As epopeias da espada de Bolívar
Ela encarna o sonho da Pátria Grande. Nos últimos 50 anos, foi expropriada pela guerrilha, escapou de marines, esteve sob custódia de Fidel e foi protegida por “ordem secreta”. Em sua posse, Gustavo Petro retirou-a do cofre estatal para reencontrar multidões
Por Pablo Solana, na Primera Línea, traduzida por Pedro Marin para a Revista Opera
Prontamente se escutou o canto entre a multidão: “Alerta! Alerta! Alerta que caminha, a espada de Bolívar pela América Latina!”.
Gustavo Petro havia desafiado a recusa do presidente cessante, Iván Duque. “Como presidente da Colômbia solicito à Casa Militar que traga a espada de Bolívar, é uma ordem do povo e deste mandatário”, disse no microfone. Os responsáveis pela segurança não souberam o que fazer. Em meio à cerimônia, não estava claro se quem seguia encarregado do governo era Duque, que tinha ordenado que a espada não fosse movida de lugar, ou se já correspondia a Petro, que ordenava o contrário, mandar.
O protocolo se deteve, enquanto alguns grupos avaliavam o que deviam fazer. Depois de meia hora de tensão e incerteza, a balança se inclinou a favor do novo presidente. Sua ordem foi acatada. A espada percorreu a distância que separa a Casa do Governo da Praça de Bolívar.
Foi a primeira vez na história que a arma do Libertador foi apresentada ante uma multidão. Na praça, o povo celebrou o fato. No palco, o rei da Espanha ofendeu o país que o havia convidado com um gesto de desprezo típico de sua pretensão colonialista: foi a única pessoa que não se levantou frente à chegada do símbolo pátrio, emblema da independência da Nossa América.
As batalhas de Bolívar são conhecidas. Mas sua espada as transcendeu. Ela tem sua própria história, mantida viva até nossos dias.
“Tua espada volta à luta”
Em 1974, um comando guerrilheiro invadiu o Museu Quinta de Bolívar, a poucas quadras do centro de Bogotá. Sem muito escândalo, a espada de Bolívar, que repousava no quarto do Libertador, foi levada. Foi o ato fundante do Movimento 19 de Abril (M-19), o Eme, como ainda é conhecido o grupo insurgente onde o atual presidente do país iniciou sua militância.
Os responsáveis pela ação vinham das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), mas tinham decidido deixar o grupo para empreender seus próprios caminhos. O ideólogo e primeiro comandante da nova organização armada foi Jaime Bateman, um costeño de 33 anos que na guerrilha comunista havia estado sob as ordens do lendário Manuel Marulanda, codinome “Tirofijo”. “Queríamos fazer um movimento para o país, para as pessoas comuns. E o nacionalismo ali era um fator essencial que não víamos nas FARC. Começamos a pensar em um tipo de operação político-militar que se relacionasse com Bolívar, para reivindicá-lo, para tirá-lo dos livros da história”, explicou Bateman à época.
A ação foi muito similar à realizada por um grupo da Juventude Peronista onze anos antes, em 1963. No 12 de agosto daquele ano, o grupo assaltou o Museu Histórico Nacional, que se encontra no Parque Lezama, em Buenos Aires, e levou o sabre de San Martín. Mas os guerrilheiros colombianos mencionavam outra ação como inspiração: a recuperação da bandeira dos Trinta e Três Orientais que José Gervasio de Artigas havia criado durante suas lutas emancipatórias. Essa ação havia ocorrido em um museu de Montevidéu, pelas mãos da Organização Popular Revolucionária “33 Orientales”, em 1969. Ações armadas de alto impacto propagandístico e baixo risco, como estas retomadas de símbolos da história da libertação nacional, foram um elemento muito comum entre as guerrilhas urbanas latino-americanas de então.
“Bolívar, tua espada volta à luta”, dizia a proclamação que os guerrilheiros deixaram no museu, sobre os vidros quebrados da vitrine que até então a alojava. Também tinham levado os estribos e as esporas do Libertador. Todos esses elementos, juntamente com o sabre desembainhado, aparecem em uma foto que mostra também a bandeira da organização, os braços de um guerrilheiro empunhando um fuzil e, ao fundo, um mapa da América Latina.
Para assumir a autoria da ação escolheram a primeira edição da revista Alternativa, dirigida por Gabriel García Márquez, que foi lançada em fevereiro de 1974, um mês depois do Eme assaltar o museu. “Apareceu a espada de Bolívar. Está na América Latina!”, diz a legenda da foto, com certa cumplicidade.
Em poucos dias a espada foi levada para a casa do enxadrista Boris de Greiff, filho do consagrado poeta León de Greiff. O jovem considerou que o artefato estaria mais seguro na casa de seu pai, e ali permaneceu durante algum tempo. Quando o então presidente da República Alfonso López Michelsen visitou o poeta, ele esteve, sem saber, achegado ao objeto mais procurado da Colômbia. A espada repousava na biblioteca da sala de estar, oculta atrás de alguns discos de acetato de 75 RPM. Os descendentes de Greiff não conseguem informar se o velho, então com 80 anos – hoje reconhecido como um ícone da poesia nacional – colaborava com a atividade clandestina do M-19, ou se simplesmente foi participante involuntário de um ato no qual seu filho o envolveu.
