domingo, 19 de outubro de 2008

VIOLÊNCIA SEXUAL - A ONU oculta os dados da violência sexual dos seus Capacetes Azuis.

Capacetes azuis“A violência sexual cometida pelos Capacetes Azuis continua presente em todas e cada uma das missões das Nações Unidas e é protagonizada por membros dos exércitos humanitários de todas as nacionalidades, que continuam a gozar da conivência e cumplicidade das suas chefias e representantes, bem como da impunidade que lhes oferece a imunidade de que gozam”

Estitxu Martínez de Guevara*

Desde que, em 1996, um elaborado estudo conhecido como Relatório Machel — por ter sido dirigido pela moçambicana Graça Machel — pôs a descoberto parte dos inumeráveis casos de abuso e exploração sexual cometidos pelas forças de paz da ONU (que incluem violações e todo o tipo de torturas sexuais a meninas e mulheres de todas as idades, esclavagismo sexual, participação em redes de tráfico de meninas e mulheres para prostituição, constituição e gestão de prostíbulos, transmissão massiva de SIDA e outras doenças venéreas devida à recusa de tomar medidas profilácticas, elaboração e distribuição de material pornográfico com menores e mulheres das zonas, gravações de violações de meninas menores de 12 anos…) assistimos a um interminável gotejar de notícias sobre novos atropelos, normalmente seguido das habituais declarações de indignação da ONU, da sua insistência na política de Tolerância Zero e da sua determinação em acabar com esta horripilante chaga.

No entanto, podemos afirmar que a realidade é muito diferente: a violência sexual cometida pelos Capacetes Azuis continua presente em todas e cada uma das missões das Nações Unidas e é protagonizada por membros dos exércitos humanitários de todas as nacionalidades, que continuam a gozar da conivência e cumplicidade das suas chefias e representantes, bem como da impunidade que lhes oferece a imunidade de que gozam.

Embora não seja este o sitio para aprofundar a verdadeira dimensão do assunto — as causas que o originam, as consequências sobre as vítimas ou as possíveis soluções (que já abordámos no livro “Os exércitos humanitários e a violência sexista militar”, ed. Zapateneo, 2008) — pensamos ser pertinente examinar uma questão: a dos dados que as Nações Unidas anunciam a esse respeito, que estão a servir para encobrir a realidade — principalmente após a nomeação do novo Secretário-geral Ban Ki-moon — ao aplicar aos números numerosos filtros, quatro dos quais vamos referir.

Maquilhando os números

O primeiro — e mais grave — consiste em não apresentar números sobre os casos existentes ou conhecidos pela Organização, mas sobre as denúncias apresentadas. O cambiante é muito importante: quantas vítimas de violação por parte dum Capacete Azul se atrevem a apresentar denúncias à organização à qual pertence o seu agressor? Poucas, sem dúvida. A isso, acrescente-se que a população agredida é composta por meninas ou mulheres jovens de povoações empobrecidas e afectadas pelas guerras, em grande parte analfabetas, com traumas psicológicos como consequência da agressão, atemorizadas e envergonhadas, ameaçadas pelos seus agressores e conscientes de que na imensa maioria dos casos a denúncia só vai servir para que as suas famílias e comunidades as estigmatizem quando conhecerem os factos, devido aos costumes e convenções religiosas e culturais em vigor. Nestas condições, quantos casos se transformarão em denúncias apresentadas à ONU? Seguramente, a minoria.

O segundo grande filtro produz-se ao contabilizar as denúncias, pois não considera as que são recusadas por provas insuficientes. Isto seria lógico se não fosse porque — como reconhece a própria Oficina de Serviços de Supervisão Interna da ONU (OSSI) — muitas das investigações têm de ser abandonadas porque, ou o Capacete Azul em questão já não está na zona, ou não se encontraram testemunhas, ou não havia meios suficientes para a investigação… ou porque as próprias chefias e companheiros dos acusados se dedicavam a minar internamente a investigação.

Em resultado, 70% das denúncias apresentadas em 2006 contra soldados humanitários, foram recusadas por falta de provas. De 17 de Janeiro a 13 de Fevereiro de 2006, os investigadores da OSSI em Bunia receberam 217 denúncias de casos em que integrantes do pessoal de manutenção de paz tinham tido relações sexuais com raparigas de 18 anos ou menos, a troco de dinheiro, alimentos ou roupa. As conclusões da OSSI foram taxativas: “embora as denúncias recebidas pela Oficina indiquem que os contactos sexuais entre raparigas da localidade e integrantes das forças de manutenção de paz são frequentes e continuam a existir, só houve provas suficientes para fundamentar plenamente uma das denúncias». Por fim, das 217 denúncias só um caso foi contabilizado.

