19.12.2014
[ Brasil ]
Ativismo em fluxo e renovação política na Casa Fora do Eixo
Marcela Belchior
Adital
A casa
existe desde 2011 e já fazia parte da convivência com as militâncias de várias
partes do Brasil, mas foi durante as Jornadas de Junho de 2013, conjunto de
manifestações espalhadas por cidades de todo o Brasil, que o projeto ficou mais
conhecido pela sociedade brasileira como um todo. Vivendo há três anos na Casa Fora do Eixo, o midiativista Rafael Vilela conversou com
exclusividade com a Adital discutindo como é o processo de formação dos jovens que passam pelo projeto e que
atuam na linha de frente de muitas das ações dos movimentos sociais do Brasil e
outras partes da América Latina.
O projeto
faz parte do circuito Fora do Eixo, rede de coletivos culturais surgida no fim
de 2005 e que, em 2012, chegou a contabilizar mais de 200 espaços culturais no
Brasil, 2 mil agentes culturais, 2,8 mil parceiros e 20 mil pessoas que
participavam, indiretamente, de suas ações. Hoje, a rede está presente nos 27
estados brasileiros e em mais 15 países latino-americanos.
A
primeira Casa Fora do Eixo surgiu em São Paulo. Ali, um grupo de moradores, em
permanente fluxo e renovação, trabalha em outros projetos da rede, formam
comunidades para vivenciarem diversos aspectos da organização social de maneira
alternativa a alguns padrões estabelecidos. Para isso, se inserem no debate
público através de produção de cultura, da proposição de novas políticas
públicas, em ações de acesso à educação e de democratização da comunicação.
Segundo
Vilela, mais do que ideologia política, os membros da Casa se apoiam em uma
nova pragmática. Colaboração e solidariedade fazem parte da lógica de
construção comum de políticas que partem e se destinam ao coletivo. A
orientação é a repercussão, sempre, para aumentar cada vez mais a potência das
iniciativas populares.
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| Rafael Vilela vive há três anos na Casa Fora do Eixo e integra o Mídia Ninja. Foto: Reprodução. |
ADITAL - Há quanto tempo você está na Casa Fora do Eixo? Como foi feito o primeiro contato e o processo de integração?
Rafael Vilela - Eu moro na Casa Fora do Eixo São
Paulo desde o final de 2011 e meu primeiro contato foi a partir do coletivo Cardume,
que foi um coletivo que a gente estabeleceu em Florianópolis [capital do Estado
de Santa Catarina], no sul do país, e que era um coletivo de cultura
independente ligado à universidade, que fazia show, organizava processo de
produção cultural na cidade relacionada a várias linguagens e que, a partir
dali, a gente começou a conectar com o Fora do Eixo, que é uma rede que já
existe desde 2003 e já está pelo Brasil todo, organizando e pensando essa
proposta de um circuito alternativo de cultura.
ADITAL - Por que você resolveu
ter essa experiência?
RV - Todo mundo que faz parte do Fora
do Eixo é um processo muito orgânico. Era uma escolha — estar dentro ou não
estar — acontecendo pelo momento que a gente está vivendo, de buscar uma
estrutura que consiga delimitar para a gente um tempo disponível para o
ativismo, para as questões que a gente acredita, enfim. Eu sempre tive uma
busca muito grande no campo da comunicação independente, da cultura, da
militância e acho que o Fora do Eixo é uma estrutura, hoje, talvez das mais
interessantes no Brasil e no mundo para se viver esse tipo de processo.
ADITAL - Como uma pessoa
interessada pode ingressar na Casa?
