terça-feira, 2 de abril de 2013

POLÍTICA - "Jango" e o caminho para 1964.



"'Jango', nunca é demais frisar, foi corajosamente produzido ainda nos estertores do regime militar. João Goulart (1919 - 1976), o único presidente brasileiro a morrer no exílio, era assim ainda "persona non grata" para o poder. Toda uma geração - a minha - já havia nascido e sido formada sob um discurso oficial que o estigmatizava como o político fraco e esquerdista que escancarara o país para a eclosão de um regime autoritário sindicalista, apenas inviabilizado pelo movimento militar", Amir Labaki, diretor-fundador do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários, em artigo publicado no jornal Valor, 28-03-2013.
Eis o artigo.
Daqui a um ano completa-se o cinquentenário do golpe militar de 31 de março de 1964, que derrubou o presidente João Goulart, estabelecendo a mais longa ditadura de nosso período republicano. Por razões de agenda e dever de ofício, a 18ª edição do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários antecipa o debate em sua retrospectiva brasileira deste ano.
O ciclo "'Jango' e o Caminho para 1964" concentra-se em torno de dois eixos. O primeiro elege "Jango" (1984), de Silvio Tendler, como o filme que melhor ilumina o processo de desestabilização do regime democrático que culminou com o levante militar. Além do convite para revisão de "Jango" em tela grande, o festival realiza duas mesas históricas, no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo no próximo dia 3 de abril e no CCBB do Rio no dia 4, em que promove o reencontro de Tendler com alguns de seus principais parceiros na realização do filme.
"Jango", nunca é demais frisar, foi corajosamente produzido ainda nos estertores do regime militar. João Goulart (1919 - 1976), o único presidente brasileiro a morrer no exílio, era assim ainda "persona non grata" para o poder. Toda uma geração - a minha - já havia nascido e sido formada sob um discurso oficial que o estigmatizava como o político fraco e esquerdista que escancarara o país para a eclosão de um regime autoritário sindicalista, apenas inviabilizado pelo movimento militar.
Um milhão de espectadores, número inimaginável hoje para qualquer documentário nacional nas salas, correu aos cinemas para assistir ao primeiro retrato fílmico do presidente deposto. Descobriu um filme emocionante e rigoroso, estruturado a partir de valiosos depoimentos de protagonistas do processo e de sons e imagens de arquivo de tirar o fôlego em seu ineditismo.
Com "Jango", Silvio Tendler começava a reconciliar o Brasil com Jango. Para compreender como o cineasta se formou para cumprir esse papel pioneiro em nossa produção audiovisual, é essencial revisitar seu documentário político anterior, "Os Anos JK - Uma Trajetória Política" (1980), também incluído no ciclo. Igualmente corajoso e desbravador, ao reconstituir a vida e a carreira do presidente Juscelino Kubitschek (1902 - 1976), "Os Anos JK" já apresentava uma leitura da experiência democrática brasileira entre 1945 e 1964 em tudo distinta da então propagandeada pelo regime militar.
O segundo eixo da mostra "'Jango' e o Caminho para 1964" reúne numa única sessão sete curtas-metragens realizados a partir de 1962 por encomenda do Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais). Como o definiu seu principal estudioso, René Armand Dreifuss ("1964: A Conquista do Estado"), o Ipes operou como "centro estratégico" da "campanha politica, ideológica e militar travada pela elite orgânica" contra o governo Goulart.
Produzidos em sua maior parte sob o selo de qualidade da Jean Manzon Filmes, curtas com títulos como "O Brasil Precisa de Você" e "Que É a Democracia?" mal disfarçavam em seu formato pseudodidático seu propósito propagandístico de caracterizar o governo Jango como antidemocrático, incompetente e socializante. Precisam ser hoje revisitados, a um só tempo, como instrumentos modelares da campanha conspiratória e como típicos artefatos audiovisuais da Guerra Fria.
Para além de nossa retrospectiva, nos próximos meses dois novos documentários brasileiros contribuirão nas salas de cinema para o debate em torno dos 50 anos do golpe de 1964 e do destino trágico de João Goulart. Chega amanhã às telas de sete capitais o primeiro deles, "O Dia que Durou 21 Anos", de Camilo Tavares.
Desenvolvido a quatro mãos com seu pai, o jornalista Flávio Tavares, ex-preso político e exilado que se tornou um dos principais memorialistas da era Jango e dos anos de chumbo, o documentário radiografa o envolvimento do governo dos EUA na conspiração que levou ao golpe militar.
Por sua vez, em "Dossiê Jango", premiado pelo público do último Festival de Tiradentes e ainda sem data de estreia, Paulo Henrique Fontenelle investiga a hipótese de a morte por ataque cardíaco de João Goulart em dezembro de 1976 ter sido na verdade um assassinato por envenenamento conduzido dentro da famigerada Operação Condor.
Nada mais salutar do que assistir a dois cineastas nascidos após 1964 se lançarem ao exame de episódios tão cruciais e opacos da história contemporânea nacional. São os "filhos de Tendler" pedindo passagem.

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