Para uma brasileira, negra e fã de Michael Jackson, é impossível esquecer. Em 1996, o Rei do Pop participou das filmagens do clipe “They don’t care about us” no Morro da Dona Marta, no Rio de Janeiro, e no Pelourinho, em Salvador. No vídeo dirigido por Spike Lee, a barreira da língua, os sorrisos, as camisetas do Olodum, os incríveis carisma e gingado do artista negro esconderam de muita gente que aquela canção é, na verdade, uma música de protesto, uma música contra a injustiça social. Em bom português, o título significa “Eles não ligam pra gente”. E as locações, que mostravam as condições precárias que grande parte da população negra vivia (e ainda vive) no país, casaram perfeitamente com o desabafo do hit. Vale lembrar que o Brasil é o país com maior população negra fora da África. Vale lembrar que Michael sempre valorizou a cultura negra em suas músicas e clipes. Vale lembrar que o cineasta negro Spike Lee é o responsável por filmes como “Faça a Coisa Certa” (1989), “Malcolm X” (1992) e “Infiltrado na Klan” (2018). Mas o que uma produção de 25 anos atrás, de um cantor morto, tem a ver com a atual realidade do país? Se colocarmos Brasil e população negra nos lugares de they e us, respectivamente, teremos um excelente paralelo: o Brasil não liga para a população negra. De lá para cá, essa realidade não mudou. Há mais de mil dias a pergunta “Quem matou Marielle Franco?” continua ecoando. O assassinato do negro João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, por dois seguranças brancos em 19 de novembro, véspera do Dia da Consciência Negra, no Carrefour em Porto Alegre, ainda é uma ferida aberta. Desde 27 de dezembro, os meninos negros de Belford Roxo Lucas Matheus, Alexandre e Fernando Henrique seguem desaparecidos. Após mais de um ano, o descaso de Sarí Côrte Real, que motivou a queda do 9º andar e a morte do menino negro Miguel Otávio Santana da Silva, cinco anos, no Recife, ainda não foi punido. Em 8 de junho, Kathlen Romeu, 24 anos, grávida de quatro meses, morreu durante uma ação policial no Complexo do Lins, no Rio. A jovem negra, que havia saído da comunidade por medo da violência, foi atingida por uma bala perdida enquanto visitava a avó. A Farm, ex-empregadora de Kathlen, aproveitou para lucrar com a morte da moça. A descolada marca carioca publicou um post no Instagram anunciado que a comissão das compras feitas no código de Kathlen seria revertida para a família da jovem. Como já entoou a divina Elza Soares: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”. Uma bala perdida também matou Thiago Conceição, 16 anos, ontem de manhã, 18 de junho, na Penha, no Rio. Durante a operação Coalizão Pelo Bem, o jovem foi atingido quando estava em casa. No Dia dos Namorados, 12 de junho, o instrutor de surfe negro Matheus Ribeiro da Cruz, 22 anos, foi acusado por um casal de jovens brancos, Mariana Spinelli e Tomás Oliveira, de roubar a própria bicicleta elétrica. A abordagem truculenta e agressiva aconteceu enquanto o rapaz aguardava a namorada na porta do Shopping Leblon, no Rio. Apesar do abuso, o morador da Maré conseguiu reagir, resistir, provar que bicicleta era dele e filmar o ato de racismo ao qual foi submetido. Em entrevista ao UOL, o jovem disse que como negro sofre violências como essa todos os dias e que essa foi a primeira vez que conseguiu gravar o ato. Ao final da entrevista, Matheus reconheceu que ele poderia ter se dado mal. “Se eu não conseguisse provar naquela hora, se tivesse passando algum policial, talvez, a história poderia ser diferente”, analisou. Esse conto de terror teve uma reviravolta… Na última quarta-feira, 16 de junho, a polícia prendeu Igor Martins Pinheiro, 22 anos, pelo furto da bicicleta elétrica. Morador da zona sul carioca, o suspeito é branco. Ou seja, por sorte, Matheus escapou das letais estatísticas que rodeiam a população negra brasileira. Sorte que os jovens negros Felipe Barbosa da Silva, entregador de aplicativos, 23 anos, e Vinícius Alves Procópio, monitor de perua escolar, 19 anos, não tiveram. No último dia 9, no bairro Santo Amaro, a dupla foi assassinada pela Polícia Militar de São Paulo. Segundo o UOL, cada corpo tinha mais de 20 perfurações de tiros. A investigação do caso segue em curso. O Atlas da Violência 2020, do Ipea, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, destaca que “uma das principais expressões das desigualdades raciais existentes no Brasil é a forte concentração dos índices de violência letal na população negra”. “Apenas em 2018, para citar o exemplo mais recente, os negros (soma de pretos e pardos, segundo classificação do IBGE) representaram 75,7% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios de 37,8 por 100 mil habitantes. Comparativamente, entre os não negros (soma de brancos, amarelos e indígenas) a taxa foi de 13,9, o que significa que, para cada indivíduo não negro morto em 2018, 2,7 negros foram mortos”, ainda segundo o documento. “Da mesma forma, as mulheres negras representaram 68% do total das mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade de 5,2 por 100 mil habitantes, quase o dobro quando comparada à das mulheres não negras”, informa o Atlas. Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020 também não são animadores. Segundo o levantamento, em 2019, 74,4% das vítimas de homicídio no Brasil eram negras. Entre pessoas mortas por policiais, o índice sobe para 79,1%. Além disso, a pandemia de covid-19 é mais perversa com os negros. Em março do ano passado, a primeira morte da doença no país foi a da trabalhadora doméstica negra Cleonice Gonçalves, 63 anos. Hipertensa e diabética, ela foi contaminada pela patroa, que contraiu covid-19 na Itália. Diversas pesquisas apontam que a população negra é mais vulnerável e morre mais de covid-19 no Brasil. Mesmo assim, não há campanhas de vacinação voltadas para esse grupo. Acima, cito ao menos de 15 fatos ocorridos — e que ganharam destaque na mídia — em um pouco mais de três anos. Depois disso, alguém se atreve a contestar a veracidade do paralelo que tracei lá em cima: que o Brasil não liga para a população negra? |
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