sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

QUANTO CUSTA O MUNDO?

Os Estados jogam ao monopólio da crise.

Robert Kurz

Tudo tem de acabar um dia em colapso – o Império Romano, o socialismo real, o Lehman Brothers e o discurso da hegemonia neoliberal. Só o capitalismo é que não. Ele vai sobreviver até mesmo ao universo. É o que garante, além da teoria de esquerda pós-marxista, em termos práticos, o Estado, que acaba de ressuscitar das ruínas.

Fá-lo, em todo o caso, embora ele próprio ainda recentemente estivesse sem cheta, enquanto os dólares e euros só pareciam estar jorrando da cornucópia do Investment-Banking. Que se tenha tratado de uma bolha de crédito historicamente sem precedentes, não interessou, por isso durante muito tempo tudo correu bem. Mas a crise hipotecária nos EUA, em ebulição moderada desde 2007, foi apenas o catalisador da fusão nuclear há muito esperada do sistema global de crédito, que abre caminho desde as “segundas-feiras negras” do Outono deste ano. De repente, é o Estado que é invocado como gestor da crise e salvador, começando por sua vez a agitar a cornucópia.

Os Estados Unidos só por si montaram pacotes de salvamento na ordem dos 8 biliões de dólares, incluindo 3 biliões de cobertura de risco para perdas de créditos (garantias), 3 biliões sob a forma de injecções de capital (nacionalização parcial dos bancos através da compra de acções) e de quase 2 biliões por empréstimos estatais para o sector financeiro. No âmbito da UE estruturaram-se de forma semelhante os pacotes de salvamento da Alemanha, França e Grã-Bretanha, ascendendo a cerca de 2,2 biliões de dólares.

Até agora, apenas uma fracção destas importâncias foi gasta. Nos orçamentos dos Estados elas não surgirão inicialmente como nova dívida do consumo público, mas sob a forma de títulos de crédito e valores mobiliários portadores de juros. A esperança é que com estas medidas se reconstitua a “confiança” no sector financeiro, que as garantias nunca sejam executadas, que os bancos possam utilizar os empréstimos obtidos do Estado e que a cotação das acções bancárias adquiridas possa voltar a subir, de modo que, possivelmente, no fim se obtenha mesmo um lucro para as finanças públicas.

Esta esperança, no entanto, é bastante ingénua. Inspira-se na experiência das operações estatais de salvamento no colapso do sistema das caixas de poupança nos EUA em fins dos anos 80 e na crise bancária escandinava nos anos 90. Porém, estas acções de apoio só foram tão bem-sucedidas porque ficaram limitadas a um sector e ocorreram no quadro duma tendência ascendente continuada da bolha do crédito da economia global. Mas agora é o rebentamento da bolha que está à vista, até nos mais remotos recantos do mercado mundial. Se inicialmente ainda se acreditava que a crise poderia ficar limitada aos Estados Unidos e a algumas franjas da Europa Ocidental, ela atingiu entretanto também a Rússia, a Europa Oriental e partes da Ásia e da América Latina. A União Europeia já tem não apenas de reabilitar o sistema bancário dos seus Estados centrais, mas tem também de salvar da bancarrota estatal os novos países aderentes – do Báltico à Hungria. E a reacção em cadeia ainda continua.

A metáfora da “criação de confiança” é ela própria uma bolha retórica. Na realidade, já não se trata do estado de espírito no sector financeiro, mas de pesados factos objectivos. Não foi o sistema global de crédito que se desacoplou duma economia real saudável, pelo contrário, foi ele que fomentou uma insustentável conjuntura económica baseada no déficit. As condições reais de valorização do capital mundial, se é que ainda se pode falar de algo assim, já na década de 80 tinham atingido os seus limites. O célebre “jobless growth [crescimento sem emprego]” dos anos 90 baseava-se apenas num financiamento a crédito sem substância, já sem base em salários e lucros reais. Os rendimentos fictícios da bolha do imobiliário nos EUA, Inglaterra ou Espanha e o associado “milagre do consumo” com a queda constante dos rendimentos reais foram apenas a ponta do iceberg. Por isso é que, juntamente com o crash do crédito, a economia mundial, que já não é real, faz uma travagem a fundo.

Enquanto os buracos abertos no sistema financeiro ainda não foram tapados, tornam-se necessários, ao mesmo tempo, programas estatais de conjuntura. Os EUA gostariam de também aqui dar o máximo; Obama anunciou uma injecção na economia de quase 900 mil milhões de dólares. Na União Europeia, pelo contrário, a esperança é a última a morrer; o governo de Merkel acredita poder tratar o assunto com uns míseros 11 mil milhões de euros e o ministro das finanças Steinbrueck fantasia sobre um reendividamento moderado de apenas 8 mil milhões de euros em 2009. A discussão sobre as drásticas reduções de impostos e até mesmo cupões de consumo de 500 euros por cada cidadão adulto mostram que a situação não é essa. Mas se o fim da conjuntura da economia mundial baseada no déficit derrete as receitas fiscais, se o crédito do Estado tem de apoiar a venda de mercadorias em quebra e, simultaneamente, atacar realmente os astronómicos custos do saneamento do sistema financeiro, então o colapso das finanças públicas está programado. A ilusão do Estado é apenas a continuação da ilusão da bolha do crédito.

O monopólio de crise jogado pelos Estados também é levado a sério num discurso “geopolítico” que prevê a deslocalização do poder mundial em direcção à China e à Índia. Mas estes supostos milagres de crescimento não são autónomos, pelo contrário, estão completamente amarrados ao circuito do déficit da economia mundial. Se o colapso das finanças públicas dos EUA desvalorizar o dólar, os fundos públicos dos países emergentes talvez ainda possam pagar uma rodada de cerveja com os seus activos em dólares, aparentemente inesgotáveis. Os postos de trabalho na indústria de exportação de sentido único, que de todo o modo assentam principalmente no investimento de conglomerados transnacionais e suas cadeias de criação de valor fictício, têm pés de barro. O efeito dominó da crise económica mundial em breve vai dominar também a China, a Índia e o Japão. O crash do sistema de crédito que aí já se nota, o final do boom de exportação e as convulsões sociais, incluindo a queda da nova classe média, podem em breve reduzir a nada todos os programas de potência mundial, programas espaciais e programas de armamento.

Por todo o mundo a esquerda política reconciliada com a economia de mercado está de boca aberta. Toda a pragmática realpolitik no melhor dos mundos se revela como mentira vital. A ruptura de época de 2008 não desmente a de 1989, mas constitui a sua continuação. Pois o fim do capitalismo de Estado do Leste, tal como a crise asiática e latino-americana da década de 90 e o crash das Dot-com de 2001 foram os precursores da crise geral do mercado e do sistema mundial.

O capitalismo está a fracassar segundo os seus próprios critérios. O business as usual político já era. Isto vai tornar-se conhecido, o mais tardar, quando a crise irromper no quotidiano dos homens e mulheres pós-modernos da Eu, S. A. (Sociedade Unipessoal).

Fonte:Informação Alternativa.

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