1964: faltou exorcizar os fantasmas do autoritarismo
Por Carlos Castilho
A imprensa e o Brasil perderam uma grande oportunidade para exorcizar o
fantasma do autoritarismo durante a passagem dos 50 anos do golpe
militar de 1964. Quase todas as reportagens e documentos jornalísticos a
propósito da data primaram pela ênfase nas recordações, mas
deixaram de lado a preocupação com a identificação dos processos e
contextos que podem ameaçar novamente o nosso inacabado processo de
redemocratização.
O ato de reavivar episódios que deixaram cicatrizes profundas em milhares de brasileiros é uma faca de dois gumes,
como mostram vários outros episódios da história mundial. Se por um
lado faz com que as novas gerações descubram algo que não presenciaram,
por outro remexe com ressentimentos e ódios que o tempo não curou. Para
os jovens, o golpe de 1964 é um evento suficientemente distante para não
provocar grandes emoções, enquanto para quem viveu o medo e a dor
física recordar traumas pode despertar uma raiva inútil.
Este é o dilema enfrentado por todo jornalista quando colocado diante
da cobertura de uma data associada ao sofrimento de muita gente. Mas, em
geral, a imprensa sempre opta pela saída mais fácil, que é a de
relembrar o passado. As datas são um item da agenda do chefe de
reportagem ou do editor, mas a rotina frenética das redações impede que
os profissionais percebam que, mais do que fatos e imagens, estão em
jogo sentimentos associados ao calendário.
Os protagonistas e testemunhas da história podem hoje tirar da própria
experiência e sofrimento as indicações para que os mais jovens não
repitam os mesmos erros e nem revivam os mesmos traumas. A grande
contribuição da imprensa poderia ter sido a de valorizar o aprendizado com a história, em
vez de apenas recordá-la. Perde-se uma oportunidade tentar entender o
contexto de meio século atrás e ver quais as coincidências e
discrepâncias em relação ao que vivemos hoje.
A derrubada do presidente João Goulart foi um movimento contra mudanças sociais e econômicas que ocorreu num contexto contraditório.
Os reformistas, paradoxalmente, defendiam a continuidade do Estado de
direito, enquanto os conservadores romperam com a ordem democrática para
preservar o status quo econômico e a estratificação social.
Há algumas semelhanças na situação atual. A partir de 2002, o
país passou a viver em clima de mudanças sociais e de redistribuição de
renda. Passados doze anos, o impulso reformista perdeu força e passou a
identificar-se com a ordem vigente, enquanto a oposição promete mudanças
para voltar ao modelo econômico vigente até o início do governo Lula.
Novamente estamos vivendo um impasse entre reformas sociais e
econômicas que enfrentam inevitáveis dificuldades em conciliar
propósitos teóricos com realidades complexas, e setores políticos
interessados na reconquista do poder. Quem testemunhou os tensos meses
que antecederam o golpe militar, pode estar vivendo hoje, com alguma
preocupação, sensações parecidas às de 50 anos atrás.
A história dificilmente se repetirá porque o tempo se encarregou
de eliminar contextos como o que associou a crise de 1964 à Guerra Fria
entre Estados Unidos e a então União Soviética. Também é muito pouco
provável que os militares voltem a servir de guarda pretoriana para
políticos e empresários. Mas o fantasma do autoritarismo continua
presente na ostentação de força por efetivos policiais em nível federal,
estadual e municipal, bem como nas milícias e serviços privados de
segurança.
A violação dos direitos individuais que em 1964 se expressou pelas
prisões arbitrárias, tortura e eliminação física sumária, manifesta-se
agora com as escutas ilegais, intimidação generalizada nas favelas,
terror urbano e rural, bem como pela rotinização da violência nas
cidades. São evidências de processos que continuaram, apesar dos anos, e cuja identificação seria mais útil para as gerações pós-64 do que relembrar histórias de uma época difícil.
A imprensa e as universidades são as únicas instituições que teriam
possibilidade de evitar a contaminação pelas paixões e ódios para
aprender com o passado e oferecer elementos para a reflexão dos atuais tomadores de decisões.
A imprensa perdeu uma grande oportunidade para cumprir o seu papel e
contribuir para possamos tirar do passado as lições que o presente nos
está cobrando. Mas ainda é possível corrigir a falha.
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