terça-feira, 6 de outubro de 2015

POLÍTICA - Mais um ato autoritário do Eduardo Cunha.


Patrick Mariano: No dia em que a Constituição Cidadã fez 27 anos, Eduardo Cunha determinou corte de luz de audiência com indígenas e envio de tropas para a Câmara


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Enterrem meu coração na curva do rio
por Patrick Mariano, especial para o Viomundo
Dee Brown nasceu em um campo madeireiro em Alberta, no estado da Louisiana. Seu pai era madeireiro e Dee passou a infância ouvindo histórias do Velho Oeste do seu avô, principalmente sobre a Guerra da Secessão e a febre do ouro da Califórnia.  É autor de um livro fantástico, cujo título peguei emprestado para este texto.
Enterrem meu coração na curva do rio é um relato comovente e trágico acerca da história do extermínio dos índios norte-americanos, contada a partir dos discursos das vítimas em audiências públicas oficiais e acordos firmados com o homem branco. Acordos reiteradamente descumpridos pelo Estado, por sinal.
De certa forma, o livro de Brown foi reescrito ontem na Comissão de Constituição, de Justiça (CCJ) e de Cidadania da Câmara dos Deputados por 200 indígenas, catadoras de flores, vazanteiros, quilombolas, pescadores e camponeses da Articulação dos Povos e Comunidades Tradicionais.
Fui convidado pela Comissão de Direitos Humanos, presidida pelo deputado Paulo Pimenta (PT-RS), para falar em uma audiência pública em que se discutiria a violência de milícias privadas contra esses povos. A sessão começou às 15hs e, quando estava para termina,r por volta das 19hs, foi tomada a decisão de que eles permaneceriam e continuariam a falar. A decisão, comunicada por um cacique, surpreendeu a todos.
Cacique Babau, dos Tupinambás, pegou o microfone da CCJ e lembrou-nos que há exatos 27 anos a Constituição da República havia sido promulgada e que, em sua defesa, eles permaneceriam onde estavam para chamar a atenção do povo brasileiro quanto ao desrespeito aos direitos daqueles povos, violência e descaso dos poderes. Ficariam também para denunciar o desmonte da Constituição Cidadã operada nos últimos meses pelo Congresso Nacional com a aprovação da redução da maioridade penal e tramitação da PEC 215.
Foi feita uma primeira tentativa de acordo pelo deputado Paulo Pimenta. Eles dormiriam na casa, se forneceria comida, atendimento médico e pela manhã seriam recebidos pelo presidente Eduardo Cunha (PMDB-RJ). O acordo foi feito entre a Polícia Legislativa e os representantes das diversas entidades que ali estavam. Eduardo Cunha, de forma truculenta, não só rejeitou como determinou a desocupação da Comissão como condição. Do contrário, enviaria a tropa de choque.
A tensão era evidente. Uma tragédia que se anunciava como certa. Entre as 200 pessoas que ali se encontravam, idosas e crianças. Débora Duprat, procuradora da República, que também havia sido convidada a palestrar na audiência pública decidiu permanecer e ajudar nas negociações.
Ao acordo proposto foi recusado pelo presidente da Câmara e todos decidiram permanecer. A polícia legislativa comunicou que faria a retirada. Diante do impasse, Paulo Pimenta decidiu abrir uma nova audiência pública para continuar ouvindo os relatos dos presentes. Era a única saída para garantir a segurança de todos. Reaberta a sessão, foi proposto um novo acordo ao presidente Eduardo Cunha. A audiência pública entraria pela madrugada e assim que amanhecesse todos desocupariam as instalações e seriam recebidos em comissão por ele.
A proposta novamente foi aceita pela polícia e novo acordo foi firmado com as lideranças. Cacique Babau deu sua palavra e selou o acordo com o chefe da polícia legislativa diante do presidente da CDH, Paulo Pimenta, da procuradora Débora Duprat e de nós, convidados da sessão e assessores parlamentares.
O acordo pouparia a tragédia iminente e todos sairiam ganhando. Cunha novamente se recusou a receber dando mostras de sua inabilidade política e de seu desapreço pela democracia, determinou a retirada e o corte da energia. A polícia então preparou o suporte e começou a estratégia de retirada. Foi o momento mais tenso. Para evitar a tragédia, a audiência seguiu normalmente noite à dentro. A polícia, irresponsavelmente cortou a luz, mesmo tendo um parlamentar presidindo sessão de Comissão. O surrealismo da ação do presidente Cunha acabou reforçando a mística dos povos que ali estavam.
Esqueceu o presidente da Casa que ali todos estavam acostumados a cantar e falar no escuro, tendo somente as estrelas e a lua de iluminação. Diante da prepotência e autoritarismo, eles cantaram e continuaram a fazer denúncias no escuro e sem microfone. Sem dúvida, uma audiência pública histórica.
Mesmo sem luz, água e ventilação, denunciaram que em 2013, segundo a CPT, 8.836 famílias que viviam no Pará foram afetadas pela violência no campo. Destas, 477 tiveram suas casas destruídas, 264 tiveram suas roças arruinadas e 2.904 foram vítimas de alguma ação de pistolagem.
Diante do autoritarismo, desrespeito e descaso com essa gente sobre  qual Darcy Ribeiro tanto falou e tentou defender, continuamos a ouvir no escuro, através de caciques e quebradeira de coco, o que o relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) destacou: o número de assassinatos em conflitos no campo em 2014 foi de 36, dois a mais que no ano anterior, quando foi registrado o assassinato de 34 pessoas. O que chama a atenção em 2014 é que, diferentemente dos anos anteriores, em que se destacava entre os assassinados indígenas e quilombolas, o alvo principal em 2014 foram sem-terra (11); assentados (8); posseiros (7). Mas foi o número de tentativas de assassinato que apresentou o crescimento maior, de 273%. Passaram de 15 em 2013, para 56 em 2014.