RV – A gente tem um processo nas
casas Fora do Eixo, na rede como um todo, que é a Universidade Livre e, a
partir delas, a gente chama imersões, a gente abre editais de vivências, onde a
pessoa pode se inscrever. Por exemplo, para fazer design gráfico dentro das
casas, fica um mês aqui, morando aqui e trabalhando em uma área específica. As
pessoas podem ingressar a partir da criação de coletivos nos territórios,
pequenas cidades e, a partir disso, vai se envolvendo na rede, faz uma imersão,
acaba conhecendo mais. Tem muitas formas. Assim como também pode ser uma pessoa
que trabalha com outra coisa, tem um contato, mas participa, de forma direta ou
indireta, e se sente parte e faz parte da rede. Não existe um formulário ou
forma burocrática de fazer parte, é sempre um processo muito orgânico também.
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| Moradores da Casa Fora do Eixo desenvolvem projetos e promovem atividades dentro e fora do local. Foto: Divulgação. |
ADITAL - Podemos traçar um perfil das pessoas que vivem ali?
RV - O perfil das pessoas que moram
aqui? Acho que, em todas as casas Fora do Eixo, existe um campo muito grande de
formação das pessoas. Com relação à comunicação, grande parte das pessoas que
mora aqui teve, de alguma maneira, alguma formação no campo da comunicação e da
cultura: foram de bandas, grupos musicais ou estavam ligados a alguma
universidade em curso ou formação em publicidade, design, fotografia,
jornalismo ou outras áreas como estas. Todos somos muito novos. Eu tenho 25
anos e a maior parte das pessoas que vive hoje na casa tem 25 ou menos. Então,
é uma galera muito nova, que se envolve. Tem gente que chega com 16, 17 anos;
depende muito do perfil de cada um.
ADITAL - Quantas pessoas há na Casa
hoje? Quantas já passaram pela Casa Fora do Eixo?
RV – Hoje, a gente mora em 30 pessoas
aqui na Casa Fora do Eixo São Paulo, e já passaram... Acho difícil dizer. Não
sei se a gente tem uma contabilidade de quantas pessoas já passaram por aqui,
mas já tivemos imersões que já ficaram mais de 100 pessoas aqui durante o dia,
fazendo atividades; isso acontece muito. São quase quatro anos de Casa e muita
gente já passou por aqui. A gente sempre morou em 30; então, é um processo de
muita diversidade, muitas leituras de mundo diferentes reunidas.
ADITAL - Qual a rotina do local?
Que tipos de atividades são agregados à convivência cotidiana?
RV – A gente tem um processo de
gestão específica de cada uma das áreas de atuação dentro da casa. Então, tem
uma galera que faz a gestão do processo de comunicação da Mídia Ninja; tem
outra que fica na gestão da residência cultural, por exemplo, que é a
organização da casa, hospedagem, dos traslados; tem uma galera que está mais no
campo da música, dos festivais. A rotina depende um pouco disso. É difícil ter
uma rotina fixa em que a gente faça as mesmas coisas todos os dias, isso muda
muito; mesmo porque as pessoas viajam muito para lugares diferentes. Enfim, as
vivências também são muito fortes, saídas para outros lugares, visitas a
circuitos culturais, shows, festivais. Isso acontece muito.
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| A Casa é um local de militância, convivência e promoção de culturas alternativas. Foto: Divulgação. |
ADITAL - Que tipo de diálogo a
Casa estabelece com o entorno (bairro/cidade)?
RV - A casa estabelece um diálogo
muito forte com o bairro, que é aqui no Cambuci, por exemplo, mas com a cidade
como um todo, como o "Existe amor em SP”,
que é um exemplo legal disso, mas tem também o "Domingo na casa”, que é um evento que rola todos os domingos em que
a comunidade vem muito forte e é aberto ao público, gratuito, com várias bandas
e programação cultural bem diversificada e, ao mesmo tempo, a gente se envolve.
Acho que
essa lógica das casas Fora do Eixo tem uma inspiração um pouco hippie, no sentido dessa lógica de
construir uma alternativa, mas que busca e faz incidências dentro da sociedade
o tempo todo. A relação com o Estado, empresas privadas e com a sociedade como
um todo está num campo de disputa permanente; a gente não está também numa
lógica de se isolar.
