Qatargate: "Isto não é apenas um problema de maçãs podres no cesto"

Em entrevista ao jornal 2 da RTP, Marisa Matias comentou a notícia que caiu como uma bomba em Estrasburgo e que já é conhecida por "Qatargate". A eurodeputada socialista grega Eva Kaili foi detida pelas autoridades belgas e acusada de corrupção, branqueamento de capitais e associação criminosa, ficando em prisão preventiva. A investigação envolve um antigo eurodeputado socialista italiano entretanto detido e a ONG que fundou após terminar o mandato, chamada "Luta contra a impunidade" Em causa estarão subornos pagos pelo lóbi do Qatar em troca da proteção dos seus interesses e imagem junto das instituições europeias. No Parlamento Europeu, Eva Kaili era uma das maiores defensoras do regime qatari e chegou mesmo a colocá-lo na "vanguarda dos direitos laborais" no recente debate da resolução sobre os direitos humanos naquele país, agendado após mais de um ano de resistência por parte do grupo socialista e também do Partido Popular Europeu.
"É uma situação muito grave, muito extrema e que põe em causa todo o Parlamento Europeu", afirmou Marisa Matias, acrescentando que "nesta investigação não pode ficar pedra sobre pedra". Por outro lado, a operação policial do fim de semana serviu para clarificar a "opção de agenda do Parlamento Europeu", ao recusar durante mais de um ano debater uma resolução proposta pelo grupo da Esquerda sobre direitos humanos no Qatar. "Nunca conseguimos ter maioria para a realização desse debate, nem mesmo na conferência de presidentes. Infelizmente percebemos agora porquê", afirmou a eurodeputada do Bloco de Esquerda.
Um dos detidos na operação da polícia belga é o recém-eleito líder da Confederação Internacional de Sindicatos (ITUC) Luca Visentini, que até agora liderava a Confederação Europeia de Sindicatos e discursou em maio passado em Santarém na abertura do Congresso da UGT. "É chocante e muito frustrante perceber que alguém que deve cuidar dos direitos dos trabalhadores e estar à frente dessa luta esteja também envolvido neste esquema de corrupção", lamentou Marisa Matias.
É preciso acabar com sistema de "portas giratórias" e de influência dos lóbis nas decisões políticas
Sobre a proposta de Ursula von der Leyen para a criação de uma comissão de ética para responder a este problema, Marisa responde que "se for para criar uma comissão de ética para secundarizar ainda mais o papel do Parlamento Europeu em relação a outras instituições, não estou de acordo". E contrapôs: "Se for para ter este exemplo como um péssimo exemplo que nos possa servir para alterar alguma coisa daquilo que é o sistema de funcionamento das instituições, então já podemos falar a sério", dado que "o problema das instituições europeias e da sua relação com o lóbi não é um problema de hoje".
O que é preciso alterar, defende Marisa, é "essa forma de funcionamento" com "um permanente sistema de portas giratórias, de influência do lóbi nas decisões políticas". E dá como exemplos a contratação da Blackrock como consultora para a política de combate às alterações climáticas, "que eu e o José Gusmão denunciámos à Procuradoria Europeia e foi aberto um inquérito", ou a troca de mensagens entre o CEO da Pfizer e a presidente da Comissão Europeia "que nunca foi esclarecida".
"Há um registo de que 485 ex-deputados trabalham hoje diretamente nos grupos de interesse dos lóbis, e não são apenas deputados, estamos a falar de todas as instituições", prosseguiu Marisa, recordando o caso mais célebre de Durão Barroso, que em pouco tempo passou da liderança da Comissão Europeia para o grupo financeiro Goldman Sachs.
"Quando existem as grandes companhias e oligarcas do sistema energético, das comunicações, da Google, da Facebook, que estão identificados e reconhecidos, quando isto existe e eles são elementos fundamentais nas decisões ao nível da UE, obviamente alguma coisa tem de ser alterada", defendeu a eurodeputada bloquista.
Por isso, concluiu Marisa, "se queremos aprender com isto, além de investigar a fundo este caso, temos de refazer a nossa forma de fazer política na UE", pois é já evidente que "não é apenas um problema de maçãs podres no cesto. Temos de olhar para o cesto, para o sistema, e perceber que há formas de fazer política que não podem continuar".

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