Fisk: os ventos de 1914 sopram na Síria
Tudo mudou: ISIS já não é invencível. Governos saudita e turco, contrariados, podem intervir. EUA ameaçam. Como às vésperas da I Guerra, uma fagulha pode deflagrar conflito global
Por Robert Fisk | Tradução: Inês Castilho | Imagem: Cândido Portinari, Guerra, 1945 (detalhe)
Depois de perder mais de 60 mil soldados em cinco anos de luta, o exército sírio conquistou de repente sua maior vitória na guerra – ao abrir caminho para Aleppo, arrasando a Jabhat al-Nusra [filial da Al Quaeda na Síria, principal aliada do ISIS] e outras forças combatentes, e selar o destino desta batalha, enquanto a Rússia fazia operações de ataque aéreo fora da cidade.
As linhas de abastecimento dos combatentes, da Turquia para Aleppo, foram cortadas, mas isso não significa o fim da história. Durante vários meses, as próprias autoridades militares do regime — juntamente com dezenas de milhares de civis, inclusive muitos cristãos — ficaram presos em Aleppo, à mercê dos bombardeios e morteiros dos membros al-Nusra que os cercavam, até que o exército abriu a estrada principal para o sul.
Durante esse período, o único caminho para Aleppo era por avião, porque o exército ocupava uma pequenina península do território no caminho até aeroporto. Voei por lá uma noite, num avião militar lotado de soldados sírios feridos.
Mas o vento mudou. Agora, é o próprio Jabhat al-Nusra que está cercado, junto com dezenas de milhares de civis daquela parte da cidade – mas sem aeroporto para lhes dar sustentação. Com base em outras tantas batalhas desta guerra horrenda, é improvável que haja qualquer ofensiva para o centro dessa cidade que é a maior da Síria. Ao contrário, será necessário um lento e tortuoso cerco para forçar os combatentes a se render.
Numa irônica virada na história recente, os dois povoados xiitas, Nub e Zahra – cuja população esteve cercada e durante três anos passou fome, alimentada somente por víveres lançados de pára-quedas –, foram retomados pelos militares sírios. Os xiitas, entre os quais incluiu-se o ramo alauíta, origem do presidente Bashar al-Assad, têm sido encurralados em vários povoados da região, embora sua dor tenham sido amplamente silenciada.
Agora os moradores da parte de Aleppo mantida em mãos dos rebeldes vão sentir a mesma sensação de isolamento – e, sem dúvida, o fogo da artilharia dos sitiadores. Sempre houve movimentação de pessoas entre as duas áreas da cidade. Serão essas passagens fechadas, agora? E o que dizer do fluxo de milhares de civis para o norte, em direção à Turquia?
A própria cidade de Aleppo demorou a entrar na guerra. Por uma espécie de milagre histórico, manteve-se desvinculada do conflito até 2012, quando os combatentes – pensando estar na rota de Damasco – conseguiram infiltrar-se na velha cidade. Suas ruas ficaram então em chamas, em meses de luta. Agora, parece ser a primeira grande cidade da Síria a voltar, efetivamente, para as mãos do regime. O que virá a seguir? A retomada da cidade romana de Palmira? A desobstrução das terras em torno de Deraa (famosas por causa de Lawrence da Arábia)?
E, muito mais drástico, quando irá o exército sírio, junto com o do Hezbollah e com seus aliados da força aérea russa, tomar seu rumo em direção à “capital” do ISIS, Raqqa?
O ISIS, que domina [a cidade romana histórica de] Palmira, deve estar acompanhando os extraordinários acontecimentos das últimas horas com profunda preocupação. O eterno “Califado Islâmico” sunita na Síria não parece mais tão eterno. Será por isso que os sauditas sunitas ofereceram tropas terrestres à Síria, repentinamente? E a razão por que os turcos estão tão perturbados? Duvido que haja alguém chorando no Irã xiita.
Os militares sauditas já estão com seus pés atolados na vergonhosa guerra do Iêmen. Mas se a Turquia enviar seus próprios soldados – que fazem parte da OTAN – através da fronteira síria, irá arriscar-se a vê-los atacados pelos russos. Este é um pesadelo que deve ser evitado, tanto por Washington como por Moscou. Do contrário, iremos nos encontrar em outro momento Gavrilo Princip [1]. E todos sabemos o que aconteceu em 1914.
—
[1] Referência ao estudante sérvio que assassinou, em 28/6/1914, em Sarajevo (Bósnia), o arquiduque Francisco Ferdinando, possível herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro. Em resposta, o império lançou um ultimato afrontoso à Sérvia e em seguida invadiu-a militarmente, deflagrando um conflito que rapidamente envolveria Rússia, Alemanha e França e Inglaterra, convertendo-se na I Guerra Mundial. Suas causas foram, é claro, muito mais profundas. As tensões entre os países envolvidos eram graves e crescentes — como parecem ser, hoje, os riscos de confrontos no Oriente Médio e em outras partes do mundo. O gesto de Princip foi a fagulha, num barril de gasolina. Ler também, a respeito, “Depois da Ponte”, de José Luís Fiori [Nota da Tradução].
Nenhum comentário:
Postar um comentário