sábado, 3 de junho de 2017

POLÍTICA - Demolição do Palácio Monroe, no Rio de Janeiro. Janeiro.


Crônica da demolição - ou da destruição

Filme descortina vasta negociata da época, e vai além da demolição do Palácio Monroe, batizado em homenagem a um presidente dos Estados Unidos!                  


Léa Maria Aarão Reis
                                     
O excelente documentário do carioca Eduardo Ades, Crônica da demolição, em cartaz, é mais uma ação levantando uma ponta do véu que encobre as vergonhas da aliança capital e política no Brasil. Através de um episódio emblemático, do passado – a demolição do Palácio Monroe, o ex-Senado Federal - em 1976, é desvelado um pouco do que se passava e se passa ainda hoje, de realidade, na governança do país. E a arrogância, a empáfia e o cinismo da plutocracia brasileira.

No caso do filme, o primeiro longa-metragem do diretor, o tema trata das manobras fraudulentas das elites (no caso, as do Rio de Janeiro), patrocinadoras dos operadores dos seus crimes: os militares golpistas, os ditadores de ocasião, levas da política e do judiciário, especialistas de diversas extrações, economicistas e alguns jornalistas, os estetas bem postos, todos eles estafetas da turba que desfila nos depoimentos dessa crônica cinematográfica, os quais, na mídia corporativa, se garantem com o silêncio sobre seus embustes e com as campanhas que encobrem as fraudes desses poderosos senhores dos negócios.

É um filme que descortina uma vasta negociata da época, e vai além da demolição do prédio, um símbolo republicano, o Palácio Monroe, de estilo arquitetônico eclético – e assim batizado em homenagem a um presidente dos Estados Unidos! -, na cabeceira da Praça da Cinelândia, no Centro do Rio.

Um ‘’trambolho’’, como diziam os modernistas na época, incluído aí o arquiteto Lúcio Costa, para os quais o estilo eclético não tinha valor. Embora, como diz um arquiteto entrevistado no filme, seja um estilo ‘’mestiço’’. Como praticamente todos nós.
A desapropriação do terreno e a demolição autoritária se deram por resolução de Ernesto Geisel. É apenas uma peça, mas significativa, no quadro geral da destruição sistemática do nosso patrimônio, através dos tempos, dos nossos registros históricos, da nossa memória e da cultura. Manter deste modo, num eterno presente medíocre, submisso e precário, um povo infantilizado, passivo e devidamente domesticado é o objetivo das oligarquias.

“Preservar é um ato afetivo,” diz um arquiteto, nessa crônica da destruição.

Filho de arquitetos, Eduardo Ades ainda era garoto quando passou, um dia, pela Cinelândia e ouviu da sua mãe a história do Monroe, sede do Senado Federal até a transferência do governo para Brasília, e situado na praça hoje adornada por um chafariz – seco, sem água. No subsolo do terreno arrasado, se estende um gigantesco estacionamento para automóveis. Excelente negócio.

A pesquisa iconográfica de Remier Lion é primorosa, os filmetes da época, recuperados, são preciosos. A devassa relembra os argumentos do governo da ditadura civil-militar e asseclas, ao justificarem a derrubada do prédio cujos alicerces prejudicariam, segundo os generais e associados, a construção da primeira linha de metrô na cidade, então projetada – uma mentira deslavada.

O som da música de Phillip Glass e de Villa Lobos enfatiza imagens recorrentes do cemitério de prédios de vidro, com as ‘’cristaleiras’’ à moda americana em que se tornou o Centro da cidade. Assim, o filme contesta os motivos que levaram à demolição do edifício, ao invés do tombá-lo.

Mostra as alianças bastardas do governo com empreiteiros – tão atual! Não muda! -, a campanha triunfal pró-demolição do prédio desferida pelo jornal Globo (sempre ele), e os interesses de especuladores imobiliários incluindo aí o próprio grupo Marinho, que logo viria a ampliar o conglomerado da construção civil na cidade, com a sua empresa São Marcos. O projeto, dizia-se na época, à boca pequena, seria levantar duas torres de edifícios ‘’modernos’’ – com a associação a grupos japoneses - no terreno de valor quase inestimável no mercado imobiliário: o mais belo cartão de visitas do Rio de Janeiro, com o Pão de Açúcar ao fundo em perspectiva privilegiada.

Os depoimentos de urbanistas, arquitetos e políticos, no doc, são entremeados com os tais filmes que mostram um Rio de Janeiro em vias de modernização. E o caso do Monroe é o gancho utilizado pelo cineasta para falar sobre algumas das dezenas de intervenções urbanísticas pelas quais passou o Rio de Janeiro, no começo do século passado e nas décadas de 1960/70, muitas delas irresponsáveis, outras criminosas mesmo.






O filme lança um olhar crítico e severo sobre a especulação imobiliária desenfreada. Para rasgar o traçado da Avenida Presidente Vargas, por exemplo, 1 400 prédios foram postos abaixo. Esquece-se de lembrar: dentre eles, várias igrejas antigas.

“As transformações têm que existir, mas às vezes elas vêm com uma violência que atropela valores, ‘’ diz o diretor sobre o seu documentário que, segundo ele, ‘’é uma discussão sobre a força de transformação das cidades. A gente faz, por exemplo, algumas tomadas aéreas da região portuária: a que servem essas renovações? Em geral, o que está em questão é favorecer a expansão econômica. ’’

O crítico de filmes Carlos Alberto de Mattos acrescenta: ’’Esse documentário é um pequeno curso de crítica de arquitetura e ao mesmo tempo um passeio deslumbrante pela história do Rio moderno.’’ (...) ‘’Mas sua maior virtude está na estruturação da crônica, na interação ora patente, ora sutil das imagens com as ideias que vão sendo desenvolvidas. Um filme em que cada cena ganha status de revelação e emoção histórica. ’’

Emoção que falta à praticamente inexistente crônica da preservação no país. Como diz, no seu depoimento, o arquiteto Alex Nicolaeff: “ É da nossa condição humana construir e destruir. O que temos que denunciar é o arbítrio; o livre arbítrio.’’ E continua: ‘’Especialmente no Rio de Janeiro cujo metro quadrado vale seu peso em ouro porque é uma cidade espremida entre as montanhas e o mar. ‘’Um pasto para os negócios. ’’

Só que o Rio, com seu perfil tão especial, embora dilapidado e a duras penas, resiste aos senhores dos negócios – assim como o país e a sua gente.

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