sábado, 1 de agosto de 2015

SAÚDE - O SUS e o piloto de avião.


O SUS e o piloto de avião

Por Filipe Rafaeli

"Vocês sabem que o hobby dos brasileiros é falar mal do SUS, né?" Era assim, fazendo esta pergunta, que eu começava um papo com cada um que viesse falar comigo no leito do hospital. 48 horas antes, eu recebia autorização da torre de controle da base aérea militar de Pirassununga para pouso na pista 02 central. Eu estava sozinho, em um Cessna 152 Aerobat, e estava chegando para participar do campeonato nacional de acrobacias aéreas.
No terceiro e penúltimo dia em que eu estava internado, me recuperando da cirurgia da fratura da cabeça do meu fêmur direito, uma senhora com um rosto amigável e um sorriso incontido, postou-se ao lado da minha cama e se apresentou como voluntária da Santa Casa de Pirassununga. Com jeito, pediu para eu responder a uma pesquisa de satisfação sobre como foi meu atendimento. Isso me espantou um pouco. Alguém em algum momento imaginava o SUS fazendo pesquisa de satisfação?.

Na cama à minha esquerda, um trabalhador. É repositor de prateleira de supermercado. Ele contava como, com sua motocicleta, bateu de frente em outra moto e veio ter no hospital. Na cama em minha frente, um senhor de meia idade, marceneiro, contava como quebrou o braço ao cair de uma escada. Em uma outra cama, à esquerda, um pintor contava como foi seu acidente de moto – mais um! – Depois que ele teve alta, sua cama foi ocupada por um servente de pedreiro com problemas pulmonares.

Ao saberem que sou piloto de acrobacias aéreas, eles se juntaram para ouvir a minha história. Tive a sensação de que estavam ávidos por ouvir uma história de filme hollywoodiano. Daquelas cheias de explosões, corridas malucas e mocinhos de óculos escuros. Fiz um pequeno resumo: "Eu estava dormindo, lá pelas quatro da madrugada, fui levantar para fazer um xixi, tropecei em alguma coisa, caí e quebrei minha perna". Imaginem a cara de decepção de meus companheiros de infortúnio.

O campeonato havia começado mas no primeiro dia não tivemos voos da minha categoria. À noite, fizemos uma confraternização. Lá pelas tantas fomos todos para os hotéis de trânsito da Base aérea. Me disponibilizaram um quarto de tropa, com dezenas de beliches. Calmamente, e contente, tomei meu banho, apaguei a luz e fui dormir. Pelo meio da noite levantei para fazer xixi, só que a escuridão total do quarto fez com que eu desse um tropeção. Estava quase chegando ao interruptor. A queda deve ter sido cinematográfica. Caí por cima de alguma coisa, torcendo a perna direita. Foi dolorido, muito dolorido.

Horas depois passei pelo Hospital da Base Aérea, onde fui medicado com analgésicos. De lá removido de ambulância para a Santa Casa de Misericórdia de Pirassununga. Durante o trajeto, a enfermeira da Academia da Força Aérea foi elogiando os médicos e o atendimento daquele hospital da cidade. Minha desconfiança aumentava à medida que ela elogiava a Santa Casa. "Pobre mulher, acredita que vai me confortar falando isso", pensei.

Ainda na maca, no pronto-atendimento, me falaram que o ortopedista já sabia do meu caso e queria me ver. Só não tinha vindo naquele momento porque estava realizando uma cirurgia. Para mim isso foi positivo. "Deve ser um sujeito experiente", acreditei. Enquanto isso, fiz os exames de praxe para um sujeito nesta situação.

Passados alguns minutos, eis que surge o médico e eu, todo ansioso, começo a questioná-lo, se não seria melhor que eu fosse removido para o hospital do meu plano de saúde, que ficava a 200 quilômetros dali. Até então, tudo que eu vira me dera uma boa impressão. Gostei do profissionalismo das enfermeiras e da postura do médico. Ele olhou e demorou um pouco para responder. Mais tarde, disse que se fosse operar lá seria no dia seguinte e com outro médico. Eu pergunto: por que não agora? Passado o "rebuliço" dessa pergunta, o médico ativo vai conferir se pode ser naquele momento. E "voilá", minutos depois minha maca já estava a caminho da sala de cirurgia.

A moça que empurra minha maca para a sala de cirurgia me pergunta se eu não tinha nenhum familiar para me acompanhar. De forma meio jocosa, respondo que não deu tempo, que a operação havia sido decidida alguns segundos antes dela colocar as mãos na maca.

Descubro depois que operar rápido uma fratura do colo do fêmur é essencial para uma boa recuperação. Mais um ponto para o ser humano, antes do médico, que ali trabalha.

Se você não for um fã de aviação, porque a base da Esquadrilha da Fumaça, ou Esquadrilha de Demonstração Aérea, é lá, ou não frequenta botequins de gosto duvidoso, porque a caninha 51 também é de lá, você nunca ouviu falar em Pirassununga.

Sobre hospitais que atendem muito bem pelo SUS, a gente ouve de poucos, como o Hospital de Clínicas e o Incór, em São Paulo, e os hospitais de Jaú e Barretos, para quem luta contra o câncer. E o resto? O senso comum manda dizer "um lixo". O mesmo senso comum que também afirma peremptoriamente que a saúde é péssima, a educação não funciona, e o país é o país da desesperança. Qualquer pessoa que faça um comentário positivo sobre a saúde pública ouve em seguida um repúdio a esse comentário. Parece que a pessoa que elogiou é natural de Plutão, um planeta que está na moda.

