O termo "refundação" prospera na América Latina. Foi a esquerda bolivariana quem primeiro se enamorou da palavra, do chavismo venezuelano ao indigenismo da Bolívia, mas também assume posições no liberal-capitalismo da Guatemala do presidente Otto Pérez Molina, que hoje tenta reinventar, senão a nação, pelo menos o Estado.
Nesse processo, a que o presidente se referiu em sua recente passagem pelo Instituto Elcano de Madri, deve-se notar um movimento positivo: o julgamento do general e ex-presidente golpista Efraín Ríos Montt, acusado de genocídio, crimes contra a humanidade, torturas e abuso de autoridade. Nada menos que um alto militar guatemalteco intimado na Justiça. Com Pinochet não houve tempo de sentá-lo no banco dos réus.
A reportagem é de Miguel Ángel Bastenier, publicada no jornal El País e reproduzida pelo Portal Uol, 28-03-2013.
Ríos Montt foi empossado por um golpe de tenentes e capitães apoiado pela CIA em 23 de março de 1982 e governou como ditador durante 16 meses. Havia se formado na Escola das Américas do Panamá com assessores americanos na doutrina contra insurgente de "tirar a água do peixe", ou seja, negar à sublevação paleomarxista, indígena e camponesa seu apoio no meio rural.
Em 1982 o presidente Carter havia retirado a ajuda militar da Guatemala, o que surtiu o efeito contraindicado de eliminar qualquer tipo de tutela ou cautela que Washington pudesse exercer. Com isso, a milícia --com a assessoria de militares argentinos-- pôde dar rédeas soltas na repressão a suas mais rudes paixões.
Uma comissão da ONU contabilizou 200 mil mortos, a maior parte nas mãos de militares, em 36 anos de uma guerra civil que durou até os anos 1990. Em um documento intitulado "Memória do Silêncio" (1999) detalhava assim os métodos do horror: "Assassinato de crianças indefesas, com frequência atirando-as contra paredes ou jogando-as com vida em poços nos quais mais tarde se amontoavam cadáveres de adultos; amputação de membros; empalamento de vítimas; molhar com gasolina para queimá-las ou evisceração das mesmas em vida diante de outros detidos; e estripamento de mulheres grávidas".
O líder golpista e seu colega, o general José Maurício Rodríguez, estão sendo julgados por 15 massacres --dos 472 cometidos sob a presidência de Ríos Montt-- nos quais morreram 1.771 cidadãos, em sua maioria indígenas e quase a metade crianças de até 12 anos, da etnia ixil, em Quiché norte. E ainda há um segundo processo em curso pela morte de 250 agricultores em Petén, zona de trânsito da droga, controlada por máfias mexicanas como os Zetas e o cartel de Sinaloa.
Ao se restabelecer a democracia --pelo menos eleitoral--, a Guatemala se olha finalmente no espelho. A droga está hoje mais de 80% mais barata que 30 anos atrás e seu valor corresponde à metade do que era nos anos 1990. A Guatemala tinha em 2011 um orçamento de segurança de pouco mais de 300 milhões de euros, enquanto as drogas que atravessam o país são avaliadas em quase 40 bilhões de euros.
Pérez Molina, que assumiu a presidência em janeiro de 2012, sugeriu na última Cúpula das Américas que era preciso discutir "as opções de mercado", código para a legalização da droga. O narcotráfico permeia o país onde se instala: a Guatemala baixou em 2011 do 91º lugar para a 120º posição --de 182 países-- no índice internacional de corrupção, compilado pela Transparência Internacional; a porcentagem de crimes que chega aos tribunais é insignificante; e, como explicava o jurista espanhol Carlos Castresana, que chefiou uma equipe da ONU para combater a impunidade no país, as provas testemunhais são inviáveis porque as testemunhas são intimidadas para que não deponham.
O ex-presidente não é culpado direto pela implantação do narcoterrorismo na Guatemala, mas a selvagem repressão desenvolvida durante seu mandato contribuiu para deslegitimar o Estado, cujo funcionamento burocrático é hoje caótico ou inexistente, como as sentenças emitidas por diferentes tribunais sobre um mesmo caso em uma confusão de competências. E tudo isso constrói uma cultura da impunidade, neste caso do Estado, que, como diz o jornalista José Elías, é o que está sendo julgado. Essa é a Guatemala que o presidente Otto Pérez Molina quer refundar.