O "Existe amor em SP”, como falei, foi um
festival a gente fez a algumas semanas antes da eleição municipal em São Paulo,
em 2012, que a gente botou quase 40 mil pessoas na praça, que foi muito
importante pra mudar o curso da eleição naquele momento. Esse tipo de exemplo é
muito relevante nessa questão.
ADITAL - Como
os moradores se organizam para a gestão da Casa?
RV - Os moradores se organizam de
acordo com as gestões específicas que falei. A gente tem um cronograma de
atividades de limpeza. Todo mundo se reveza nisso: de alimentação, de traslado,
tem a gestão específica da comunicação, dos festivais, do banco que faz as
manejo dos recursos, da economia solidária, da universidade que pensa o
processo de formação. Cada um tem um gestor e objetivos específicos onde a gente
se organiza dentro de um campo de gestão bem amplo.
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| Ciclo de oficinas como parte das atividades de formação na Casa. Foto: Divulgação. |
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| Moradores se dividem na gestão da casa, como cozinha, limpeza e promoção de eventos. Foto: Divulgação. |
ADITAL - Quais as fontes de
financiamento da Casa Fora do Eixo?
RV - As fontes de financiamento da
Casa Fora do Eixo, hoje, e da rede Fora do Eixo como um todo (não dá para falar
isoladamente da Casa), está ligado a um processo de economia solidária, em que
a gente consegue, a partir da troca de serviços, realizar coisas muito grandes
com poucos recursos financeiros e entendendo isso também como uma lógica de
abundância de recursos humanos. Muita gente disposta e a fim e com dedicação
exclusiva para fazer esse tipo de coisa que a gente faz, seja no campo da
comunicação, da cultura, do ativismo, da incidência política.
Hoje, a
Mídia Ninja, por exemplo, recebe financiamentos de organizações internacionais
como a Olk, a Ford Foundathion, o Instituto Ivus, que têm o interesse de
fomentar o processo de formação no campo da comunicação e de produção de
cultura independente, especificamente relacionados às questões socioambientais.
Existe um interesse muito grande fora do Brasil com relação a esses temas e uma
clareza também dessas organizações internacionais do bloqueio que a imprensa
corporativa faz para que esses temas não tenham a relevância que devem ter.
ADITAL - Podemos apontar alguns
princípios político-ideológicos que norteiam esse modelo de convivência e
produção coletiva?
RV - Os princípios, mais que
políticos e ideológicos, eles são muito pragmáticos: é a colaboração, a
solidariedade, é a lógica de construção do comum de políticas partindo para o
comum cada vez mais e de entender que o que a gente faz no Fora do Eixo não está
restrito à nossa experiência somente; tudo o que a gente faz, tentamos
sistematizar e tentar transferir essas tecnologias para o maior número de
coletivos e redes possíveis, entendendo que temos que operar isso enquanto uma
política pública, praticamente, e a gente cria isso muito mais, para que seja
espalhado para outras pessoas e que possa repercutir e ter uma potência em cada
um dos locais dos territórios em que atue; do que necessariamente ser um
negócio que a gente segure e guarde só para a gente esse acúmulo.
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| Trocar serviços, como na construção das próprias camas, é uma forma de economia solidária da Casa. Foto: Divulgação. |
ADITAL - Qual a relação da Casa
com instituições públicas? Existe algum tipo de apoio ou, mesmo, de contraponto
aos subsídios do Estado?
RV - Instituições públicas, com
relação a apoio financeiro, não. Mas existe uma relação de pressão com relação
ao Estado. Por exemplo, a gente cria campos de pressão para poder pautar temas
e pautas que a gente acredita que são importantes a partir das ruas, a partir
da incidência direta, a partir do diálogo com o Estado. Acreditamos que seja
fundamental para, a partir disso, conquistar vitórias públicas, sejam as greves
dos garis, os marcos [legais] da Internet... Acho que têm vários exemplos
interessantes do que foi conquistado nos últimos anos a partir dessas
estruturas. Não existe apoio ou subsídio do Estado para o que a gente faz.
