpretação que as oposições deram ao decreto, que agora procuram derrubar no Congresso.
 
Pode não ter sido a intenção, como afirmam membros do Executivo, mas os novos instrumentos têm finalidade ambígua. O decreto cria, por exemplo, o conselho de políticas públicas, como "instância colegiada permanente" para participar "no processo decisório e na gestão de políticas públicas". PSDB, PSD e outros partidos apontam que isso fere a Constituição. Em seu artigo I, parágrafo único, ela dispõe que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". A participação popular se dá, nos termos da lei, por plebiscitos, referendos e iniciativas populares. A forma encontrada de permitir que movimentos sociais "institucionalizados ou não" interfiram no poder é um corpo estranho.
 
Para o governo, os canais já existem e estão apenas sendo regulamentados. Mas o artigo 5 dá margem à dúvida: "Os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta deverão, respeitadas as especificidades de cada caso, considerar as instâncias e os mecanismos de participação social, previstos neste Decreto, para a formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e políticas públicas". A ideia é que toda a administração federal tenha de seguir esse caminho, embora o verbo "considerar" a dilui e tende a tornar a orientação inócua.
 
O secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, argumenta que "os conselhos no Brasil existem desde 1937, as conferências, desde 1941" (Valor, 4 de junho). Sem ir tão longe no tempo, com todos esses aparatos, que "já existem", o governo foi pego absolutamente de surpresa pelos movimentos de junho de 2013, quando milhões de pessoas saíram às ruas. Talvez os manifestantes fossem de outros movimentos sociais que não os contemplados pela abertura do governo petista.
 
Carvalho disse ainda que o texto do decreto foi construído em parceria com movimentos sociais e com a sociedade civil. O cidadão que não participou tomou conhecimento dele pelos jornais, de repente. Esse é um ponto em que o decreto é obscuro. Quem define os movimentos sociais que participarão? Pode ser que os mais ativos, aos quais se abrem os canais de decisão, sejam os "nossos" movimentos sociais, e não os "deles".
 
Há espaço para partidarização no verdadeiro cipoal burocrático do decreto. Entre as instâncias criadas estão: conselho e comissão de políticas públicas, conferência nacional, ouvidoria pública, mesa de diálogo, fórum interconselhos, audiência e consultas públicas e ambiente virtual de participação social. Para coordenar essas instâncias e encaminhar suas propostas, cria-se a Mesa de Monitoramento das Demandas Sociais.
 
Mas o objetivo do decreto provavelmente não é aquele no qual a oposição vem atirando. É importante no decreto a "mesa de diálogo", que tem o intuito de "prevenir, mediar e solucionar conflitos sociais", com a participação dos setores da sociedade envolvidos. Ele atende necessidade premente do governo após junho de 2013 - a "ampliação dos mecanismos de controle social", o item VII do artigo 3º.
 
Tanto o presidente Lula quanto a presidente Dilma, mesmo no auge das pressões contra seus governos, nunca deram a menor indicação de que pretendiam pular o Congresso e usar métodos chavistas. Mas o PT perdeu o monopólio dos movimentos sociais e o governo ficou sem o termômetro da insatisfação social. Para evitar ser abalroado de repente por novas ondas de descontentamento, é preciso identificar os novos protagonistas e dialogar com eles, isto é detectar e canalizar a tempo para perto do leito institucional as demandas sociais. É ampliando o controle social que se evitam surpresas, quando as instâncias de intermediação de conflitos, como parece hoje, entraram em curto circuito.