Essa é a cultura nacional do pessimismo. Faz parte da síndrome de vira-latas, transtorno cognitivo magistralmente descrito por Nelson Rodrigues. É. O pessimismo é contagiante.

Daí, após começar cada diálogo que tive no hospital falando do passatempo predileto dos pessimistas de plantão, de como o "SUS é péssimo", eu dizia que que nunca havia sido tão bem atendido em um hospital em minha vida. Nunca vi tantas pessoas atendendo tão bem em um quarto em quatro dias de internação. Fui testemunha do trabalho de mais de trinta profissionais. Absolutamente todos adoram sua profissão. Absolutamente todos estão sempre a postos, com vontade real de ajudar as pessoas. Dos médicos aos responsáveis pela limpeza.

Ou seja, o que vi foi um hospital com seres humanos. Para mim é óbvio que não podemos apenas saudar o sistema público de saúde. Ali o clime que está no ar é daqueles de gente que se desdobra para fazer o melhor.

Fiquei tocado pela história de vida de uma das enfermeiras. Por sinal, uma enfermeira excelente: ela teve um filho com um grave problema. O menino tinha epilepsia. Daí, ela fez o curso de técnico em enfermagem para aprender a cuidar do próprio filho. Com o curso na mão, decidiu que essa deveria ser a sua profissão. Saiu da indústria onde trabalhava para ajudar a cuidar das pessoas. Qual é o preço disso?

Daí, voltando à senhora voluntária, com os papeluchos da pesquisa em mãos, ao lado da minha mão, comecei a responder as questões. "Ótimo. Tudo ótimo. Não, desculpe. Não é ótimo, é excelente". Ao invés dela continuar a fazer as questões, eu a "atropelei" e disparei em perguntas. Uma delas: Como eles conseguiam fazer uma Santa Casa tão boa?

Pelo que entendi, a Santa Casa de Pirassununga depende enormemente do SUS e, não somente, de uma grande mobilização da sociedade. Os voluntários que trabalham nas coisas simples, podem ajudar muito os enfermos em seu cotidiano. Eles costuram as roupas de cama, compram os cobertores, fazem pequenos ajustes e reformas no hospital.

Além disso, para levantar recursos para esses trabalhos, promovem festas, barraquinhas, pizzas solidárias e praticam todas as ideias que um grupo de pessoas focadas em fazer o bem podem praticar.

No fim das contas, aprendi uma coisa que de outra forma não aprenderia. Não adianta falar mal do SUS nas redes sociais . Não adianta reclamar de tudo e não fazer nada, por ninguém. Não adianta nada bater panelas diante da televisão enquanto milhares de pessoas trabalham, de fato por dias melhores, para si e para os outros.

Naquele lugar, no hospital, essas pessoas põem a mão na massa. E isso tem um efeito complexo sobre elas. Todos veem o quanto o esforço é recompensado, todos percebem que nada está abandonado.

E se você adicionar a isso um monte de gente desejando fazer as coisas corretamente, a fiscalização sobre possíveis chupins e aqueles corruptos de sempre, fica maior e mais eficaz. Garanto que se alguém aparecer com más intenções, não vai durar muito por lá.

Diante do exemplo que vi, sugiro às outras Santas Casas que procurem aprender com os métodos e com a gestão desta de Pirassununga. É preciso apreender e manter a energia positiva que vi ali, naquela Santa Casa do interior paulista.

Várias pessoas da minha família já foram muito bem atendidas em hospitais públicos. Isso não era grande novidade para mim. Minha mãe recebeu por 5 anos um remédio para o câncer na mama, medicamento que custava mais de R$ 500 por mês. Meu tio, irmão dela, passou por diversas cirurgias no Hospital de Clínicas, em São Paulo, também por causa de câncer. Uma prima fez diversos tratamentos no AC Camargo. Todos me deram ótimos exemplos.

Mas uma coisa sempre me encafifou. Por uma razão, talvez humana, as pessoas gostam de contar algum tipo de vantagem. Sempre parecia que aquilo não era para todos, parece que era sempre para eles, sempre contaram histórias de como, por algum tipo de influência, conseguiram ser atendidos desviando de barreiras como filas longas e procedimentos demorados. Pareciam acessar os serviços bons por terem alguém do outro lado do balcão. Ou conheciam algum médico, ou conheciam alguém que conheciam alguém. Ou foram indicados para ir para esses hospitais por alguém muito influente.

Eu nunca consegui imaginar como é que poderia funcionar, dentro de qualquer desses grandes hospitais, uma central de "influências". Algo como "atenda esse, é indicação do Dr. fulano".

E o pensamento voa: "Será que fui bem atendido só porque cheguei de ambulância da Força Aérea?

Mas, de onde veio então influência do repositor de supermercado, do pintor, e do marceneiro que estavam no meu quarto? E de onde veio a influência do servente de pedreiro, que depois, inclusive, me confessou, que numa bobagem aos 18 anos, passou um pouco mais de um ano atrás das grades. O ex-presidiário teve um atendimento tão bom quanto o meu, teve a mesma atenção dos médicos e enfermeiras. Do início ao fim da internação.

E, pasmem! Essas pessoas não fazem nem parte da mesma classe social dos diretores e médicos que ali trabalham.

Minha conclusão, depois de vivenciar o SUS, foi de que esse hobby nacional é uma bobagem. Uma tremenda asneira, parece até coisa de quem não tem o que fazer. Dá vontade de dizer às pessoas que vociferam contra o SUS: "Reclamem menos e metam a mão na massa!".

E o SUS é ótimo, sim.

* Filipe Rafaeli é designer e piloto privado e de acrobacia aérea. Trabalhou no Estadão, entre outros veículos de comunicação.

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