
Insurgências de Che Guevara: o ministro, o político, o economista
Os debates econômicos expostos cuidadosamente no livro de Luiz Bernardo Pericás são reveladores – e provocativos – para quem acredita que na certeza da transição socialista pela simples “tomada de poder” ou pela aplicação de fórmulas pretensamente universais.
Publicado em 04/11/2021 // 1 comentário

Por Deni Alfaro Rubbo.
Quando embarcamos na história da Revolução Cubana, somos levados frequentemente a mistificar seus atores políticos, reduzindo esse complexo processo ao triunfo de Fidel Castro e seus seguidores do Gramma como uma epopeia sem contrastes. Em decorrência disso, obliteram-se, muitas vezes, fases e experiências vivenciadas no pós-revolução que dizem respeito à transição socialista e seus impasses, fundamentais para um entendimento dos processos políticos mais fascinantes da história do socialismo mundial.
Em relação a Che Guevara, uma das figuras chaves da revolução, o desafio da desmistificação de sua trajetória torna-se candente, já que se perpetua certa construção política e simbólica do seu imaginário na esquerda contemporânea. De maneira sóbria, cuidadosa e eficaz, Che Guevara e o debate econômico em Cuba, do historiador brasileiro Luiz Bernardo Pericás, traz à tona aspectos decisivos da atividade política do guerrilheiro argentino, sobretudo quando ocupou os cargos de presidente do Banco Nacional de Cuba e de Ministro das Indústrias no governo socialista. O livro reflete criticamente o percurso do Che em meio às tomadas de posições políticas que esteve inserido, além de oferecer uma cartografia detalhada do “gran debate” econômico a respeito de caminhos estratégicos e modelos de gestão protagonizados entre os países “socialistas”.
Durante os sete capítulos do livro, Pericás destrincha a efêmera, mas profunda trajetória administrativa do “guerrilheiro heroico” balizada principalmente nos debates sobre gestão econômica e industrial, planificação, papel dos bancos, teoria do valor, cálculo econômico etc. Segundo o historiador, além de frequentar cursos, realizar leituras, estabelecer diálogo permanente com assessores (de personalidades ligadas à Cepal até quadros de comunistas oficiais, assim como dissidentes), Che Guevara também viajou para alguns países “socialistas”: do Leste Europeu à União Soviética, passando pela Coreia do Norte e China, com o objetivo de “avaliar” e “agir” de maneira oportuna diante de uma ilha que tinha urgência em sua reestruturação econômica para a diversificação da produção agrícola e estímulo à industrialização.
Segundo o autor, mesmo com uma miríade de acordos econômicos entre Cuba e os países “socialistas”, havia disputas internas tanto no campo político quanto nas concepções de gestão industrial. Durante os anos de 1950 e 1960, a concepção hegemônica adotada pela União Soviética era a de descentralização da economia, seguindo a perspectiva de economistas soviéticos “reformistas”. Eram práticas baseadas no mercado, preço, lucro e iniciativa dos administradores, que flexibilizava o sistema de preços nas empresas para deixá-las com maior poder de decisão. Na realidade, essas medidas representavam “o paulatino redirecionamento para práticas capitalistas”, cujos efeitos negativos eram bem conhecidos: desigualdades entre as empresas e indivíduos, sobrevalorização do lucro etc.
Do outro lado do oceano, Che Guevara manifestou-se resolutamente contrário às políticas econômicas de descentralização. Segundo o comandante argentino, tais teses não poderiam ser aplicadas acriticamente como meros manuais: era preciso refletir sobre as particularidades das condições histórico-concretas de transição ao socialismo de cada país. E, no caso cubano, o lento processo de desenvolvimento das forças produtivas faria com que defendesse métodos mais heterodoxos.
Quais eram, afinal, os métodos que infringiam o receituário ortodoxo? Em termos essencialmente econômicos, racionalizar ao máximo as fontes de produção, fixar os preços e possuir técnicas de controle. Aos olhos do Ministro da Indústria, nesse “sistema de controle máximo” da gestão econômica, era também possível aproveitar os avanços das “técnicas capitalistas úteis para a transição do socialismo” (p. 82). Em contrapartida, essas medidas eram limitadas, pois esbarravam na pouca experiência dos quadros administrativos, nas falhas de abastecimentos de materiais e no controle de qualidade do país. De toda forma, o fla-flu sobre as formas de centralização/descentralização da vida econômica dos países “socialistas” teve ainda ressonância entre economistas de prestígio, inseridos em trincheiras marcadamente opostas, como o francês Charles Bettelheim (partidário do cálculo econômico) e o trotskista belga Ernest Mandel (partidário do sistema de autogestão centralizada).
