quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

"Juge voleur"

 


Juge voleur, um lobisomem tupiniquim, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Enquanto atravessava aos limites da Lei em público, Sérgio Moro criou uma nova camada processual sigilosa que existia apenas nas mensagens de Telegram trocadas entre ele e o procurador Deltan Dellagnol.

Juge voleur, um lobisomem tupiniquim

por Fábio de Oliveira Ribeiro

As últimas trapalhadas de Sérgio Moro me fizeram lembrar uma obra inesquecível de Marcel Aymé. Refiro-me ao conto “O Passa-Paredes” (O Passa-Paredes, Marcel Aymé,  editora Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1982, p. 7/15)

Dutilleul, funcionário de  terceira classe dos Registros, descobre aos 43 anos que consegue atravessar paredes após tomar o remétido para esgotamento que lhe havia sido prescrito pelo médico. A primeira coisa que ele faz é atormentar o subchefe com quem se desentendeu. Usando sua nova habilidade, Dutilleul enfiava a cabeça na parede da sala do subchefe para assusta-lo e insulta-lo. O pobre subchefe acaba enlouquecendo e sendo internado num sanatório.

Dutilleul compreendeu que estava apenas começando. Ele sentia “… uma necessidade de expansão, um desejo crescente de se realizar e ultrapassar-se, e uma certa nostalgia que era algo como o chamado por detrás da parede.”

A Lei é um limite que o Juiz não deve atravessar. Como o personagem de Marcel Aymé, assim que foi elevado pela imprensa à condição de redator judicial do espetáculo processual da Lava Jato, Sérgio Moro também começou a ouvir o “chamado por detrás da parede”. Primeiro, ele inventou uma nova modalidade de prisão preventiva: aquela que era imposta aos suspeitos para extrair delações e que levava a novas prisões desnecessárias para a obtenção de novas delações. Depois, ele passou a legitimar delações obtidas mediante coação mesmo sabendo que elas deveriam ser voluntárias. O próximo passo foi transformar as delações em provas incontestáveis dos fatos atribuídos a terceiros. Mas isso não bastava.

A carreira de funcionários dos registros também não era suficiente para Dutilleul. Então ele passou a atravessar paredes para roubar dinheiro, jóias e outros objetos de valor. Como desejava ser admirado pelo público, Dutilleul assinava com giz vermelho nas paredes dos locais que havia invadido o pseudônimo de Garou-Garou. Imediatamente Garou-Garou se tornou um fenômeno popular, admirado por sua audácia e genialidade.

Enquanto atravessava aos limites da Lei em público, Sérgio Moro criou uma nova camada processual sigilosa que existia apenas nas mensagens de Telegram trocadas entre ele e o procurador Deltan Dellagnol. Nela, o Garou-Garou da Justiça Federal era chamado de Russo. Moro orientava a ação dos procuradores, aconselhando-os sobre a necessidade ou oportunidade de novas ações judiciais e midiáticas. Foi assim que ele comprometeu totalmente sua imparcialidade, mas isso era desconhecido do respeitável público. O juiz lavajateiro se tornou mais abusado depois que o TRF-4 proferiu uma decisão dizendo que ele não precisava respeitar os limites estritos da legalidade.

A ilegalidade da conduta de Garou-Garou parecia não incomoda Dutilleul quando ele deliberadamente se deixou prender pela Polícia numa bijuteria da rua de la Paix. Ao chegar no presídio, o passa-paredes rapidamente começou a zombar do diretor da instituição. Além de atravessar as paredes da prisão e furtar o relógio de ouro do diretor,  Garou-Garou prometeu fugir do presídio.

No momento em que percebeu que estava extremamente poderoso, Sérgio Moro passou a desafiar decisões do STF. Algumas vezes ele aplicava descomposturas públicas ao relator da Lava Jato, outras o juiz de primeira instância simplesmente não cumpria as decisões da última instância. Dutilleul e Sérgio Moro compartilham duas características: a dificuldade de aceitar a autoridade legítima outorgada a outra pessoa e uma inesgotável vaidade.

Após fugir da prisão, Garou-Garou atingiu o auge da popularidade. Ele “… parecia pouco preocupado em se esconder e circulava por Montmartre sem quais cuidados.” Sérgio Moro também não foi cuidadoso quando percebeu que, com apoio incondicional da imprensa e grande popularidade, poderia invadir e subjulgar o “campo político”. Isso ocorreu quando ele passou a circular por Brasília como se fosse um Senador não eleito exigindo a aprovação de um Projeto de Lei para conferir a ele mais poder do que ele já tinha. Cogitado para ser Ministro do STF, na prática ele assumiu em público a presidência informal daquela instituição.

Preso novamente, Dutilleul disse que pretendia humilhar uma vez mais o diretor do presídio. Mas desta vez ele foi pessoalmente ameaçado, algo que o fez querer fugir definitivamente da prisão e da França. Mas antes de viajar, ele conheceu uma jovem a quem resolveu visitar quando o marido não estava em casa. “A jovem o esperava com toda a impaciência que as recordações da véspera haviam despertado nela, e eles se amaram nessa noite até as três horas da manhã.”

O caso de amor entre Sérgio Moro e a deusa da justiça chegou ao fim quando o STF começou a revogar os abusos que ele havia cometido. Para não ser expulso da magistratura em decorrência de alguns deles, o Garou-Garou de toga brasileira pediu exoneração. Pouco tempo depois ele se tornou Ministro da Justiça de Bolsonaro, candidato que ajudou a eleger em virtude de ter condenado e preso Lula num processo cuja principal característica era ser desde o início a maior fraude processual da história judiciária brasileira.

Após a noite de amor,  Dutilleul percebeu que estava tendo dificuldade para atravessar paredes. Ao mergulhar no muro de vedação ele “experimentou nitididamente uma sensação de resistência.” Sem conseguir se movimentar, ele ficou preso e incorporado àquele muro porque havia tomado duas doses do medicamento que o transformara no passa-paredes.

A vaidade que elevou Sérgio Moro acabou destruindo sua carreira. O primeiro erro ele cometeu como Ministro da Justiça ao perseguir o hacker que revelou os segredos sujos das mensagens entre ele e Deltan Dellagnol. O segundo erro dele foi aceitar cargo e remuneração milionária num escritório de advocacia que ganhou fortunas administrando empresas destruídas pela Lava Jato. Moro atravessou tantas barreiras legais que agora não pode se dizer vítima de abusos. O patrimônio dele será bloqueado. A prisão preventida dele já está sendo cogitada por deputados e senadores.

O vocábulo “Garou” vem do francês antigo “garoul”, significando lobisomem. Lobisomem-Lobisomem…. O combate à corrupção era a bala de prata utilizada por Sérgio Moro para derrubar Dilma Rousseff, interferir na eleição de 2018, destruir o PT e conquistar a presidência da república. Lobisomem-Lobisomem…  ao corromper ou ser corrompido por um escritório de advocacia, Sérgio Moro se tornou mais uma vítima de sua gerra. No caso dele, porém, a fundada suspeita de comportamento inadequado é muito mais segura do que aquela que ele usou para condenar o ex-presidente Lula. Lobisomem-Lobisomem…

Como Garou-Garou, Sérgio Moro acreditou que não poderia ser imobilizado. Mas imagem dele de herói imaculado incorruptível se esgotou. A foto dele ficará eternamente presa na internet com o título juge voleur. O que faltou a Sérgio Moro? Humildade, moderação, tolerância, raciocínio prospectivo e um pouco de leitura talvez.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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