No lançamento de programas que atenuem os efeitos devastadores da presente crise nos EUA (e no resto do mundo) os governos têm privilegiado os bancos em vez das vítimas. Mas «que incentivo têm os bancos para empreenderem um esforço dispendioso que exige deles a oferta de melhores condições ou o perdão de uma parte da dívida? Além disso, estatísticas recentes [nos EUA] mostram que mais de metade das pessoas cujos empréstimos ameaçados foram modificados com melhores condições na primeira metade de 2008 voltaram a falhar nos seis meses seguintes», por falta de condições de pagamento.
Carlton Meyer - 01.02.09
O recente exclusivo da SRA “Walking Away from the American Dream” (“Mais Longe do Sonho Americano”) explicou três factores que podem fazer entrar em colapso o mercado americano da habitação em 2009: não haver empréstimos de recurso, os empréstimos a juro ajustável baixo (“teaser” loans) e finalmente muitos dos donos, forçados a mudar-se devido às usuais transferências de emprego, não conseguirem vender a sua casa para comprarem outra. O governo americano lançou mais de um milhão de milhões de dólares na actual crise económica, mas pouco esforço foi dirigido contra a principal ameaça. Há mais 1,4 milhões de casas devolutas hoje nos EUA do que em 2004 e mais um milhão podem vir a ser abandonadas em 2009 à medida que os preços caem e os proprietários não conseguem escapar à servidão da dívida.
À medida que os bancos executam mais hipotecas e põem as casas à venda, mais ainda caem os preços, forçando ou acelerando mais execuções. Alguma coisa tem que ser feita para parar esta espiral descendente. Os reguladores federais de cúpula propuseram várias ideias para modificar ou refinanciar os empréstimos de hipotecas. Isto demonstra a sua falta de conhecimento do retalho bancário, conhecimento que é conseguido através do tradicional percurso de carreira em que os licenciados ficam vários meses no serviço de balcão, depois vários anos como funcionários ligados ao crédito local, depois muitos mais anos como gerentes de ramo. Aqueles que têm esta experiência sabem que não é possível em poucos meses renegociar um dossiê de empréstimo de hipoteca desenvolvido ao longo de 30 anos e que qualquer tentativa para o conseguir só redundará em caos.
Reajuste das Hipotecas
As várias propostas para refazer as hipotecas existentes poderiam ter algum efeito, mas os custos e o caos resultante ultrapassam os benefícios. O primeiro problema é que as hipotecas não são detidas por uma única entidade. Foram agrupadas com um conjunto de outras hipotecas sob a forma de títulos financeiros e vendidas a milhares de instituições em todo o mundo. Modificá-las exigiria que o detentor de cada parte concordasse com os novos termos. Como os detentores destes títulos desvalorizados já se sentem roubados pelos bancos que lhos venderam, têm pouca motivação para cooperarem.
O segundo problema é que a maior parte dos bancos está em apuros financeiros e a reduzir efectivos. A renegociação dos termos das hipotecas com milhões de proprietários exige milhares de funcionários e muitos anos. Que incentivo têm os bancos para empreenderem um esforço dispendioso que exige deles a oferta de melhores condições ou o perdão de uma parte da dívida? Além disso, estatísticas recentes mostram que mais de metade das pessoas cujos empréstimos ameaçados foram modificados com melhores condições na primeira metade de 2008 voltaram a falhar nos seis meses seguintes.[1]
Isto leva ao terceiro problema sobre quem pede a ajuda. A resposta imediata é que são os proprietários que falharam pagamentos e enfrentam a execução da hipoteca. A ideia é que os bancos e o país beneficiam se novas condições mais generosas impedirem a hipoteca de entrar em execução. Contudo, a maior parte dos proprietários ficaria furiosa se aqueles que compraram casas que não podiam pagar receberem milhares de dólares de benefícios. Foram esses “caloteiros” que causaram o problema nacional e que atiraram abaixo com o valor das casas de toda a gente. Os bancos assistiriam a um aumento repentino de casos de pré-execução à medida que os proprietários deixassem de fazer pagamentos para que os bancos os contactassem a oferecer melhores condições. Os bancos seriam invadidos por proprietários em fúria a querer alterar imediatamente a hipoteca. Os gabinetes do Congresso seriam inundados de quantidades nunca vistas de cartas raivosas.
Tudo isto parte do princípio que os bancos são donos das hipotecas e querem refazê-las. A maior parte do seu dossiê de hipotecas é sólida e lucrativa. Se um programa para refazer hipotecas tem início, então todos os proprietários quererão aproveitar a oportunidade. Ficarão danados se os banqueiros lhes disserem que tal não é possível porque a hipoteca foi vendida na China ou que não são elegíveis visto que não falharam qualquer pagamento da hipoteca. isso iria enfurecer milhões de proprietários honestos que resistiram à ideia de fugir legalmente ao contrato de hipoteca, contrato que os obriga a pagar um empréstimo agora superior ao valor desvalorizado da sua casa. Haveria milhões a protestar deixando de fazer os pagamentos da hipoteca. Se os bancos se recusassem a renegociar a hipoteca com espírito razoável, “punham-se a andar” enviando as chaves ao banco pelo correio.[2]
Socialismo de Livre Mercado
Actualmente, 2,8% das casas próprias e 10% das casas de aluguer estão desocupadas, num total de 17.890.000 que incluem 4.558.000 casas de férias temporárias. A média histórica de 1995 a 2004 era de apenas 1,7%, por isso mais cerca de 1,4 milhões de casas próprias estão hoje vazias relativamente a 2004.[3] As projecções das execuções indicam que mais um milhão de casas podem ser abandonadas em 2009. Mais casas devolutas para venda atiram com os preços ainda mais para baixo, desanimam novos compradores e provocam ainda mais execuções.
