quarta-feira, 24 de abril de 2013

ECONOMIA - EUA: Entre a crise sistêmica e a guerra permanente. (I)


A economia estado-unidense hoje:
Entre a crise sistémica e a guerra permanente
por Rémy Herrera [*]
Introdução 

O capital financeiro, composto pelos mais poderosos oligopólios bancários e financeiros, os quais possuem capital a uma escala mundial, tem o seu centro de gravidade no próprio cerne do poder hegemónico do sistema mundial: os Estados Unidos da América. Historicamente, o retorno do capital financeiro ao poder – consolidado nas últimas décadas do século dezanove, mas colocado sob controle do estado após a Grande Depressão de 1929 – verificou-se após a confirmação do declínio nas taxas de lucro registadas nos principais países capitalistas do centro (Estados Unidos, Europa Ocidental, Japão) principiados no fim da década de 1960, as quais aprofundaram-se durante a década de 1970 e tornaram-se uma crise do capital aberta e generalizada, com a queda de todo o sistema monetário no caos e na explosão de desigualdades.

O ponto de viragem para a alta finança esteve ligado ao aumento da taxa de juro (ou prime rate ) nos Estados Unidos em Outubro de 1979. O Federal Reserve Bank, influenciado por políticas monetaristas, unilateralmente e brutalmente tomou esta decisão. Como o "prestamista de último recurso" no sistema monetário internacional, o Fed executou um " coup d'État financeiro" através do qual a alta finança, essencialmente aquela dos Estados Unidos, restabeleceu o seu poder sobre a economia mundial. As consequências desta mudança foram globais, elas afectaram tanto o Norte, cujas estratégias, sob "constrangimento externo", acomodaram os componentes das suas políticas monetárias, como o Sul, contribuindo para estabelecer as condições para uma epidemia de crises de dívida.

Esta reconquista financeira ocorreu sobre as ruínas dos antigos pilares do sistema global: i) "Regulação fordista" do capitalismo no Norte, desafiadas pela estagflação da década de 1970; ii) programas falhados das burguesias nacionais no Sul, como mostram as crises de dívida na década de 1980; e iii) colapso do bloco soviético no Leste com o fim a URSS no princípio da década de 1990. A conjunção destes três grandes eventos provocou mudanças profundas no equilíbrio de poder entre capital e trabalho à escala global, permitindo a ofensiva neoliberal contra os controles do estado que anteriormente estavam no cerne do seu projecto de transformação de formações sociais.

Ao nível nacional, os dogmas neoliberais eram atacar qualquer forma de controle estatal e deformar a propriedade do capital em favor do sector privado; isto incluiu reduzir despesas públicas e impor restrições salariais como um elemento chave, dando prioridade, acima de tudo, ao evitar da inflação. Ao nível internacional, os objectivos foram perpetuar a supremacia dos US dólar sobre o sistema monetário mundial, manter taxas de câmbio flexíveis e promover o comércio sem restrições através da remoção de barreiras proteccionistas e liberalização de transferências de capital. Tais mudanças moveram o centro de gravidade do poder para a finança global.

A "normalização" desta estratégia de desregulação – isto é, de deixar os oligopólios dominantes terem controle exclusivo da "re-regulação" – e da globalização financeira – cujos efeitos foram ampliados pela ausência de uma entidade política supranacional que controlasse os mercados financeiros – era parte das funções de instituições monetárias locais (bancos centrais "independentes") bem como das organizações internacionais, sob o guarda-chuva do arsenal militar dos EUA. O problema é que, hoje, esta estratégia global está em crise profunda, tanto na sua dimensão económica como militar. Este artigo pretende analisar, no quadro destes dois aspectos, as origens, características, mecanismos e consequências da crise actual na hegemonia do sistema capitalista mundial.

A actual crise sistémica do capital 

Um dos erros mais frequentes na interpretação da crise actual é considerá-la apenas uma "crise financeira", a qual está a contaminar a esfera da "economia real". Ela é, de facto, uma crise do capitalismo, da qual os aspectos mais visíveis e publicitados emergiram dentro da esfera financeira devido ao grau extremo de financiarização do capitalismo contemporâneo. Estamos a tratar de uma crise sistémica que afecta o próprio cerne do sistema capitalista, o que quer dizer, nos Estados Unidos, o centro de poder da alta finança que tem estado a controlar a acumulação ao longo das últimas três décadas. O desastre não se deve à combinação de factores conjunturais: é um fenómeno estrutural.

As séries de repetidas crises monetário-financeiras que atingiram sucessivamente diferentes economias ao longo dos últimos trinta anos, desde o "coup d'État financeiro" cometido em 1979 pela alta finança nos Estados Unidos, fazem parte integrante da mesma crise: México em 1982; crise de dívida dos países em desenvolvimento na década de 1980; os próprios Estados Unidos em Outubro de 1987; a União Europeia em 1992-1993; o México em 1994; o Japão em 1995; a chamada Ásia emergente em 1997.1998; a Rússia e o Brasil em 1998-1999; os Estados Unidos mais uma vez em 2000 com o estouro da "nova economia da bolha"; então a Argentina e a Turquia em 2000-2001, e assim por diante. Esta crise agravou-se recentemente, sobretudo desde 2006-2007, arrancando a partir do centro hegemónico do sistema mundial e tornando-se generalizada e multidimensional (sócio-económica, política, alimentar, energética, climática...).