IHU
Nesse processo, a que o presidente se referiu em sua recente passagem pelo Instituto Elcano de Madri, deve-se notar um movimento positivo: o julgamento do general e ex-presidente golpista Efraín Ríos Montt, acusado de genocídio, crimes contra a humanidade, torturas e abuso de autoridade. Nada menos que um alto militar guatemalteco intimado na Justiça. Com Pinochet não houve tempo de sentá-lo no banco dos réus.
A reportagem é de Miguel Ángel Bastenier, publicada no jornal El País e reproduzida pelo Portal Uol, 28-03-2013.
Ríos Montt foi empossado por um golpe de tenentes e capitães apoiado pela CIA em 23 de março de 1982 e governou como ditador durante 16 meses. Havia se formado na Escola das Américas do Panamá com assessores americanos na doutrina contra insurgente de "tirar a água do peixe", ou seja, negar à sublevação paleomarxista, indígena e camponesa seu apoio no meio rural.
Em 1982 o presidente Carter havia retirado a ajuda militar da Guatemala, o que surtiu o efeito contraindicado de eliminar qualquer tipo de tutela ou cautela que Washington pudesse exercer. Com isso, a milícia --com a assessoria de militares argentinos-- pôde dar rédeas soltas na repressão a suas mais rudes paixões.
Uma comissão da ONU contabilizou 200 mil mortos, a maior parte nas mãos de militares, em 36 anos de uma guerra civil que durou até os anos 1990. Em um documento intitulado "Memória do Silêncio" (1999) detalhava assim os métodos do horror: "Assassinato de crianças indefesas, com frequência atirando-as contra paredes ou jogando-as com vida em poços nos quais mais tarde se amontoavam cadáveres de adultos; amputação de membros; empalamento de vítimas; molhar com gasolina para queimá-las ou evisceração das mesmas em vida diante de outros detidos; e estripamento de mulheres grávidas".
O líder golpista e seu colega, o general José Maurício Rodríguez, estão sendo julgados por 15 massacres --dos 472 cometidos sob a presidência de Ríos Montt-- nos quais morreram 1.771 cidadãos, em sua maioria indígenas e quase a metade crianças de até 12 anos, da etnia ixil, em Quiché norte. E ainda há um segundo processo em curso pela morte de 250 agricultores em Petén, zona de trânsito da droga, controlada por máfias mexicanas como os Zetas e o cartel de Sinaloa.
Ao se restabelecer a democracia --pelo menos eleitoral--, a Guatemala se olha finalmente no espelho. A droga está hoje mais de 80% mais barata que 30 anos atrás e seu valor corresponde à metade do que era nos anos 1990. A Guatemala tinha em 2011 um orçamento de segurança de pouco mais de 300 milhões de euros, enquanto as drogas que atravessam o país são avaliadas em quase 40 bilhões de euros.
Pérez Molina, que assumiu a presidência em janeiro de 2012, sugeriu na última Cúpula das Américas que era preciso discutir "as opções de mercado", código para a legalização da droga. O narcotráfico permeia o país onde se instala: a Guatemala baixou em 2011 do 91º lugar para a 120º posição --de 182 países-- no índice internacional de corrupção, compilado pela Transparência Internacional; a porcentagem de crimes que chega aos tribunais é insignificante; e, como explicava o jurista espanhol Carlos Castresana, que chefiou uma equipe da ONU para combater a impunidade no país, as provas testemunhais são inviáveis porque as testemunhas são intimidadas para que não deponham.
O ex-presidente não é culpado direto pela implantação do narcoterrorismo na Guatemala, mas a selvagem repressão desenvolvida durante seu mandato contribuiu para deslegitimar o Estado, cujo funcionamento burocrático é hoje caótico ou inexistente, como as sentenças emitidas por diferentes tribunais sobre um mesmo caso em uma confusão de competências. E tudo isso constrói uma cultura da impunidade, neste caso do Estado, que, como diz o jornalista José Elías, é o que está sendo julgado. Essa é a Guatemala que o presidente Otto Pérez Molina quer refundar.
IHU
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