domingo, 24 de agosto de 2014

HISTÓRIA - A origem mítico-bíblica da Direita e da Esquerda.

 
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Os relatos bíblicos são Histórias e mitos; cada autor que versa sobre eles empresta-lhes a cor e o calor literário que lhe é próprio. De todas as maneiras, trabalhar com mitos é inerente à aceitabilidade de seu retorno, da sua atemporalidade e de sua onipresença. 
Dentro dessa perspectiva, debruçamo-nos em alguns autores, principalmente aqueles que realizaram sua busca no poço profundo da história da humanidade e desde lá realizaram, com urdidura própria, a tessitura de duas das principais antípodas que marcaram a História da humanidade: a Direita, representada pela estirpe dos Eleitos, e a Esquerda, focada na estirpe que traz em si a marca de Caim, a da revolta e do poder dionisíaco da cor vermelha.
Herman Hesse é um desses autores que refletem sobre a oposição mítico-bíblica entre as duas estirpes antagônicas. Em Demian, ele narra a história de um jovem, Sinclair, criado por pais religiosos e ortodoxos que, de repente, se vê num mundo bem diferente daquele pregado pelos mesmos. Atormentado pela falta de respostas às perguntas que se faz, procura-as na introspecção. Percorrer essa senda perigosa o conduz até Demian, um colega de classe precoce e envolvente, que para Sinclair encarnará a árvore do saber. Com ele provará do crime, da amizade e das incertezas, e ao se rebelar contra as convenções sociais, Sinclair descobrirá não apenas o doce sabor da independência, mas também o poder que possui de praticar o bem ou o mal.
Demian, seu amigo, recruta-o para a sua própria estirpe amaldiçoada pela Divindade: a de Caim, pessoas que possuem a capacidade de exercer e diferenciar o bem do mal. Os piedosos pais do jovem e Sinclair incorporam o protótipo dos dois extremos bíblicos. Os pais simbolizam Abel, o Eleito, o sedentário, cumpridor dos deveres exigidos pelo Altíssimo e o filho, Caim, o Vermelho, errante pela própria característica do pastoreio, descuidado e mesmo desobrigado de obrigações religiosas.
Mas não nos esqueçamos de que foi Deus quem desencadeou no irmão desgraçado o aguilhão da inveja. Ao assassinar Abel, Caim foi amaldiçoado pela divindade e condenado à peregrinação sem quartel, sem Pátria e sem lar. Ao inocular-lhe na testa um sinal, Deus o marcará e aos seus descendentes como a estirpe bastarda, que, sempre que puder, tratará de “prejudicar a raça eleita” por Ele como a única legítima. 
Na estirpe mítica de Caim estará Ismael, o filho renegado de Abraão, fruto que fora do sexo praticado com a escrava egípcia Agar, pois seu Eleito será Isaac, filho da esposa preferida, aquele que será substituído pelo cordeiro na hora da imolação.
Isaac terá dois filhos com Rebeca. Esaú, o primeiro a nascer e que deveria herdar a primogênia e a bênção, e Jacob, o segundo. Mas Jacob, com o engodo, irá se sobrepor ao irmão, o peludo, o Vermelho Esaú e será abençoado em seu lugar, o que significa herdar a herança paterna e a identidade do mesmo com a Divindade.
Depois do grande feito, Jacob, acossado por Esaú, fugirá com muito medo para as terras de Labão. Sob o teto deste receberá duas esposas: Lia, a loira de olhos remelentos, irmã daquela destinada a ser a esposa de eleição, Raquel, a favorita. Lia será a mãe de seis dos filhos de Jacob, os israelitas de olhos também inflamados que, no futuro, deverão se curvar ante o Eleito, José, filho de Raquel.
De todo modo, a estirpe de Caim será para todo o sempre uma autêntica sombra da Estirpe Eleita, às vezes existindo tão somente para configurar legalidade àquela, como um negativo que contenha a inversão dos traços especiais dos Eleitos, tornando possível sua própria existência. Por exemplo, será Labão, o “demônio vermelho” quem permitirá que Jacob se esconda pelo tempo necessário da fúria de seu irmão Esaú e permitirá que o Eleito, Jacob, crie fortuna própria através do engano e do roubo ao sogro.
Essa origem mítico-bíblica do dualismo da Direita e da Esquerda é narrada com precisão por Thomas Mann em “José e seus Irmãos”. Um dualismo que atravessa toda a obra, sendo mesmo o seu “leitmotiv”, refletindo a dualidade em que Mann se encontra num momento de transição ideológica. O mito fala de uma dualidade direcional, de dois caminhos e comportamentos a assumir perante a vida, por onde descendem parentescos e filiação de almas. No fundo são duas árvores que se entrecruzam e que para o observador desatento podem se confundir com apenas um único nascedouro. Mesmo assim, vistas através do “poço insondável que é o passado da humanidade”, a eternidade humana nos conduz à própria criação das árvores do bem e do mal, em que o ser, o nada, a verdade, a mentira, a justiça, a injustiça, formam um só tronco, uma só raiz.
Mas quando vistas de perto, olhadas através de lentes humanas, elas se bifurcam na justa medida do que é duplo: árvore e caminho da direita; árvore e caminho da esquerda! Isso não exclui que se entrelacem, que se permutem e que ocorra a dialética: aquilo que ontem tenha sido esquerda, hoje se transforme em direita e vice-versa.
Em toda a obra de Mann pululam existências que remontam à estirpe sombria e reprovada pela ordem reinante, aquela que carrega a marca imposta pela Divindade. Seus personagens saltam aos olhos, pois a cor que deles emana é vibrante, alegre, vermelha, que também é a expressão do contestador, o símbolo dionisíaco. Pelo menos é esse o modo como a Ordem, a Direita, os Eleitos enxergam a questionadora, pois espoliada, Esquerda. Quando em disputa, é a Direita quem vence e acaba por apossar-se do poder, da bênção e das heranças, empregando a astúcia, o engano, quando não a violência.
