segunda-feira, 14 de julho de 2014

ECONOMIA - A crise européia e o BCE.

Esforço inútil do BCE, por J. Carlos de Assis


Sou de um tempo em que quando se falava em ideologia se entendia, vulgarmente, como  coisa de comunista ou de esquerdista. Ninguém levava em consideração a definição de Marx segundo a qual ideologia é a forma como a classe dominante vê a si mesma. As transformações recentes por que passa a civilização ocidental, em grande parte arrastando a oriental, reforça o sentido marxista da palavra: ideologia, hoje, ressurge como fenômeno da direita, uma forma pela qual ela tenta representar o próprio interesse como interesse geral.
O Banco Central Europeu acaba de reduzir em termos reais a taxa de juros de empréstimo  (para 0,15%) e, em termos nominais, a taxa sobre reservas (-0,1%); e aumentou a disponibilidade de crédito aos bancos  comerciais em 400 bilhões de euros. Uma taxa negativa de juros significa que o depósito diminui de valor na medida em que passa o tempo. É uma relação entre  o BC e os banqueiros. Mas é evidente que se um banco comercial aceitar depósito remunerado, mesmo baixo, de um particular ou de uma empresa, ele terá que encontrar melhor aplicação que reservas no banco central. E nem sempre encontra.
Esse é um acontecimento quase inédito. Não totalmente inédito porque, em crises passadas, o Banco Central suíço chegou a oferecer taxas de juros negativas. O realmente inédito é o contexto europeu do momento. Isso porque a política monetária do BCE pretende se substituir a política fiscal em nome de... uma ideologia. A presunção ideológica é que a estagnação da zona do euro se deve à falta de “confiança” dos empresários em investir. Uma vez restaurada a “confiança”, que se presume derivada de políticas fiscais restritivas (leia-se garantia de pagamento da dívida pública com contração de gastos), a economia ressurgirá.
Essa presunção ideológica implica fundamentalmente a restrição a uma política fiscal ativa, que, em recessão, pressupõe aumento de gastos públicos deficitários para estimular a demanda e, objetivamente, e não ideologicamente (confiança), o investimento empresarial. Essa ideologia, no médio e longo prazos, recobre a intenção de reduzir ao mínimo o papel do Estado na economia e, portanto, o espaço dos impostos sobre os ricos. É claro que a representação da classe econômica dominante de si mesma é a de uma paladina geral no combate aos impostos, e, por decorrência, ao estado de bem estar social que beneficia indolentes.
Acontece que em tempo de deflação a redução, mesmo nominal, da taxa de juros costuma ser  ineficaz. Keynes chamou isso de “armadilha da liquidez”. Não é um conceito ideológico de esquerda ou de direita, mas um conceito pragmático. Empresas deixam de investir não porque não têm acesso a empréstimos bancários, que são obrigações futuras, mas porque não têm demanda efetiva, de que depende sua receita. Atualmente, grandes corporações norte-americanas têm mais de 2,5 trilhões de dólares em caixa, parados, sem investir. As reservas voluntárias (remuneradas) dos bancos no FEDE se elevavam em 2013 a 2,3 trilhões de dólares. Na Europa não é diferente. Baixar juros de empréstimo e ampliar crédito não mudam as intenções de   investimentos.

Os dados já estão apontando a natureza equívoca das presunções ideológicas do BCE -  assim como o FMI e a Comissão Europeia – em relação à situação na área do euro. A opção adotada, desde a ruptura do consenso sobre políticas fiscais expansivas na reunião do G20 em 2 010, em Toronto, é que a recuperação da Europa do euro, sobretudo da periferia, dependeria de políticas de “consolidação das dívidas”, ou seja, duras restrições fiscais, cortando o déficit e os gastos públicos em salários, outros custeios e os investimentos, para restaurar a “confiança” dos empresários na solidez financeira dos Estados.
A Europa seguiu a recomendação. E o resultado pode ser visto nos gráficos: apesar do tremendo esforço feito – em empregos, em renda, em vidas, em desencanto da juventude -, a dívida pública como proporção do PIB na zona do euro passou de 52% em 2007 para 81,07% em 2012. A dívida em 2007, como se vê, nada tem a ver com uma gestão irresponsável das contas públicas na Europa, nada de gastança, como os alemães costumam dizer. O que estourou as contas públicas europeias foi a própria crise, que exigiu a virtual “quebra” dos governos por salvarem os bancos. Já as políticas restritivas de contabilista agravam a relação dívida/PIB (a dívida aumenta com os juros privados e o PIB estagna ou cai) em sentido oposto ao que se pretende.
Também a redução do déficit público na zona do euro mostra, adicionalmente, que a estratégia está errada. Igual à dívida, o déficit público em relação ao PIB, após 2010, aumenta na região. O princípio da economia keynesiana, reforçado por Aba Lerner, é que o déficit público, em situações de recessão, é fundamentalmente necessário para a retomada da economia. A recessão é um indicador de excesso de ativos financeiros em mãos do setor privado e falta de demanda efetiva na sociedade. É fundamental que o Estado, mediante o déficit, mobilize parte desses recursos ociosos, tomando-os de empréstimo, para criar demanda efetiva de forma a estimular a atividade econômica e o emprego. Simples. Sem ideologia. De qualquer forma, agora, é esperar o resultado do experimento do BCE.

*Economista, doutor em Engenharia de Produção pela Coppe-UFRJ, professor de Economia Internacional na UEPB.

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