Após a morte do poeta, a espada foi levada a outras casas de militantes e colaboradores da guerrilha em Bogotá e nos arredores da capital. Cada vez que a repressão endurecia, o M-19 planejava alguma mudança de local.
Em 1 de janeiro de 1979 o Eme realizou uma das ações guerrilheiras mais rentáveis da história: atacou o Cantão Norte do Exército em Bogotá, levando nada menos que 5 mil armas. Nesse dia se comemorava os 20 anos da Revolução Cubana. Os militares dobraram a perseguição. Em outubro desse ano, entre as dezenas de líderes e militantes presos, estava Álvaro Fayad, um dos protagonistas da ação que recuperou a espada.
Em fevereiro de 1980, o M-19 realizou outra ação espetacular: a tomada da embaixada da República Dominicana; exigiam a libertação de 300 presos políticos. Os guerrilheiros pareciam protegidos pelo espírito do Libertador, já que, apesar da repressão, as ações contra o regime saiam dentro do esperado. Em poucos anos alcançaram uma alta popularidade. Mas a perseguição que se avolumava depois de cada uma das ações vitoriosas acelerou a decisão: a espada devia sair do país.
Fidel, Barbarroja e a invasão ianque ao Panamá
A única coisa que se sabe sobre a pessoa que serviu de ligação entre o Eme e Cuba durante a década de 1970 é seu apelido, com toques soviéticos: Gari. Esse homem foi o responsável de fazer a espada chegar a Havana, supostamente em uma mala diplomática, em meados da década de 1980. Fidel Castro, ciente da operação, confiou seus cuidados a Manuel Piñeiro, o comandante Barbarroja.
Piñeiro ostentava o cargo formal de chefe do Departamento para a América do Partido Comunista de Cuba. Sob essa cobertura, se encarregava das relações com as organizações revolucionárias de todo o continente, entre elas as colombianas, que já haviam recebido treinamento militar na ilha. Por ordem de Fidel, a espada de Bolívar ficou a cargo de Barbarroja, que cuidou dela com tanto zelo que a manteve durante anos em seu escritório privado, sob sua custódia pessoal.
Tempos depois, em novembro de 1985, o M-19 realizaria sua ação mais audaz: a tomada do Palácio da Justiça, com todos os membros da Suprema Corte dentro. A resposta militar se transformou em um massacre. Antes da ação, Álvaro Fayad pediu aos cubanos que enviassem a espada ao Panamá porque queriam tê-la mais próxima, mais perto das mãos. A jornalista Patricia Lara, que investigou o caso, deduz que o Eme pensava em sair triunfante do Palácio da Justiça e, nessa ideia de vitória, talvez quisessem empunhar a mítica espada em uma caravana triunfal. Mas o certo é que a ação terminou em tragédia, e o M-19 foi duramente golpeado. Fayad, o homem que mais tinha se ocupado da espada, caiu morto em um enfrentamento em março de 1986.
A espada permaneceu parada em um cofre da embaixada de Cuba no Panamá, até o momento da invasão norte-americana em 1989. De Havana, Barbarroja acompanhava com atenção a resistência do povo panamenho. Ao ver as consequências da ocupação militar ianque, decidiu que a arma de Bolívar corria risco. Pediu que a enviassem de novo à ilha, para retomar o controle pessoal de sua segurança.
Conhecedor dos mecanismos de espionagem que os EUA estavam pondo em prática, falou em códigos com seu agente no país invadido: “Mande-me esse garfo pra cá”. A caminho do aeroporto, o veículo que transportava o “garfo” foi vasculhado pelos marines, que já tinham tomado o controle da cidade. O objeto, envolto em mantas simples, passou despercebido. Como havia ocorrido anos atrás com o presidente Michelsen na casa do poeta Greiff, outra vez a espada de Bolívar conseguiu burlar seus inimigos e manter-se clandestina, em mãos rebeldes.
Em 1990, após as eleições constituintes que prenunciaram a passagem à vida política do M-19, um integrante da bancada dessa força informou ao governo cubano que havia condições para que a espada voltasse à Colômbia. Fidel Castro respondeu que só a entregaria a Antonio Navarro Wolf, a principal autoridade da força política na qual o Eme havia se convertido, a Aliança Democrática – M-19.
Como a Colômbia e Cuba não tinham relações diplomáticas, a espada foi enviada a Caracas. Ali o embaixador cubano a entregou a Navarro Wolf, que convidou García Márquez a presenciar esse momento. O então presidente da Venezuela, Carlos Andrés Pérez, informado do fato, também quis estar presente.
Após seu regresso da Venezuela, Navarro Wolf entregou a espada do Libertador ao presidente colombiano César Gaviria. O fez em um ato sem muita pompa, na mesma Quinta de Bolívar de onde havia sido retirada 17 anos atrás.