No escuro também ouvimos que presidenta Dilma Rousseff teve a pior média de homologação de terras indígenas de todos os presidentes pós 1988 e que isto, somado com a falta de reforma agrária efetiva,é o que estimula o conflito.
Retratos e relatos de uma sociedade que ainda não rompeu com os seus laços escravocratas e mantém os grilhões aos pés de negros, pobres e mulheres. Grilhões que são a base da manutenção da desigualdade e injustiça social por séculos.
A mesma bala disparada por policiais da UPP contra o peito de Herinaldo Vinicius de Santana, negro, de 11 anos, na comunidade Parque Alegria, no Complexo do Caju quando saia para comprar bola foi a que vitimou Chico Mendes, Irmã Dorothy e os 5 trabalhadores rurais sem terra em 2004, no acampamento Terra Prometida, em Felizburgo/MG.
As balas que retiram a vida de índios, quilombolas, sem terra e do povo negro na periferia são disparadas para manter uma ordem social fundamentada em alarmantes dados de injustiça e exclusão desigualdade social.
O capitalismo não foi capaz de resolver o problema da desigualdade. E Piketty[1] demonstra que não resolveu porque não quis, não quer e não quererá. O montante de riqueza produzida no mundo, descontadas as depreciações e dividido de forma igual, daria 760 euros mensais para cada habitante do globo. No entanto, 1 bilhão de pessoas passa fome e a cada 3,5 segundos um ser humano morre por não ter o que comer.
Atílio A. Boron[2], em artigo que vale a leitura, expõe a encruzilhada na qual o governo Dilma está metido. Neste estudo, o professor argentino tira o véu das chagas do nosso sistema econômico ao apontar que 42,04% da riqueza brasileira vai para o setor financeiro em juros e amortizações da dívida pública, 4,11%, em saúde, 3,49%, em educação e, pasmem, 1%, no Bolsa Família.
Enquanto transcorria a audiência, militantes de direitos humanos e advogados foram proibidos de entrar na Comissão e fizeram uma vigília em solidariedade. Foi preciso intervenção da OAB para que uma advogada e um advogado pudessem entrar.  No calor, em condições insalubres, se ouvia:
“Ninguém ouviu um soluçar de dor/No canto do Brasil/Um lamento triste sempre ecoou desde que o índio guerreiro foi pro cativeiro e de lá cantou/Negro entoou um canto de revolta pelos ares no Quilombo dos Palmares onde se refugiou”.
Eduardo Cunha pode cortar o microfone de uma Comissão, acabar com a ventilação e a luz, mas não pode tirar a mística desse povo tão sofrido, mas ao mesmo tempo tão aguerrido.
Por volta da meia noite, outros parlamentares como Chico Alencar, Sibá Machado, Moema Gramacho, Lindbergh Farias, Odorico, Elvino Bohn Gass, conseguiram furar o bloqueio e entrar na Casa. O que se anunciava como tragédia, se tornou uma vitória dos povos tradicionais. A truculência de Eduardo Cunha foi derrotada pela mística do quilombo e pela força dos caciques e quebradeiras de coco.
Lá pelas 3 horas da manhã, com a garantia de que não haveria desocupação, fomos para casa tomar banho e descansar. Menos Paulo Pimenta, Débora Duprat e Moema que decidiram dormir na Comissão para garantir o acordo.
Às sete da manhã, cumprindo com a palavra, a sala da CCJ foi desocupada. Entidades, miltantes e advogados populares fizeram um café para recebê-los e nova mística se realizou na entrada do anexo II da Câmara.
No dia em que se comemorou os 27 anos da Constituição Cidadã assinada por Ulisses Guimarães, Eduardo Cunha tentou enviar a tropa de choque para acabar com uma audiência em que se ouvia pescadores, vazanteiros, catadores de flores, quilombolas, sem terras e povos indígenas. Depois soube que a tragédia só não aconteceu porque a PM/DF se recusou a enviar a tropa.
No entanto, prefiro acreditar que a solidariedade e as danças rituais de purificação da Câmara realizadas pelos povos tradicionais deu algum tipo de efeito. Quem é ateu e viu milagres como eu, já diria Caetano.
Uma pena que as falas de mulheres e homens na audiência pública que rolou pela madrugada não irão para os anais do Congresso. Não importa, pois o maior legado do que ocorreu ontem é a certeza que é possível derrotar a truculência, estupidez e covardia com solidariedade e estratégia.
Aqueles homens e mulheres que ali estavam deram uma lição à Câmara dos Deputados e seu presidente. Mostraram que a única escuridão que ali existe é a da sua inteligência democrática, somada com as denúncias protocoladas no STF ainda não devidamente explicadas.
Enterrem meu coração na curva do rio foi reescrito ontem, mas seu desfecho, felizmente, foi uma vitória contundente contra a escuridão do fascismo, do autoritarismo e da estupidez daqueles que tentam destruir pela força bruta o legado da Constituição da República e, com isso, fazer curvar o povo brasileiro aos seus próprios e escusos interesses.
[1] PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Temas e debates, Lisboa, p. 101.
[2] http://www.ihu.unisinos.br/noticias/538057-dilma-e-a-decisao-de-nomear-como-ministro-da-fazenda-um-chicago-boy

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