ADITAL - Que relações podemos
destacar entre a Casa Fora do Eixo e a mídia comercial? É claramente uma
alternativa aos moldes hegemônicos?
RV - Eu acho que é uma alternativa no
sentido de que é uma alternativa real e concreta, que não é feita para um
público específico, mas para que seja o mais massificado possível, no sentido
de entender que a gente está migrando do modelo de "mídia de massa” para "massa
de mídia”. Quanto mais pessoas se sentirem empoderadas do processo da comunicação,
enquanto cidadãos de multimídia, produzindo e distribuindo seus conteúdos, mais
essa grande rede de que a gente tem falado tem uma capacidade para, de fato,
disputar as narrativas e os imaginários pelo Brasil com relação a múltiplos
temas.
Então, em
relação à mídia comercial nossa postura é de disputa. Quando fazemos uma pauta
sobre um tema que é muito importante, que bomba nas redes sociais e que pauta
os veículos, a gente entende como um processo de "raqueamento” puro, da gente
conseguir, a partir da nossa perspectiva, do que a gente acredita, fazer com
que o grandes veículos sejam obrigados a falar daquilo, porque eles, do jeito
que estaria, normalmente, não teriam nenhuma necessidade de fazer isso.
ADITAL - Ao sair da Casa, quais
caminhos geralmente são escolhidos pelos ex-moradores? Pode nos dar exemplos de
atuação?
RV - Acho que tem de tudo. Em geral,
as pessoas que passam pelo processo de formação numa casa como essa saem muito
bem relacionadas, tanto com os movimentos sociais quanto com o próprio Estado;
no campo da comunicação, com empresas de comunicação independente. Abre-se uma
gama infinita de possibilidades para quem passou por um processo como esse, o
viveu intensamente, e as pessoas escolhem, em geral, estarem próximas, com
relação ao processo do Fora do Eixo, na Mídia Ninja, trabalhando em parceria ou
com pessoas que já tenham uma relação muito próxima. Acho que essa é a melhor
parte, na verdade: é bem sacar um processo de formação de quadros que estão se
capacitando tanto para o Poder Público quanto para iniciativas da sociedade
civil de transformação. Acho que isso é fundamental.
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| Atuação política da militância se enquadra no contexto do empoderamento da produção midiática pelos cidadãos. Foto: Divulgação. |
ADITAL - Como ex-moradores se
relacionam com o mercado de trabalho? Há espaço de atuação profissional para
quem adere às propostas desenvolvidas dentro da Casa Fora do Eixo?
RV – Sim. Acho que, como já falei na
última [resposta], a qualificação profissional de quem passa por um processo de
formação do Fora do Eixo é muito mais interessante do que de quem saiu da
universidade, por exemplo. Não que seja esse o objetivo, mas é o que acaba
acontecendo. As pessoas que trabalham numa casa coletiva, por exemplo, sem ter
um salário, sem ter hora de trabalho, sem, necessariamente, ter que trabalhar
porque está ganhando dinheiro, mas porque acredita e gosta do que faz; isso tem
um valor muito grande para o mercado, porque o mercado tem uma dificuldade
muito grande de pagar as pessoas e deixá-las serem felizes.
Então,
acho que aqui a gente tem uma fórmula onde a felicidade é o ponto central. Quando
a gente se dedica e se entrega a um processo como esse é porque a gente
acredita e porque a gente entende a potência que ele tem — e o mercado está
carente de potência e desejo; então, ele olha com bons olhos. Eu não acho que o
objetivo de ninguém aqui é sair para o mercado, mas essa é uma relação que
acontece e a maior parte das pessoas saem e acabam indo para entidades
filantrópicas, movimentos sociais ou para a disputas dentro dos partidos. Isso
pode acontecer em todos os âmbitos.
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| Ao passar pela Casa, moradores seguem atuando em movimentos sociais, partidos políticos e mídia contra-hegemônica, por exemplo. Foto: Divulgação. |
SERVIÇO
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