Desde há alguns anos tem havido um certo número de pensadores a sustentarem que a desvalorização do capital era inelutável que seria brutal e numa grande escala. [1] Basicamente esta crise podia ser interpretada como uma crise de super-acumulação de capital que decorre da própria anarquia da produção e leva a uma pressão para a taxa de lucro cair tendencialmente quando as contra-tendências – incluindo as novas, ligadas a derivativos – estancaram-se. Esta super-acumulação manifesta-se através de um excesso de produção vendável, não porque não haja suficientes pessoas que necessitem ou desejem consumir, mas ao invés disso porque a concentração de riqueza tende a impedir uma cada vez maior proporção da população de poder compras as mercadorias. Ao invés de ser questão de uma super-produção padrão de bens, a extraordinária expansão do sistema de crédito tornou possível para o capital acumular em capital-dinheiro o qual pode assumir formas que são cada vez mais abstractas.

"Capital fictício" parece ser um conceito muito importante para analisar a actual crise do capital (Carcanholo e Nakatani, 1999). Seu princípio básico é a capitalização de receitas as quais são baseadas em valor excedente futuro. Esta espécie de capital é formada principalmente dentro do sistema de crédito, ligando firmas capitalistas ao estado capitalista. Nesta intersecção podem ser encontradas dívidas públicas, capital bancário e bolsas de valores, mas também fundos de pensão, hedge funds especulativos (localizados em paraísos fiscais), ou outras entidades semelhantes. Nos dias de hoje, os veículos de capital fictício mais favorecidos são a titularização (securitization), os quais transformam activos em títulos e as trocas em derivativos.

Capital fictício, simultaneamente irreal e real, é uma noção complexa. Apesar da sua natureza parcialmente parasitária, um tal capital beneficia de uma distribuição de valor excedente – sua liquidez dá ao seu proprietário o poder de convertê-lo, sem qualquer perda de capital, na "liquidez par excellence ": moeda. Assim, ele alimenta uma acumulação de capital fictício adicional, como meio de remunerar-se. A análise do capital fictício leva ao conceito de "reprodução ampliada", bem como ao exorbitante desenvolvimento de formas de capital cada vez mais irreais, como fontes de valorização autonomizada que aparentemente estão mais separadas do valor excedente ou são apropriadas sem trabalho, como "por magia". A especulação não é um "excesso" ou "erro" de governação corporativa: é um remédio contra o mal estrutural do capitalismo, um remédio que actua contra a tendência para queda da taxa de lucro e proporciona saídas para as massas de capital que já não podem mais ser investidas lucrativamente – o estouro das chamadas "bolhas financeiras" é o preço a ser pago.

Em consequência, os montantes correspondentes à criação de capital fictício ultrapassaram, de modo rápido e vasto, os montantes destinados a reproduzir directamente capital produtivo. Exemplo: em 2006, o valor anual das exportações mundiais era igual a três dias de comércio em contratos bilaterais, chamados "off-exchanges", os quais não são portanto registados em balanços, e criados quase sem nenhumas restrições cautelares, com 4.200 mil milhões de dólares comerciados por dia. Foram sobretudo os derivativos de crédito, com suas complexas disposições de credit default swaps (CDS) ou collateralized debt obligations (CDO), que criaram ao mudar a visão tradicional do crédito e lançar em jogo vários graus de capital fictício. Estes 4,2 tera dólares são comerciados por um número muito restrito de oligopólios financeiros, os "primary dealers", mencionados pelo Fed como o "G15": Morgan Stanley, Goldman Sachs e outros 13.

A crise que estalou na secção subprime do mercado habitacional dos EUA foi preparada por décadas de super-acumulação deste capital fictício. Ela deve ser entendida dentro do contexto de um longo período de agravamento da disfunção nos mecanismos de regulação do sistema capitalista mundial, pelo menos desde a super-acumulação de capital-dinheiro na década de 1960, ligada a défices internos e externos dos Estados Unidos – parcialmente causados pela guerra do Vietname – até a tensões insustentáveis sobre o dólar e a uma proliferação de eurodólares, então petrodólares, nos mercados inter-bancários (Herrera e Nakatani, 2008).

Portanto, as contradições que esta crise revelou têm raízes de longo prazo na exaustão dos motores de expansão que operaram após a II Guerra Mundial, os quais levaram àquelas transformações financeiras. Na esfera real, as formas de extracção do valor excedente a organização da produção alcançaram os seus limites, elas tinham de ser substituídas por novos métodos e uma redinamização do progresso tecnológico (como tecnologia da informação, robótica, internet, ...), modificando as bases sociais da produção pela substituição de trabalho por capital. Após uma sobre-acumulação concentrada na esfera financeira, o excesso de oferta acentuou as pressões reduzindo a taxa de lucro que se observava desde a década de 1960. 


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