Indulto de Natal de Bolsonaro para autores de massacre do Carandiru
Com a política brasileira centrada já na discussão do novo governo Lula, o ainda presidente Jair Bolsonaro fez questão de voltar a ser notícia com um dos últimos atos da sua presidência ser um símbolo da sua passagem pelo Palácio do Planalto. Esta sexta-feira, assinou um indulto de Natal que beneficiará os 69 polícias militares ainda vivos condenados pelo massacre do Carandiru.
O massacre do Carandiru foi perpetrado em 1992 e vitimou 111 presos da Casa de Detenção de São Paulo. O caso arrastou-se na justiça e só em vários julgamentos em 2013 e 2014 é que 74 polícias militares foram condenados com penas entre 48 e 624 anos. Cinco morreram entretanto mas os restantes ainda não tinham cumprido qualquer pena pelos assassinatos, recorrendo a sucessivas manobras para adiar a ida para a prisão. Este ano, o caso transitou em julgado no Superior Tribunal de Justiça e no Superior Tribunal Federal esgotando a possibilidade de recurso. Aguardava-se entretanto a análise do Tribunal de Justiça de São Paulo que iria verificar a adequação das penas, provavelmente em janeiro, e esperava-se que a seguir as penas fossem finalmente cumpridas.
No texto do perdão, Bolsonaro não refere uma única vez o sucedido. O texto é supostamente genérico mas os destinatários são óbvios. Escreve-se que o perdão é aplicado a agentes de forças de seguranças condenados por crimes ocorridos há mais de 30 anos e que é aplicado a crimes que não eram “considerados hediondos no momento de sua prática”. O homicídio em 1992 no Brasil não estava incluído na Lei dos Crimes Hediondos.
O procurador Maurício Ribeiro Lopes, responsável pelo processo, garantiu que o Ministério Público irá recorrer para o Constitucional por considerar que a decisão “é extremamente casuísta e fere princípio da impessoalidade da lei”.
O que aconteceu no massacre do Carandiru
O massacre do Carandiru aconteceu a 2 de outubro de 1992. Durante um jogo de futebol entre prisioneiros, uma escaramuça foi escalando em motim no pavilhão nove da Casa de Detenção de São Paulo.
O Deutsche Welle Brasil conta os pormenores. O dia era véspera de eleições municipais. E o responsável pela segurança pública deste estado brasileiro, Pedro Franco de Campos, justificou-se com isso: “Não poderíamos permitir uma fuga em massa de mais de sete mil criminosos”.
Foram assim enviados 362 polícias militares que entraram armados “com revólveres, submetralhadoras alemãs, escopetas, fuzis M-16 e cães”. 111 prisioneiros morreram durante a meia hora da ação. O famoso médico brasileiro Drauzio Varella, que trabalhava então na prisão, explica que “o ataque foi desfechado com precisão militar: rápido e letal. A violência da ação não deu chance para defesa”.
As associações de direitos humanos protestaram. Não só pelo uso desproporcional de força mas também pelo facto dos presos se terem rendido antes da intervenção. Segundo as perícias realizadas no âmbito da investigação 70% dos tiros foram dirigidos à cabeça e ao tórax e as trajetórias das balas confirmam a tese da execução.
O governador do estado de São Paulo, Luiz Antônio Fleury, escondeu inicialmente a escala do massacre, indicando-se apenas oito mortes no próprio. Era véspera de eleições locais, repita-se. Mas a escala do que tinha acontecido não podia ser mascarada.
Depois foi preciso esperar até 2001 para uma primeira condenação, a do coronel Ubiratan Guimarães, o comandante da operação. Os outros seguiram-se. Em 2006, este ganha o recurso porque o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu que apenas tinha “cumprido seu dever”. Em 2016, a mesma instituição anulou os cinco júris dos outros condenados e escrevia o relator que “não houve massacre” mas “uma contenção necessária à imposição da ordem e da disciplina, tratou-se de legítima defesa”. Para além de se conhecerem já as perícias que atestavam as execuções, também já tinha ficado provado que não houve qualquer projétil disparado na direção dos polícias militares, o que inviabilizaria a tese da auto-defesa. A acusação invocava ainda reincidência. Pelo menos 24 dos réus tinham morto “300 pessoas em ocorrências de resistência seguida de morte (sem relação com o Carandiru) desde o início da carreira de cada um até o ano 2000”, escreve o órgão de comunicação social alemão.
Os últimos capítulos judiciais foram a restauração das penas originais. Em 2021 pelo Superior Tribunal de Justiça. E, depois de um último recurso, em agosto deste ano a decisão foi confirmada pelo Superior Tribunal Federal.
Entretanto, os protagonistas tinham continuado as suas vidas e carreiras. Fleury, o ex-governador, terminou o seu mandato em 1994. Quatro anos depois foi eleito deputado federal cargo onde se manteve até 2006, altura em perdeu a tentativa de uma segunda reeleição.
Campos, o secretário estadual de segurança, abandonou o cargo dias depois do crime mas tornou-se diretor de uma faculdade.
Do lado policial, Ubiratan, para além de continuar a sua carreira policial também entrou na política. Em 2002 conseguiu a eleição como deputado estadual de São Paulo. Tinha como número eleitoral 11190, visto como referência ao número de mortos do massacre. Morreu em 2006. A maior parte dos outros polícias militares continuaram na força policial, vários foram promovidos poucos anos depois do massacre e dois chegaram até à chefia da Rota, a tropa de elite da polícia militar de São Paulo.
Em 2018, João Doria, governador de São Paulo, escolheu para secretário da Administração Penitenciária o ex-coronel da polícia militar Nivaldo Restivo, acusado de permitir o espancamento de sobreviventes do massacre.
Nenhum comentário:
Postar um comentário