A solução simples para esta crise é o governo federal constituir uma agência para a aquisição de um milhão de casas americanas em 2009. Poderia emitir títulos avalizados pelo governo federal para constituir o capital necessário. O preço médio das casas nos EUA caíu para 183.000 dólares, portanto um milhão de casas custa cerca de 183 mil milhões de dólares. Trata-se de uma soma pequena comparada com os mais de um bilião cuja utilização o governo dos EUA autorizou na actual crise económica. Como a maior parte dos 700 mil milhões reservados para o salvamento dos bancos americanos continua por gastar, podia usar-se uma parte desse dinheiro.
Retirar um milhão de casas vagas para fora do mercado devia travar a espiral descendente dos preços das casas. A vantagem deste plano é que não ajuda ninguém directamente e no entanto indirectamente ajuda todos. Os maiores bancos americanos têm longas listas de casas tomadas que precisam de vender. O governo federal poderia fornecer a estes bancos liquidez instantânea comprando-as na totalidade. Isto proporcionaria aos contribuintes activos reais que podiam ser vendidos futuramente com lucro.
Quando um milhão de tabuletas “Vende-se” desaparecessem dos relvados em todos os EUA, o governo podia alugar essas casas, no caso ideal aos actuais ocupantes que falharam a hipoteca. Isto podia ser feito pela agência federal de habitação em cada cidade americana. Outra opção seria contratar com agências de propriedades locais, cujo negócio se afundou, porque elas tratam igualmente do aluguer de casas, retendo normalmente 10% da renda cobrada.
Este plano “socialista” pode levar a má gestão e a casos de corrupção. Contudo, é melhor do que o actual plano de “mercado livre” em que milhões de casas abandonadas continuam vazias. O governo federal já detém centenas de milhar de casas nas bases militares e no entanto ninguém critica esse empreendimento socialista. Seria difícil para uma agência federal de habitação perder dinheiro a longo prazo. Pode vender títulos próximo da taxa a 10 anos das notas do Tesouro dos EUA (2,65%) para comprar as casas e a renda cobriria facilmente os impostos locais, a manutenção e os gastos gerais. Essa agência devia ter vigência limitada, como a bem sucedida Resolution Trust Corporation (RTC) que dispôs de propriedades durante o último crash da habitação. Algures depois de 2014, a agência seria instruída para vender 100.000 casas por ano a proprietários privados, até à sua dissolução uma década mais tarde.
Comprar um milhão de casas parece ambicioso, contudo há mais de 130 milhões de casas nos EUA, pelo que seria menos de 1%. Parece insignificante, mas absorver este excesso de oferta deveria parar a espiral descendente dos preços da habitação. Se a compra de um milhão de casas não conseguir virar a maré em 2009, outro milhão poderia ser comprado em 2010. Comprar casas com dinheiro é bastante mais eficaz e financeiramente transparente do que dar dinheiro aos bancos por títulos financeiros de duvidoso valor. No final, os banqueiros podem não apoiar esta ideia. Contudo, devem concordar que parar a queda dos preços da habitação reduz rapidamente a carga relativa às execuções. Só o anúncio de tal plano já causará impacto imediato.
Suavizar os Ciclos de Alta e Baixa
Enquanto se dá grande atenção ao estudo dos problemas provocados pelas variações selvagens do preço das casas, pouco se tem escrito sobre como evitar futuros problemas. O mais óbvio é aplicar as leis e regulações existentes. Por exemplo, uma prática bancária segura é a entrada com o mínimo de 5% do preço de venda da casa. No entanto, muitas instituições como o agora extinto Countrywide anunciavam abertamente entrada zero. Os banqueiros utilizavam há anos a sua influência política para eliminarem os esforços de alguns reguladores federais no sentido da proibição de esquemas de empréstimo arriscados. Membros responsáveis do governo Bush ignoraram as recomendações das agências federais para se apertarem as exigências dos empréstimos.[4]
O sistema de empréstimos é obviamente defeituoso, mas, para além da exigência de uma entrada mais alta e de um historial de crédito mais sólido, não apareceram soluções realistas. Não seriam essas medidas que teriam evitado a maior parte dos problemas actuais, porque mesmo quem tivesse um registo de crédito impecável não podia permitir-se vender a casa depois do seu valor ter caído 30% ou mais. Há também o problema dos investidores que “desaparecem” sem consequências sérias. Uma solução parcial seria eliminar a cláusula exclusivamente americana do “não recurso” nos contratos de hipoteca. No entanto, isso significa que uma entrada pouco oportuna de um novo proprietário no mercado podia destruir o seu valor líquido e levá-lo à falência.
