sábado, 21 de abril de 2018

POLÍTICA - Ela e sua ignorância. Confundiu alhos com bugalhos.


Ana Amélia, da tribuna para a história (por Fernando Nicolazzi)

Senadora Ana Amélia Lemos (PP-RS) | Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Fernando Nicolazzi (*)
A senadora Ana Amélia (PP/RS), candidata derrotada logo no primeiro turno da disputa pelo governo do estado do Rio Grande do Sul em 2014, subiu à tribuna do senado no dia 18 de abril de 2018 para pronunciar um discurso em que realiza uma justaposição grosseira e preconceituosa entre “países do mundo árabe” e “exército islâmico”, em referência clara ao Estado Islâmico, organização jihadista que pretende estabelecer de forma violenta um califado na região do Oriente Médio.
O fato se deu como uma resposta ao vídeo veiculado pela rede de TV Al Jazeera, do Qatar, no qual outra senadora, Gleisi Hoffmann (PT/PR), fez denúncias a respeito dos ataques à democracia que vêm ocorrendo no Brasil atual. Demonstrando profundo desrespeito à parte considerável da comunidade árabe e islâmica do mundo todo, assimilando sem fundamentos aceitáveis o islamismo à práticas terroristas, a senadora gaúcha fez questão de que seu discurso ficasse registrado nos anais do senado “como documentação histórica”.
Ex-funcionária da RBS, filiada da Rede Globo no Rio Grande do Sul e empresa investigada na Operação Zelotes por crimes contra o regime fiscal brasileiro (acusação que, salvo engano, não paira sobre a Al Jazeera), Ana Amélia ocupou boa parte de seu discurso citando o editorial do jornal O Globo, publicado no mesmo dia e no qual a velha ladainha de que “a lei é para todos” é entoada como dogma mágico por uma empresa partícipe e apoiadora de golpes de Estado neste país.
Fosse essa, a ideia de que a lei é realmente “para todos”, uma formulação verdadeira, restaria ao jornal e à própria senadora explicarem à sociedade as razões jurídicas que levaram a tratamentos tão distintos por parte justamente da “lei” casos tão significativos de nossa triste realidade judiciária. Refiro-me aos casos de Rafael Braga, negro e pobre, condenado a 11 anos de prisão por carregar uma garrafa de desinfetante e, posteriormente, condenado por tráfico de drogas por portar 0,6g de maconha, e de Breno Borges, meliante branco, rico e filho de desembargadora, flagrado com 10 Kg de maconha em seu carro importado e que caminhou de braços dados com a mamãe para fora da delegacia.
Mas este seria tema para outro texto. Como historiador, gostaria aqui de me deter em um aspecto particular da fala da senadora: seu anseio em produzir um registro histórico que futuramente poderá servir de fonte para historiadores e historiadoras dedicados à compreensão da atual situação de nossa sociedade. Ou seja, gostaria de pensar como que a senadora Ana Amélia saltará da tribuna do senado para a história brasileira.
Em primeiro lugar, creio que o documento por ela mesma produzido indicará com inegável clareza as formas assumidas pelo preconceito contra culturas não-cristãs no mundo ocidental contemporâneo. Conforme as palavras usadas pelo Instituto de Cultura Árabe, Ana Amélia ficará lembrada como uma referência tragicamente notória de “prática explícita de preconceito racial e islamofobia”, além de seu manifesto “desconhecimento em relação aos países árabes”.
Mas, aproveitando o ensejo, creio que é pertinente também lembrar de outras características que darão contorno à história política da senadora. Em 1986, quando era diretora da sucursal da RBS em Brasília, Ana Amélia foi funcionária comissionada, isto é, contratada sem ter passado por concurso público, no gabinete de seu próprio marido, o então senador Octávio Omar Cardoso, que fora filiado ao Arena, partido de apoio aos ditadores militares que assumiram o poder com o golpe de 1964.
Cabe destacar que, conforme outros registros históricos disponíveis, Ana Amélia confessou ter sido aquele um “erro” (eufemismo usado neste caso para amenizar desvios de caráter moral) e, em sua defesa, alegou que o fato ocorreu antes da Lei Antinepotismo, promulgada apenas em 2010. Não obstante o termo e seu significado serem conhecidos desde pelo menos o século XVIII, como atesta a fonte histórica chamada dicionário Houaiss, em 1986 a hoje senadora achou por bem aceitar um favorzinho familiar do seu marido, ainda que a dimensão ética da situação colocasse impeditivos antes mesmo de qualquer código jurídico formalizado.
Ou seja, na história que será escrita no futuro, além dos preconceitos raciais já salientados por outras fontes, a senadora será sempre recordada como alguém que estabelece uma linha de demarcação muito clara entre ética e lei. Afinal, se a lei é realmente para todos, como ela pretende sustentar, a ética talvez seja preocupação de apenas algumas pessoas, entre as quais caberá aos historiadores de amanhã decidir se ela faz parte ou não. Aos cidadãos e cidadãs de hoje, resta definir se um tal menosprezo pela ética merece ser respaldado pelo voto em outubro próximo.
(*) Professor do Departamento de História da UFRGS

Nenhum comentário: