O Dia que Durou 21 Anos, documentário de Camilo Tavares


Do blog do Mário Marcos

Um documentário aplaudido com entusiasmo. Ninguém resistiu
Fotos/Reprodução
Foi gratificante ver o público que lotava a sala de cinema irromper em aplausos, de entusiasmo e gratidão, tão logo surgiram na tela os créditos finais do excepcional documentário O Dia que Durou 21 Anos, de Camilo Tavares. Todos tinham acabado de assistir a uma preciosa aula de História sobre o golpe militar e a ditadura que castigou o Brasil durante mais de duas décadas, com os fatos na ordem em que ocorreram, na cronologia correta, baseados em documentos secretos só liberados há pouco. Nada daquelas fantasias que você ouve até hoje, como se fossem verdade. Não, no filme os episódios estão encadeados no tempo em que ocorreram.
Deu vontade de aplaudir de pé também uma declaração do então deputado Bocayuva Cunha, em entrevista a uma emissora de TV dos Estados Unidos, um ano antes do golpe que derrubou o governo, com apoio de grandes empresários preocupados em não ter seus negócios perturbados pelas reformas sociais de Jango. Em meio à conversa, o jornalista perguntou se o Brasil não tomava o rumo do comunismo. Bocayuva respondeu:
- Revolução comunista só existe na cabeça e na estupidez de certa elite brasileira.
Mas foi exatamente desta estupidez (ela ainda está por aí) que nasceu o golpe e a ditadura, como mostra de forma didática o filme de Camilo, filho do jornalista Flávio Tavares, um dos tantos brasileiros presos e torturados pela ditadura. O diretor fez uma pesquisa impressionante, descobriu a correspondência secreta trocada entre a embaixada norte-americana e Washington, conseguiu gravações inéditas e impressionantes de conversas entre John Kennedy e, mais tarde, Lyndon Johnson, com seus agentes no Brasil, mostrando claramente a rede de intrigas e mentiras que levou ao golpe e ao retrocesso.
A ação norte-americana foi tão direta que dia 31 de março de 1964, na véspera do golpe, Johnson autorizou o deslocamento de uma força naval poderosa para o litoral de Santos (foto menor, abaixo). A ordem foi clara (e isso está comprovado nos documentos e nos áudios dos arquivos do Departamento de Estado): se houvesse resistência dos brasileiros, que pouco antes tinham votado pelo presidencialismo e dado 80% de preferência a João Goulart, haveria intervenção direta dos soldados dos Estados Unidos. Só não agiram porque o deslocamento do General Mourão de Belo Horizonte ao Rio não encontrou resistência – que só surgiria em 1968, quatro anos depois, com a edição do AI-5 (é, aquela mentira de que o golpe foi uma reação a um movimento organizado também é desmascarada pelos documentos).
- Ele chegou e entregou o controle ao Costa e Silva, que estava dormindo só de cuecas – conta a filha de Mourão. – É foi no dia 1º de abril, o dia dos bobos – brinca.
Fica demonstrado no filme que até Castello Branco foi escolhido pelo próprio governo norte-americano para ser o primeiro chefão da ditadura. Aos poucos, a reação dos militares brasileiros, a tentativa de dar ares de legalidade ao movimento com o funcionamento do Congresso (‘mas com toda a oposição cassada’, como diz com ironia um dos pesquisadores entrevistados no documentário) e o apego dos líderes com estrelas nos ombros às regalias do poder, como lembra Robert Benthey, assistente do embaixador Lincoln Gordon (na foto, com Lyndon Johnson), atordoaram o próprio governo americano. Há cenas e declarações patéticas dos envolvidos na ditadura – que chegam a provocar risos no cinema.
Camilo Tavares, com apoio de Flávio, entrevistou personagens (inclusive conhecidos participantes do golpe), reproduziu documentos secretos, recuperou diálogos e mostrou dois depoimentos valiosos: o de Peter Korn Bluh, coordenador dos Arquivos de Segurança Nacional, dos Estados Unidos, e de James Green, historiador da Brown University. Eles fazem a costura dos diversos episódios, esclarecendo documentos que poderiam ser incompreensíveis e recuperando fatos históricos. É um deles que lembra um fato marcante, quase irônico, de uma correspondência da embaixada no Rio com o departamento de Estado: no momento em que a ditadura tomou rumos imprevistos, com cassações, prisões, torturas e assassinatos, os diplomatas americanos recomendaram ao presidente “um silêncio dourado”. Estava ficando perigoso – até porque neste momento, entre 1968 e 1969, surgiram os grupos de resistência.

O golpe surgiu de uma campanha formada mentiras cuidadosamente elaboradas, divulgadas por uma rede montada com a força de milhões de dólares canalizados pelos norte-americanos para institutos criados com o objetivo de espalhar o medo. Lá estavam, unidos, empresários, grupos poderosos da imprensa e centenas de políticos claramente comprados, como fica demonstrado pelos documentos. Todos com o objetivo de dar ares de verdade à paranoia de que haveria uma revolução comunista. No fundo, como também fica evidente nos arquivos, o que preocupava os Estados Unidos era o medo de ter seus interesses econômicos contrariados.
Ao ver aquela plateia aplaudindo o filme, pensei no seguinte: qualquer pessoa medianamente informada sabe que há pelo menos 60 anos, desde os primeiros tempos da Guerra Fria, os Estados Unidos e suas agências se especializaram em espalhar mentiras e contra-informações, ou para preservar sua própria imagem (como aquela enfermeira ajudada por iraquianos, mas que, segundo a história oficial, lutou e heroicamente matou vários inimigos) ou para comprometer adversários. Tudo para controlar a mente, com auxílio de suas próprias agências, veículos da grande imprensa e, claro, Hollywood. Isso está na origem das ditaduras que atormentaram a América do Sul. Mesmo assim, até estas pessoas aparentemente bem informadas, repetem estes equívocos, consagrando aquela teoria de Goebbels de que ‘uma mentira repetida várias vezes se transforma em verdade’. É como se a mentira fosse uma tatuagem permanente. Sabem que é mentira, mas a repetem como se fosse verdade. Vira reflexo.
É um documentário imperdível e uma revisão valiosa para todos, não importa o que cada um pense sobre a questão. Vá ao cinema, assista a esta aula de História e não se surpreenda se, no fim, você aplaudir com entusiasmo. É quase irresistível.


Jorge Luiz Ceretta


Para quem quiser saber mais, é bom ler o excelente "João Goulart, uma biografia", do professor Jorge Ferreira. Ali estão, com minúcias, os fatos e o caráter dos envolvidos, que culminaram na infeliz tragédia que assolou este país durante todo esse tempo.