O problema geral com o mercado da habitação é o uso do “valor comparável” quando se determina o valor da propriedade. Os funcionários dos empréstimos comparam o valor de vendas recentes de casas semelhantes na mesma zona para determinarem o valor base para o empréstimo. Se o valor actual da casa duplicou em cinco anos, isso não os preocupa porque acham que isso reflecte as “forças do mercado.”
Os banqueiros e os agentes de propriedades dizem aos futuros proprietários que embora o preço das casas possa baixar, a experiência mostra que o seu valor aumenta ao longo do prazo do empréstimo, tipicamente a 15 ou 30 anos. Contudo, muito poucos empréstimos de casas são alguma vez liquidados. A maior parte das casas são logo vendidas apenas alguns anos depois, porque o proprietário se mudou ou porque não consegue pagar as prestações. Muitos proprietários têm que vender por uma contingência de desemprego, mudança de emprego, divórcio ou outro problema pessoal. Se o valor do empréstimo exceder o valor da casa, o resultado é muitas vezes a execução da hipoteca.
Avaliação Intrínseca a Longo Prazo
A solução é mudar do “valor comparável” para o “valor intrínseco a longo prazo.” As revistas financeiras trazem de vez em quando histórias sobre as “casas mais acessíveis” do país, onde comparam os preços das casas com os níveis de rendimento locais. Não é de admirar que as casas nas cidades classificadas como mais acessíveis tenham mantido a maior parte do seu valor durante a actual queda do imobiliário porque nunca subiram muito durante o último “boom” da habitação.
Outros factores, além dos níveis de rendimento, afectam o valor verdadeiro da habitação em cada região, como a inflação, o crescimento populacional, o crescimento económico e a construção de mais habitação. As entidades que concedem empréstimos devem ser levadas a usar modelos de “valor intrínseco a longo prazo” quando avaliam o valor das casas para os empréstimos. O valor comparável pode ser um factor no modelo, mas secundário. Os banqueiros devem basear os empréstimos a longo prazo no valor da casa a longo prazo.
Com tais modelos, tornava-se impossível o dinheiro rápido durante os “booms” de propriedades. Enquanto o valor das casas nalgumas zonas podia aumentar mais depressa do que noutras, os aumentos de preços seriam atenuados pela recusa das entidades de crédito em avaliarem as casas ao nível que os compradores e vendedores tinham acordado. Por exemplo, alguém pode querer comprar por 300.000 dólares uma casa que foi vendida há dois anos por 200.000– um aumento de 50%. Usando o seu modelo do valor intrínseco a longo prazo, as entidades do crédito podem avaliar a casa apenas a 240.000 dólares, ou seja, com um aumento de 20%. Isto forçaria normalmente as partes a chegar a acôrdo por um preço mais baixo.
Se o vendedor ficasse na mesma e o comprador quisesse continuar, precisava de completar a diferença de 60.000 dólares no fecho do contrato, além dos habituais 15.000 de sinal. Assim o banco ficava com uma grande almofada, caso o preço das casas baixasse. Além disso, o comprador não pode mais tarde reclamar que lhe deram mau conselho porque o banco avaliou a casa por muito menos. Finalmente, há muito menos incentivo para alguém “desaparecer” de uma casa que desvaloriza visto que o empréstimo da hipoteca é menor.
Avaliações intrínsecas a longo prazo eliminariam os esquemas de dinheiro rápido nas propriedades, esquemas nos quais os especuladores compram em mercado quente planeando desfazer-se da casa semanas mais tarde revendendo-a por preço mais alto. Os preços ficariam condicionados pelo empréstimo bancário que tem como base o valor a longo prazo e não o modelo do valor comparativo que ajuda a encher bolhas especulativas.
Proteger o Sonho Americano
Ter casa é o sonho da maioria dos americanos. A maior parte não tem conhecimentos económicos para perceber as bolhas especulativas, especialmente quando apoiados em agentes de propriedades interessados na comissão de venda. O governo federal deve tomar medidas para parar a espiral descendente do preço das casas comprando as casas excedentárias no mercado. Depois, deve aplicar reformas bancárias em que a avaliação das casas seja determinada por modelos de valor intrínseco a longo prazo.
Fontes:
“Walking Away from the American Dream,” Carlton Meyer, SRA Commentary, 6 de Janeiro de 2009.
“U.S. Census Bureau News,” Dep. do Comércio dos EUA, 28 Out. 2008.
Notas:
[1] “Statistics show loan modification not a panacea,” Marketwatch, 8 Dez. 2008.
[2] "More in foreclosure choose to walk away,” SF Gate, 16 Março 2008.
[3] “U.S. Census Bureau News,” Dep. do Comércio dos EUA, 28 Out. 2008.
[4] “Bush administration ignored clear warnings,” AP, 1 Dez 2008.
Este texto foi publicado em SANDERS RESEARCH ASSOCIATES
Fonte: O Diário.info.
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