
Sou de um tempo em que quando se falava em ideologia se entendia, vulgarmente, como coisa de comunista ou de esquerdista. Ninguém levava em consideração a definição de Marx segundo a qual ideologia é a forma como a classe dominante vê a si mesma. As transformações recentes por que passa a civilização ocidental, em grande parte arrastando a oriental, reforça o sentido marxista da palavra: ideologia, hoje, ressurge como fenômeno da direita, uma forma pela qual ela tenta representar o próprio interesse como interesse geral.
O Banco Central Europeu acaba de reduzir em termos reais a taxa de juros de empréstimo (para 0,15%) e, em termos nominais, a taxa sobre reservas (-0,1%); e aumentou a disponibilidade de crédito aos bancos comerciais em 400 bilhões de euros. Uma taxa negativa de juros significa que o depósito diminui de valor na medida em que passa o tempo. É uma relação entre o BC e os banqueiros. Mas é evidente que se um banco comercial aceitar depósito remunerado, mesmo baixo, de um particular ou de uma empresa, ele terá que encontrar melhor aplicação que reservas no banco central. E nem sempre encontra.
Esse é um acontecimento quase inédito. Não totalmente inédito porque, em crises passadas, o Banco Central suíço chegou a oferecer taxas de juros negativas. O realmente inédito é o contexto europeu do momento. Isso porque a política monetária do BCE pretende se substituir a política fiscal em nome de... uma ideologia. A presunção ideológica é que a estagnação da zona do euro se deve à falta de “confiança” dos empresários em investir. Uma vez restaurada a “confiança”, que se presume derivada de políticas fiscais restritivas (leia-se garantia de pagamento da dívida pública com contração de gastos), a economia ressurgirá.
Essa presunção ideológica implica fundamentalmente a restrição a uma política fiscal ativa, que, em recessão, pressupõe aumento de gastos públicos deficitários para estimular a demanda e, objetivamente, e não ideologicamente (confiança), o investimento empresarial. Essa ideologia, no médio e longo prazos, recobre a intenção de reduzir ao mínimo o papel do Estado na economia e, portanto, o espaço dos impostos sobre os ricos. É claro que a representação da classe econômica dominante de si mesma é a de uma paladina geral no combate aos impostos, e, por decorrência, ao estado de bem estar social que beneficia indolentes.
Acontece que em tempo de deflação a redução, mesmo nominal, da taxa de juros costuma ser ineficaz. Keynes chamou isso de “armadilha da liquidez”. Não é um conceito ideológico de esquerda ou de direita, mas um conceito pragmático. Empresas deixam de investir não porque não têm acesso a empréstimos bancários, que são obrigações futuras, mas porque não têm demanda efetiva, de que depende sua receita. Atualmente, grandes corporações norte-americanas têm mais de 2,5 trilhões de dólares em caixa, parados, sem investir. As reservas voluntárias (remuneradas) dos bancos no FEDE se elevavam em 2013 a 2,3 trilhões de dólares. Na Europa não é diferente. Baixar juros de empréstimo e ampliar crédito não mudam as intenções de investimentos.

Os dados já estão apontando a natureza equívoca das presunções ideológicas do BCE - assim como o FMI e a Comissão Europeia – em relação à situação na área do euro. A opção adotada, desde a ruptura do consenso sobre políticas fiscais expansivas na reunião do G20 em 2 010, em Toronto, é que a recuperação da Europa do euro, sobretudo da periferia, dependeria de políticas de “consolidação das dívidas”, ou seja, duras restrições fiscais, cortando o déficit e os gastos públicos em salários, outros custeios e os investimentos, para restaurar a “confiança” dos empresários na solidez financeira dos Estados.
A Europa seguiu a recomendação. E o resultado pode ser visto nos gráficos: apesar do tremendo esforço feito – em empregos, em renda, em vidas, em desencanto da juventude -, a dívida pública como proporção do PIB na zona do euro passou de 52% em 2007 para 81,07% em 2012. A dívida em 2007, como se vê, nada tem a ver com uma gestão irresponsável das contas públicas na Europa, nada de gastança, como os alemães costumam dizer. O que estourou as contas públicas europeias foi a própria crise, que exigiu a virtual “quebra” dos governos por salvarem os bancos. Já as políticas restritivas de contabilista agravam a relação dívida/PIB (a dívida aumenta com os juros privados e o PIB estagna ou cai) em sentido oposto ao que se pretende.
Também a redução do déficit público na zona do euro mostra, adicionalmente, que a estratégia está errada. Igual à dívida, o déficit público em relação ao PIB, após 2010, aumenta na região. O princípio da economia keynesiana, reforçado por Aba Lerner, é que o déficit público, em situações de recessão, é fundamentalmente necessário para a retomada da economia. A recessão é um indicador de excesso de ativos financeiros em mãos do setor privado e falta de demanda efetiva na sociedade. É fundamental que o Estado, mediante o déficit, mobilize parte desses recursos ociosos, tomando-os de empréstimo, para criar demanda efetiva de forma a estimular a atividade econômica e o emprego. Simples. Sem ideologia. De qualquer forma, agora, é esperar o resultado do experimento do BCE.
*Economista, doutor em Engenharia de Produção pela Coppe-UFRJ, professor de Economia Internacional na UEPB.
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