“Diga ao general Mourão que não morri e sou testemunha. Estive frente a um bandido destes, um oficial gaúcho que o Mourão deve conhecer. Personagem de livro de terror policial, codinome Flecha Ligeira, a Serpente Pérfida de Olhar Cintilante. Quero apresentá-lo ao público”

O que o leitor lerá a seguir é o esboço de um relato deixado na portaria de meu prédio por um homem que se apresentou como advogado. Segundo o porteiro, estava apressado, vestia terno preto amarrotado e gravata azul turquesa. Deu meu nome e perguntou se eu ainda morava no prédio. Depois de uma primeira leitura, percebi que se tratava de um documento confidencial, daqueles que antigamente os órgãos de segurança carimbavam como reservado.  

O envelope lacrado que me foi entregue trazia sobrescrito na frente “Anos 70, Pra Frente Brasil, chega de tortura!” Continha apenas uma página datilografada, com três parágrafos, espaço um entre as linhas. Seu autor, se for mesmo o que estou pensando pelas iniciais do nome, andou pelos cárceres da ditadura militar durante mais de dois anos, entre 1970 e 1972. Devo ter cruzado com ele em algum quartel do Exército, lá pelas bandas da Vila Militar.

Deixou manuscrito um pequeno bilhete em letras maiúsculas. “Peço desculpas por te deixar isto só agora. Não deu para segurar, depois que ouvi os vídeos secretos das sessões do STM. As pessoas ficaram chocadas ao saber que moças grávidas abortaram depois de levar choques elétricos nos órgãos genitais. Rapazes tiveram o crânio aberto a marteladas. Os militares tinham furor ideológico, eram misóginos, sádicos enrustidos por não suportarem a liberdade e a beleza esbanjadas por aqueles jovens, que chamavam de terroristas. Foram brutais com o corpo das mulheres. Tinham mais medo das meninas do que dos meninos. Não preciso dizer que arrebentaram uma geração inteira. Você sabe. São assassinos, agiram com cobertura plena do regime, que os mantêm intocáveis. Um general diz que todos já morreram e não é possível uma investigação. Diga ao general Mourão que não morri e sou testemunha. Estive frente a um bandido destes, um oficial gaúcho que o Mourão deve conhecer. Personagem de livro de terror policial, codinome Flecha Ligeira, a Serpente Pérfida de Olhar Cintilante. Quero apresentá-lo ao público. Ao ver essas conversas com relatos de tortura entre os juízes do STM, revi na cabeça imagens do Pra Frente Brasil, aquele filme do Roberto Farias do início da década de 80, se lembra? A primeira vez que a tortura foi mostrada publicamente. O filme retrata o auge da repressão no governo do ditador Médici. Bom, quem sabe uma hora, livres desta barbárie, podemos nos encontrar para tomar um vinho.”  

Ao seu relato:

“No final de 1970 cheguei preso pela primeira vez ao Doicodi da Barão de Mesquita. Meu irmão mais velho, codinome Baianinho, já estava em um quartel do Exército na Vila, ao lado de outros presos. Forcei a barra visitando meu irmão quando surgiu o plano para assaltar o quartel, libertar os presos e levar uma boa quantidade de armas e munição. A ação contava com a colaboração interna de dois soldados e um sargento. Malogrado o plano, fomos presos.

  Fiquei na solitária de número 6, ao lado da em que foi colocada Estela, a Dilma. Fiz amizade com um soldado que dava plantão. Foi através dele que mandava recados para a Estela na cela vizinha, trazida de São Paulo com seu companheiro. Nos seus dias de plantão, o ‘Catarina’ me trazia duas frutas, alguns biscoitos e cigarros. E notícias da Dilma. 

Fui solto graças ao advogado Sobral Pinto e depois preso novamente em janeiro de 1972, durante os assassinatos do período Médici. Cheguei pela terceira vez ao Doicodi quando já estavam instaladas as câmeras de tortura conhecidas como geladeiras, equipadas com ruídos eletrônicos e temperatura controlada pelos algozes. Depois de uma sessão no pau de arara, fui transferido para uma das solitárias do PIC, o Pelotão de Investigações Criminais. 

Uma tarde, a portinhola foi aberta. Um desajustado torturador, capitão do Exército de codinome Flecha Ligeira, foi à cela me zoar. Alemão zombador, exclamou sarcasticamente: ‘Hã, hã, amigo veio. O bom filho à casa torna’. Meteu a cabeça para dentro fingindo examinar tudo. 

Observou atentamente o vaso sanitário quebrado e sem tampa, com um olhar fixo e cintilante de uma serpente pérfida. ‘É guerra, é guerra!’, berrou. Exibiu o peitão queimado de sol e fez um gesto muito manjado, unindo os polegares e indicadores das duas mãos, dizendo que ‘estava assim de buceta gostosa na praia, e tu vai ficar aqui nesta porra até brochar’.

  O provocador do cabo Gil bateu a portinhola com força, gritando: “Terrorista, filho da puta!” Flecha Ligeira adorava torturar os presos colocando para tocar bem alto a música Jesus Cristo, eu estou aqui, do Roberto Carlos. Lá na boate, o tempo todo do interrogatório, encostou o cano da pistola no meu ouvido, praticando roleta-russa. Toda vez que comprimia o dedo e o projétil não detonava, o Flecha Ligeira exclamava sadicamente: ‘Ôôô, amigo velho de sorte’. E tornava a colocar a arma em cima da mesa. 

  Surgindo de repente, seu comparsa dr. Nagib puxou os fios que acionam os choques elétricos, ligou nos meus pés e pôs um álbum estropiado de fotos em cima da mesa. Com uma risadinha cínica e irônica, disse: ‘Agora, vamos contemplar os nossos artistas favoritos’. Folheou os dossiês das organizações com as fotografias dos militantes, para que eu identificasse um a um.  

Depois de uma pausa, reaparece sorrateira a serpente pérfida de olhar cintilante, exibindo uma faca de lâmina curta e afiada na mão direita. Ficou com ela fazendo ronda na minha cara. Encostou a ponta da lâmina de um lado e de outro, até fazer um risco e o sangue descer. Disse que ia me deixar com uma cicatriz para o resto de meus dias. 

Um companheiro de cela, acho que o Bartô, Alex Polari, disse que se tratava de um capitão gaúcho de nome Hughes ou Hudson. Durante anos permaneceu misteriosa a identidade do falecido Flecha Ligeira, um dos soldados mais condecorados da Gestapo nativa que atuou nos subterrâneos da ditadura. 

Pesquisadores da Comissão da Verdade, remexendo velhos papéis nos arquivos públicos, descobriram a foto antiga de um tenente do Exército. O homem da foto veste terno e gravata, tem a pele alva, a face recoberta por uma tonalidade rósea. E os olhos são de um azul cintilante. Eis o Flecha Ligeira, a Serpente Pérfida de Olhar Cintilante, o capitão do Exército Antônio Fernando Hughes de Carvalho.”