A Direita, os Eleitos como Isaac, Jacob e José, é sempre mais inteligente que os Vermelhos, os descendentes de Caim. Entretanto, ao mesmo tempo, ela é mais canalha, sua espiritualidade tem a sagacidade daquele que traz em si a maldade, a maldade de quem já se sabe absolvido pelo seu Deus.
Jacob que em sonhos luta com um anjo (ou um demônio) e como fruto da luta onírica se afigurará coxo pelo resto da vida, dará a si mesmo o título de Israel, o guerreiro de Deus. Raquel, a beleza frágil, mas que gera José, o décimo primeiro varão que será o Eleito pelo pai como primogênito. Ora, o ódio dos irmãos preteridos por Jacob desembocará em José que é vendido aos medianitas do deserto, da estirpe dos vermelhos.
Judá, o quarto filho de Jacob, uma vez José dado como morto, ganhará os direitos de primogenitude e de integrar-se à Estirpe dos Eleitos graças às artimanhas de Tamar. A moça inicialmente se insinua junto ao velho Jacob até que o patriarca lhe conceda o casamento com os dois filhos de Judá. O primeiro não resiste ao acasalamento e morre; o outro, Onan, é punido por Deus por negar-se a depositar seu sêmen no interior do sexo da mulher. Tamar, então, age como prostituta, e por meio desse engodo, logra desposar Judá e garantir-lhe o status de Eleito junto ao Deus de seus ancestrais.
Assim agem os da estirpe dos Eleitos. E assim atuam, por trazerem em si a inteligência das coisas Divinas que advêm de sua condição de eleição, não ocultando sua forte inclinação pela sabedoria mundana. Desta forma, os Eleitos não se privam de nada, nem mesmo de relacionarem-se com os Vermelhos, desde que isso lhes traga benefícios.
Simone de Beauvoir dizia que a Direita “agia” enquanto a Esquerda era a portadora da “inteligência”. A origem mítico-bíblica de ambas prova exatamente o contrário. Os Vermelhos trabalham, são espoliados, enganados. A Direita é inteligente, ambiciona e consegue o poder e vive a “meditar” em como conservá-lo, custe o que custar.
O Eleito, com efeito, tem acesso ao conhecimento da Divindade e consegue dar-lhe um nome, e Deus, graças a essa façanha da inteligência humana obtém o conhecimento de si mesmo! Como não haveria de amá-lo e como não dedicar ao Eleito amor, graças, generosidades a quem conseguiu ofertar-lhe a Inteligência e um Nome? Pois exclusivamente graças ao Eleito que Deus se reconhece! O Deus que foi o de Abraão, de Isaac, de Jacob-Israel e de José resultou num Deus que é Uno. Séculos após, também Moisés, aos pés do Monte Sinai, contribuirá para essa criação coletiva.
“Em certo sentido Abraão era o pai de Deus; dera-lhe o Ser percebendo-o e pensando-o. As poderosas peculiaridades que Abraão lhe atribuíra eram-lhe próprias originalmente e não fora Abraão o seu autor. Mas de certo modo não o teriam sido afinal quando as reconheceu, pregou, e, meditando, tornou-as reais? As poderosas qualidades de Deus eram coisas que existiam fora de Abraão, mas que ao mesmo tempo existiam dentro dele. O poder de sua alma, em certos momentos, pouco se distinguia delas, entrelaçando-se e confundindo-se nelas conscientemente. Foi esse poder a origem do pacto que o Senhor fez com Abraão.” (“José e seus Irmãos”)
Ora, devido ao fato de ser humano, demasiadamente humano, esse Deus é ciumento. O Eleito sabe perfeitamente que é criatura da criatura de seu próprio pensamento. Pensamento que obriga Jacob a manter distância de todos os demais, pois estava a “meditar”. A “meditar” consigo e com o seu Deus interior.
O Deus de Abraão alicerça uma Aliança em que a criatura se tornará criador. “Não devemos nos esquecer de que o rito da circuncisão, tomado dos egípcios como prática exterior, tinha adquirido há muito na família de José um significado místico especial. Era o conúbio ordenado e determinado por Deus entre o homem e a divindade, sendo executado naquela parte da carne que parecia formar o foco do seu ser e sobre o qual era proferido todo voto físico. O pacto de fidelidade com Deus era, pois, de natureza sexual e, nesse sentido, contraído com um criador e senhor ciumento, que insistia em sua posse exclusiva.” (“José e seus Irmãos)
 
Para concluir nosso ensaio, visitemos José Saramago que em seu “Caim” descreve o momento de espanto em que o Vermelho, o amaldiçoado, mal podia crer no que seus olhos insistiam em lhe revelar. Trata-se do povo de Israel quando de sua fuga da escravidão do Egito, sob o comando de Moisés. “Não bastavam Sodoma e Gomorra arrasadas pelo fogo, pois justamente ali, no sopé do monte Sinai, ficara patente a maldade do Senhor”. Sob o comando de Josué (a mão armada de Moisés) os homens da tribo de Levi, os Eleitos, haviam matado homens mulheres e crianças a ponta de espada, “três mil mortos só porque o Senhor havia ficado irritado com a invenção de um suposto rival na figura de um bezerro”.
Pela boca de um Caim redivivo, Saramago conclui a respeito do Deus de Abraão e de Moisés: “Não há dúvida de que esse Senhor um dia irá chamar-se o Deus dos Exércitos dos Eleitos, aliás, não lhe vejo outra utilidade”.  
E assim é, foi e será, no mito e na História!
Blog do Carlos Russo Jr.

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