A estranha unanimidade
Escrito por: Luciano Martins Costa
Fonte: Observatório da Imprensa
A leitura diária dos jornais pode produzir um efeito anestesiante sobre
a percepção do valor simbólico dos fatos narrados. Na chamada imprensa
genérica, detalhes sobre a profissão, idade, gênero ou status social de
uma vítima de homicídio, por exemplo, podem alterar os sentimentos
produzidos pela notícia: se o morto é um ajudante de pedreiro, ou se é
um empresário, se é homem ou mulher, se é branco ou não, se é um jovem
de classe média ou morador de favela, são inúmeros os signos que podem
definir o efeito sobre o público típico dos jornais, e, portanto, o
interesse da imprensa em explorar o acontecido.
Essas são características inerentes a qualquer fato que venha a público
através da mídia tradicional. Assim, pode-se imaginar a seguinte
situação na rotina dos diários: um menino sai da favela empinando sua
pipa e morre atropelado na rodovia; no mesmo dia, o cachorro de uma
celebridade escapa da guia e é morto ao atravessar a Avenida Paulista.
Qual dos dois fatos tem mais possibilidade de sair no jornal?
O primeiro acontecimento só vai virar notícia se os moradores da favela
decidirem bloquear a rodovia em protesto contra a falta de segurança,
vertendo o evento fúnebre em fato social e econômico. Essa
característica se repete na política e no noticiário econômico, mas a
decisão editorial, nestes casos, não se prende ao interesse de
satisfazer a curiosidade ou as preferências dos leitores, mas de
influenciar seus valores.
No eixo principal do jornalismo praticado pelos veículos de maior
prestígio, o processo decisório se inverte, e a imprensa procura impor
ao leitor uma visão pré-elaborada. Na política e na economia, os fatos
têm que se adequar à opinião.
Observe-se, sob esse critério, a convergência entre o noticiário
político e o econômico nas edições dos três principais diários de
circulação nacional de quinta-feira (3/4). Além dos fatos do dia, como a
proposta de mais uma CPI no Congresso e a crônica das costumeiras
rebeliões nas bases parlamentares em época eleitoral, os jornais jogam
com a expectativa de uma pesquisa de intenção de voto que está sendo
elaborada pelo Datafolha, e certos fatos econômicos são imediatamente
atrelados aos resultados que nem foram anunciados.
Os humores do mercado
Parece claro, para quem ler os jornais do dia, que os editores já estão
informados de que a pesquisa irá apontar no dia seguinte uma queda na
vantagem que a atual presidente da República, Dilma Rousseff, mantém
sobre seus potenciais adversários desde as primeiras consultas.
Numa conexão interessante, a imprensa noticia uma melhora no desempenho
da Bolsa de Valores, afirmando que, sondando o mercado, foi detectado
um aumento do otimismo por conta de boatos sobre a possibilidade de a
atual presidente ter perdido pontos com os eleitores. O fato concreto é
que a Bolsa foi impulsionada por um forte ingresso de recursos
estrangeiros, subindo 2,85%, com o volume de negócios recuperando as
perdas do início do ano.
Há muitos elementos nos próprios jornais a indicar outras razões para
otimismo, entre as quais se pode apontar o aumento do investimento
estrangeiro direto – dinheiro que compra participação em empresas
nacionais ou em infraestrutura – que favorece o movimento de negócios
com ações e títulos.
Também se pode afirmar que a Bolsa é influenciada por muitos fatos
positivos noticiados pela imprensa no mesmo dia. Por exemplo, o número
de famílias paulistanas endividadas é o menor dos últimos quinze meses.
Outro exemplo: a produção da indústria cresceu, em fevereiro, pelo
segundo mês consecutivo, apontando para um aumento do Produto Interno
Bruto no primeiro trimestre. Um terceiro exemplo: dados do Dieese
publicados na mesma quinta-feira (3/4) informam que a recuperação do
poder de compra dos salários segue em plena força: em 2013, nada menos
do que 87% dos reajustes salariais superaram a inflação.
Há outros elementos positivos, como o recuo no preço dos imóveis,
abaixo do índice inflacionário do setor. Além disso, embora o IPC aponte
um aumento da inflação acumulada para o ano, a expectativa ficou abaixo
das previsões da imprensa, mesmo considerando o aumento do preço dos
combustíveis e os efeitos da estiagem ou das chuvas excessivas sobre os
alimentos.
Mas a imprensa credita o otimismo da Bolsa de Valores unicamente à
suposição de que o “humor” do mercado melhorou com boatos em torno da
pesquisa Datafolha sobre intenção de voto.
Não seria o caso de investigar esse possível vazamento de informações?
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