sexta-feira, 20 de novembro de 2015

POLÍTICA - Todos somos Paris, exceto os que não são.


17/11/2015 - Copyleft

Todos somos Paris, exceto os que não são

É mais fácil colocar a culpa pelos atentados de Paris no fluxo de refugiados sírios que aceitar que existe uma brecha interna nas sociedades europeias


Isidro López e Emmanuel Rodríguez
reprodução
Desde a sangrenta sexta-feira passada, estamos assistindo a repetição de dois rituais políticos. O primeiro diz respeito à inevitável representação do poder do Estado, antes dono da vida e da morte dos seus cidadãos, hoje um derivado das necessidades desse cidadão, e no caso do debate atual, da sua necessidade de segurança. O segundo é a elevação do “Islã radical” à categoria de inimigo absoluto, interno e externo, da civilização europeia. “Civilização ou barbárie”, dizia o presidente espanhol Mariano Rajoy, dias atrás.

Se nos situamos, de alguma forma, nessa caricatura com a qual apresentam o problema (o islamismo) e sua solução (a dureza do Estado) estamos mal. Dos rituais do Estado, apenas podemos dizer que só servem para validar as instituições e figuras que são só isso, “poder do Estado”, tão impávido e frio com respeito à sorte de suas populações nesta crise, como a respeito do que ocorre nas guerras que deflagradas do lado de fora das suas fronteiras. Contra esse poder, o melhor remédio é que a guerra da Síria (como a da Líbia, a do Iraque e do Afeganistão) são guerras europeias, que um morto vale o mesmo que outro morto, independente do que indique sua cor de pele ou sua nacionalidade. Logo, o que interessa ao Estado não é tanto o número de mortos, mas o seu valor em termos de “segurança”, ou seja, a ameaça supostamente imposta às atemorizadas classes médias europeias e a capacidade da ação do Estado oferecer uma solução. Prova de força: o recente bombardeio de aviões franceses sobre uma cidade síria, segundo um padrão que vem planejando há meses, teve como resultado, provavelmente, mais mortes de civis que nos atentados da sexta-feira, em Paris. Os líderes ocidentais se preocupam tanto com os mortos de Paris (e da Síria) que, neste fim de semana, alguns apareceram tranquilamente na Turquia, um dos principais países patrocinadores do Estado Islâmico, tirando fotos sorridentes com Erdogan.

Sobre o segundo ritual, a análise volta a ser complexa, sobretudo se entendemos o enorme grau de desconhecimento que existe no Ocidente sobre sua porta de trás, onde estão as jazidas que reúnem “suas” principais reservas energéticas. Sunitas, xiitas, vários exércitos e milícias islâmicas, forças muitas vezes enfrentadas, linhas de financiamento cruzadas entre Estados Unidos, Arábia Saudita, Rússia e a União Europeia, diferentes Estados e às vezes as mesmas milícias, sem contar o velho conflito entre Israel e Palestina, tudo isso dentro de uma região na qual a situação de guerra civil aberta se respira há mais de meio século, onde os níveis de vida, salvo exceções, são piores que os de três décadas atrás, onde um punhado de países foram mutilados e inviabilizados – com a inestimável ajuda dos Estados Unidos –, e sobretudo onde todos (Islã radical e países ocidentais) concordam em marginalizar ou destruir qualquer alternativa laica e progressista na região, que passasse pela nacionalização do petróleo e pela construção de estados capazes de prover um mínimo de bem-estar e democracia à sua população.

Mas o fato é que o problema não vem somente do Oriente Médio. A maior parte da organização dos atentados da última sexta-feira 13 foi formada por pessoas que moravam em Paris ou em Bruxelas, capital da Bélgica. Sabemos poucas coisas sobre esses atentados, uma delas é que eram cidadãos franceses que passaram pelo sistema escolar francês, que foram criados segundo os valores republicanos (lembram-se da velha consigna de “liberdade, igualdade, fraternidade”?) que já não têm nenhum valor nas periferias, as famosas banlieues. É o mesmo sistema pelo qual passam os 7 mil cidadãos europeus que combatem hoje na Síria, a favor do Estado Islâmico. Vejam bem: 7 mil colaboradores – nenhuma organização política do Ocidente seria capaz de mandar nem a metade de voluntários a qualquer guerra estrangeira. O tempo dos brigadistas internacionais já passou. Por isso, é mais fácil colocar a culpa no fluxo de refugiados sírios que aceitar que existe uma brecha interna nas sociedades europeias – afinal, a acusação sobre o êxodo é funcional ao modelo de segurança que os Estados querem impor, com mais ênfase agora, depois dos atentados.

Em um lapso de poucas décadas, as banlieues francesas, de falar a língua dos discursos “SOS Racismo”, rapidamente assimilados pelo socialista Mitterrand, passaram aos distúrbios violentos de 2006, incompreensíveis para as classes médias, nos quais havia, entretanto, matizes de protesto social, para finalmente serem a base da organização dos atentados da última sexta. A explicação cultural (“a culpa é do Islã”) omite o fato de que são franceses, e que há bem pouco tempo atrás, o sonho de jovens como esses era simplesmente serem franceses. A explicação progressista (“o problema é a educação”) também falha, porque esquece que foi a esquerda a que deixou esse espaço social jogado à própria sorte.

Observando nestes dias os homens e mulheres de Estado, parece que vai se repetindo um clássico modelo de ação/reação contra o terrorismo, do acordo com a grande aposta política neocon, surgida no começo deste século, dirigida a recuperar a hegemonia norte-americana, o New American Century de Bush e Rumsfeld. O objetivo é gerar ordem interna nos países ocidentais. Os apelos abstratos em favor da unidade, a crítica a qualquer “politização” da interpretação destes atentados e a exigência de um apoio unânime às políticas de Estado são elementos que formam parte deste modelo, como ficou claro depois dos atentados de 11 de março em Madri. Nesse contexto, cair nas armadilhas da “responsabilidade do Estado” foi um erro fatal da esquerda europeia, e que, no caso espanhol seria conveniente que o Podemos não caísse nesse discurso.

A verdade é que parece meio duvidoso que, numa Europa em crise, com um estancamento econômico secular, se possa construir uma nova ordem social, ao menos a partir da base única do discurso sobre a segurança ameaçada pelos atentados islamistas. Muito mais simples parece ser a tarefa de partidos como a Frente Nacional, de Marine de Le Pen, com um pé na radicalização desses discursos pró-segurança e outro na crítica nacionalista da austeridade europeia. Em todo caso, é importante repetir que o problema não é a brutalidade de Le Pen nem o terror dos jovens muçulmanos da periferia (esses são dois simples dados da involução do nosso tempo), mas sim a esquerda e sua incapacidade de trabalhar com os problemas reais daqueles que não formam parte de seu minguante público entusiasta.

Tradução: Victor Farinelli

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