Com Ban Ki-moon, a ONU lava as mãos

A utilização destes filtros corresponde ao mandato do actual Secretário-geral, Ban Ki-moon, que desta forma conseguiu que o número de denúncias — não de casos — em 2007, tenha sido, pela primeira vez, inferior ao do ano anterior. Para isso — e este é o terceiro filtro — restringiu ainda mais o critério: os dados limitam-se às denúncias cuja investigação chegou ao fim, de entre as denúncias apresentadas. E a diferença é notável. Assim, quando em Janeiro de 2007 são publicados os primeiros números do mandato de Ban Ki-moon, correspondentes ao período entre Janeiro de 2004 e Dezembro de 2006, a Subsecretária da ONU para as Operações de Paz, Jane Holl Lute, diz que se “investigaram denúncias que afectam 319 participantes em missões de paz”. O que Holl Lute não disse é que nesse período tinham sido apresentadas 802 denúncias, das quais nem 40% tinham sido totalmente investigadas. É, portanto, compreensível que as Nações Unidas não tenham demasiado interesse em disponibilizar os meios necessários para que as investigações sejam feitas com rapidez, pois isso levaria ao aumento dos números.

O último filtro até agora utilizado por Ban Ki-moon, tem a ver com a nova política que a ONU adoptou perante o grave dano que os seus exércitos humanitários causam à imagem e reputação da Organização.

Após mais de 4 anos tentando praticar uma política de Tolerância Zero — cujo fracasso foi estrepitoso — a ONU parece querer lavar as mãos, e decidiu que os actos criminosos dos Capacetes Azuis dizem respeito aos governos de origem destes, e às suas chefias: os mesmos que silenciam e encobrem os delitos cometidos para manter impoluta a imagem dos seus países.

A partir dessa decisão, como observou o porta-voz das Nações Unidas, Nick Birnback, “a Organização dependerá dos esforços dos países que contribuem com tropas e polícias, para investigar e disciplinar os seus militares quando se provar que tenham cometido abusos durante o serviço em operações sob a bandeira da ONU». E isto, evidentemente, começou a reflectir-se nos números da ONU.

Para 2007, a Organização tornou público um número de 129 denúncias, o que significaria uma redução de quase 64% relativamente aos dados de 2006, ainda que, observando alguns dados publicados nos media em 2007, possamos verificar a veracidade destes números. Em Julho de 2007, publicava-se que 734 Capacetes Azuis marroquinos tinham sido retirados da missão na Costa do Marfim, acusados de exploração sexual de raparigas menores. Em Novembro do mesmo ano, 108 Capacetes Azuis do Sri Lanka foram retirados da missão da ONU no Haiti, acusados do mesmo delito. Em ambos os casos — houve mais, durante 2007 — as Nações Unidas, perante as numerosas evidências, decidiram-se pela repatriação, o que, de acordo com a nova política, punha nas mãos dos respectivos governos a responsabilidade da investigação.

No caso dos 734 Capacetes Azuis marroquinos, as investigações do seu governo — auxiliado pelas Nações Unidas — foram abandonadas sem conclusões, porque as vítimas “aparentemente, negaram-se a colaborar com a investigação”. E, claro, como são investigações não concluídas, estes casos não engrossam os números da ONU. Das investigações do governo do Sri Lanka nada sabemos até agora e, em qualquer caso, já não engrossariam os dados tornados públicos pela ONU para 2007. Pelo contrário, o representante do Sri Lanka declarava na Quarta Comissão das Nações Unidas, em Dezembro de 2007, que “…deve respeitar-se o princípio de que uma pessoa é inocente até que se demonstre a sua culpabilidade, e devemos travar os meios de comunicação sensacionalistas, interessados em tais denúncias, até que os factos fiquem devidamente demonstrados”.

Acabar com os exércitos humanitários

Concluímos uma análise que poderia ter mais ingredientes. Com vimos até aqui, pretendemos deixar em evidência que os números da ONU sobre os casos de abuso e exploração sexual dos Capacetes Azuis ocultam deliberadamente a dimensão do terrível problema e não reflectem, quiçá, nem 10% da realidade. Portanto, e perante as evidentes tentativas de afastar a questão das agendas mediáticas, acreditamos que é imprescindível pôr em marcha uma campanha pública de denúncia, centrada nesta abominável face oculta dos exércitos humanitários, até conseguir a sua desaparição. Oxalá a publicação de “Os exércitos humanitários e a violência sexista militar” sirva de ferramenta nessa tarefa.

*Estitxu Martínez de Guevara, é membro da Gasteizkoak, uma organização antimilitarista.
Fonte: Blog O Diário.info.

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