A espada foi deixada em um cofre do Banco da República durante alguns anos. Esteve na Casa do Governo durante outros períodos, para o gozo exclusivo da elite política do país. Até o domingo, 7 de agosto de 2022, quando Petro ordenou que fosse apresentada à multidão, durante seu ato de posse presidencial.
A América Latina e a Ordem da espada
Em 1986 o M-19 buscou reforçar a solidariedade das organizações de todo o continente. A organização estava debilitada após o fracasso da tomada do Palácio da Justiça. Para consolidar as relações políticas para além das fronteiras, promoveram uma espécie de grupo secreto continental para cuidar da arma do Libertador. Convocaram diversas personalidades e organizações populares. A proposta ficou conhecida como “Ordem da espada”.
No arquivo do Centro de Memória Histórica há uma cópia digital da revista 2010, publicada anos depois por integrantes do Eme nos tempos da Constituinte (1991). Ali dizem que a Ordem contou com doze membros, dentre os quais oito pediram para manter o compromisso oculto. Aqueles que aceitaram tornar público o apoio à iniciativa foram o panamenho Omar Torrijos (através de seus descendentes), escolhido por seu compromisso antiimperialista na defesa do Canal do Panamá; o ex-presidente da Costa Rica, José Figueres Ferrer, fundador da Segunda República em seu país; o bispo mexicano Sergio Méndez Arceo, valorizado pelo seu compromisso com o povo pobre; e, na Argentina, as Mães da Praça de Maio, em reconhecimento por sua luta contra a ditadura militar. A ideia era entregar a cada membro da Ordem uma carta, um pergaminho e uma réplica da espada (embora haja dúvidas de que esta última ideia tenha se concretizado). O jornal El Tiempo consultou Enrique Carrera, o mais próximo colaborador do presidente da Costa Rica, que confirmou a história: “Sim, agora eu sou o depositário da carta, do certificado e da réplica da espada”. O blog de ex-combatentes do M-19 Oiga, hermano, hermana, reproduz uma imagem do diploma com o qual se reconheceu, ademais, a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) de El Salvador. Outros meios mencionam entre os possíveis ordenados os uruguaios Eduardo Galeano e Mario Benedetti.
Segundo o jornal El Tiempo, havia um registro do encontro do M-19 com as Mães da Praça de Maio em Buenos Aires, realizado em algum momento depois de 1986: “Uma delas, que queria ter uma recordação desse dia, filmou a cerimônia”, afirmam os jornalistas María do Rosario Arrazola e Arturo Jaimes. O feito, no entanto, não foi reconhecido pelas Mães até hoje.
O novo governo e a espada
Para Gustavo Petro, assim como para toda sua geração militante, a espada de Bolívar é um símbolo potente.
Em uma entrevista realizada há 35 anos, em 1987, um jovem com um diminuto bigode oitentista cobre seu rosto parcialmente com um boné azul para não ser visto por completo. Com a bandeira do M-19 ao fundo, denuncia o desaparecimento de militantes de sua organização. Quando o jornalista o pergunta sobre a espada de Bolívar, o jovem – que com os anos todo mundo saberá tratar-se de Gustavo Petro – responde: “Será apresentada publicamente. Está na Colômbia, em mãos do M-19, em mãos do povo colombiano, até que neste país se conquistem os objetivos do Libertador, os objetivos de justiça social, de paz para todos e de uma verdadeira democracia”.
Mas em 1987 a espada estava no Panamá e não na Colômbia, como diz em entrevista o jovem porta-voz da guerrilha. Podemos tomar a imprecisão como uma obrigação da clandestinidade.
Durante o ato de posse de Petro houve outro gesto de reivindicação do M-19: o resgate da figura de Carlos Pizarro, comandante desta organização e candidato à presidência, assassinado em plena campanha eleitoral em abril de 1990. Não foi uma piscadela nostálgica, com odor de tempo passado. Pelo contrário, a homenagem veio das mãos de uma jovem militante feminista, a artista plástica e senadora Maria José Pizarro. Foi ela, a filha do líder do M-19, a escolhida para pôr em Petro a faixa presidencial.
Desde que ganhou as eleições, a equipe de Gustavo Petro começou a requisitar ao governo cessante a autorização para que a arma do Libertador estivesse presente no ato de posse. As negociações estavam encaminhadas até que, no último momento, Iván Duque levantou algumas desculpas: que não havia seguro para a espada sair da Casa de Governo, que não se podia abrir a urna que a continha. A incerteza sobre a forma em que se resolveria a queda de braço se manteve até o momento do juramento presidencial.
Há 217 anos, em outro juramento, um jovem Bolívar prometeu a seu professor Simón Rodríguez, em Monte Sacro, que a espada não seria embainhada até que seu povo fosse libertado. Petro, que costuma se referir a esse fato, diz que ela continuará assim. Desembainhada, em atitude de combate, até que a paz e a justiça social prevaleçam na Colômbia.
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