Embora o Che saísse em defesa de “um sistema de direção centralizada, que, por sua vez, permitem que as decisões fossem tomadas em diferentes níveis e com ampla participação dos obreiros” (PERICÁS, 2018, p. 101), Michael Löwy aponta, no prefácio do livro, a ausência de discussão e propostas entre planificação e democracia socialista. Entretanto, algumas respostas parciais sobre essa lacuna parecem constar no quinto capítulo, no qual Pericás examina concepções guevaristas sobre a relação entre sindicatos, partidos e órgãos do Estado, sugerindo que estas seguiam uma linha mais próxima de Lênin. Em um período de transição, era imperativo resolver as contradições entre diretores de empresas e operários em “comissões de arbitragem” como forma de estimular as democracias nas fábricas.
Os dois últimos capítulos – em nossa opinião, os mais interessantes do livro –, preenchem de modo criativo a discussão central da planificação socialista. Em um primeiro momento, polemizando com autores que circunscreveram a noção de “homem novo” por critérios essencialmente éticos e “filosóficos”, Pericás destaca a “infraestrutura” dessa afamada concepção guevarista, indicando as necessidades econômicas e políticas de Cuba naquele momento histórico. Nesse sentido, o sistema de incentivos morais e materiais, a emulação socialista e a utilização do trabalho voluntário desempenharam um papel ideológico decisivo na conscientização e nas práticas das trabalhadoras e trabalhadores cubanos. Leitor do jovem Marx, em Guevara, o “homem novo” não é “apenas o produto da revolução: ele se constrói em seu processo, é a criação da práxis, ou seja, da transformação da natureza e das relações sociais” (PERICÁS, 2018, p. 150).
São apresentadas, outrossim, leituras marxistas realizadas por Che Guevara durante sua trajetória, assim como sua experiência em países na América Latina (Bolívia, Guatemala e México), que moldaram sua formação política e seu “espírito aventureiro” e errante. Embora não se filiasse a nenhuma das vertentes majoritárias do marxismo político (stalinismo, trotskismo e maoísmo) – mesmo tendo sofrido constantes acusações por parte delas –, o caráter internacionalista, antiburocrático e libertário do guerrilheiro-ministro insere-o em uma constelação de autores heréticos da tradição marxista mundial.
Ícone da esquerda mundial até os dias atuais, Che Guevara é ainda uma figura repleta de mal-entendidos, pré-conceitos e idealizações. De um lado, transformado em fetichismo da mercadoria em uma sociedade do espetáculo, que coisifica e descontextualiza as práticas do “guerrilheiro heroico”, sua imagem é superficialmente consumida com bordões, frases de efeito, estampas de camisetas. De outro, sua presença permanece ativa em movimentos sociais do campo e da cidade como um símbolo incontornável da resistência às catástrofes propagadas pelas novas formas de exploração e destruição do capitalismo periférico.
Por conseguinte, os debates econômicos expostos cuidadosamente no livro são reveladores – e provocativos – para quem acredita que na certeza da transição socialista pela simples “tomada de poder” ou pela aplicação de fórmulas pretensamente universais. Nem afeito a “previsões”, nem a “antecipações”, o marxismo está mais associado à imprevisibilidade da história e seus contratempos. A desenvoltura do trabalho de Luiz Bernardo Pericás é essencial para refletirmos os dilemas dos países periféricos e disputarmos diuturnamente o “atual ainda ativo” da herança rebelde do Che.
Originalmente publicado na revista Margem Esquerda #32.
Che Guevara e o debate econômico em Cuba, de Luiz Bernardo Pericás
O historiador Luiz Bernardo Pericás analisa e interpreta o pensamento econômico guevariano, os debates surgidos em torno de suas ideias nos anos 1960, dentro e fora da ilha, e seu impacto nesse período crucial da história da Revolução Cubana. O livro foi vencedor do prêmio Ezequiel Martínez Estrada, da Casa de las Américas.
Referência bibliográfica
PERICÁS, Luiz Bernardo. Che Guevara e o debate econômico em Cuba. São Paulo, Boitempo, 2018.
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Deni Alfaro Rubbo é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). É professor de Ciências Sociais na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul. É autor de O labirinto periférico: aventuras de Mariátegui na América Latina (Autonomia Literária, 2021).


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