“Qatargate? Parece mais Marrocosgate”
Em estado de choque com a detenção de uma das suas vice-presidentes, sob suspeita de receber subornos para servir os interesses do regime do Qatar no núcleo central da produção legislativa europeia, o Parlamento Europeu apressou-se a aprovar uma resolução a condenar a interferência externa através de práticas de corrupção. Mas a proposta vinda da Esquerda para incluir também a condenação de práticas semelhantes por parte de Marrocos acabou chumbada por 253 votos contra 238 e 67 abstenções, apesar de a investigação policial ter começado precisamente por essas ligações e tudo apontar para que o Qatar tenha aproveitado uma rede de corrupção já instalada em Bruxelas pelo regime de Marrocos.
A “emenda 31” à proposta de resolução, da autoria das eurodeputadas Sira Rego e Manu Pineda, do grupo parlamentar onde têm assento Bloco de Esquerda e PCP, era o seguinte parágrafo: “Manifesta profunda preocupação com as alegações de que Marrocos também tentou influenciar deputados, antigos deputados e funcionários do Parlamento Europeu através de atos de corrupção; apela à aplicação de medidas em consonância com as aplicadas aos representantes dos interesses do Catar enquanto decorrem as investigações”.
Ao chumbo desta emenda, juntaram-se os eurodeputados portugueses dos grupos socialista e da direita, incluindo a social-democrata Lídia Pereira - que o site Politico aponta como uma potencial favorita à sucessão de Eva Kaili nas boas graças do lóbi das criptomoedas junto do Parlamento Europeu - e o líder do CDS, Nuno Melo. A favor de incluir Marrocos nas preocupações do Parlamento Europeu votaram apenas Marisa Matias e José Gusmão, do Bloco, e o eurodeputado independente Francisco Guerreiro. Os eurodeputados do PCP não participaram na votação desta emenda.
Perante o argumento dos que chumbaram a emenda - o foco devia estar no Qatar e que sobre Marrocos haveria apenas suspeitas -, o eurodeputado Miguel Urbán, que acompanha no grupo da Esquerda a situação do Saara Ocidental e dos direitos humanos em Marrocos, respondeu num canal de televisão espanhol: “Os mandados de captura e busca mencionam diretamente o Qatar e Marrocos; a única declaração que estava em cima da mesa de uma das pessoas detidas e acusadas quando esta emenda foi votada reconhece que Marrocos era o cérebro da trama, que não era apenas o Qatar, e que começou com Marrocos”. Ou seja, “estamos mais ante um Marrocosgate do que de um Qatargate”, resumiu.
Urbán lembrou que o grupo da Esquerda tentou durante dois anos agendar uma resolução sobre direitos humanos no Qatar, mas que a iniciativa foi sempre bloqueada pelos grandes grupos dos populares, liberais e socialistas no Parlamento Europeu. Sublinhou ainda que, sobre Marrocos, nunca houve urgência dos eurodeputados em abordar a questão dos direitos humanos, como houve com o Egito, Argélia, Tunísia ou dos países à sua volta. Mesmo se, por exemplo na região marroquina do Rif, há jornalistas e ativistas na prisão.
Serviços secretos marroquinos sob suspeita
Em resposta aos deputados belgas na quarta-feira, o ministro da Justiça deste país, que tutela a polícia de investigação, confirmou que haveria mais do que um país envolvido no caso e também mais dinheiro envolvido do que o milhão e meio de euros referido nas notícias. Sem especificar, Vincent Van Quickenborne referiu a interferência de Marrocos no controlo das instituições muçulmanas na Bélgica. “Os interesses podem ser vários. Para dar um exemplo: os direitos de pesca”, avançou o ministro, lançando assim a suspeita sobre a votação que, em 2019, incluiu o Saara Ocidental no âmbito geográfico do acordo de pescas entre a UE e Marrocos. Esta era uma velha reivindicação de Rabat, recusada um ano antes pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, que declaradou ilegal a aplicação do acordo àquele território, que à luz do direito internacional está ilegalmente ocupado pelo Reino de Marrocos.
Uma investigação do site espanhol El Confidencial junta mais elementos à trama de corrupção no Parlamento Europeu, ao revelar que a Direção Geral de Estudos e Documentação (DGED, os serviços de informações externas de Marrocos, que respondem apenas ao monarca) sobrepôs-se à diplomacia marroquina no comando desta rede de influência, dirigida durante anos por Abderrahim Atmoun, que foi co-presidente da Comissão Parlamentar conjunta de Marrocos e da União Europeia, hoje embaixador de Marrocos em Varsóvia. Segundo explicou o diretor de Programas Internacionais do Insituto Universitário Americano de Aix-en-Provence, Aboubakr Jamai, “a cooperação com Israel no âmbito dos serviços de informações deu-lhes asas e consideram-se politicamente impunes”, sendo essa a razão para “atravessarem linhas vermelhas”.
Para o lugar de Atmoun no controlo desta rede passou Mohamed Belahrech, um dos chefes da DGED, por volta de 2019. Foi nesse ano que dois dos alvos italianos desta investigação policial, o ex-eurodeputado Pier Antonio Panzeri e o eurodeputado agora suspenso Andrea Cozzolino, ambos do grupo socialista, se deslocaram um de cada vez a Rabat, onde se terão reunido com o líder da secreta Yassine Mansouri. Cozzolino tinha substituído Panzeri à frente das subcomissões de Direitos Humanos e da delegação Magreb do Parlamento Europeu. Segundo o El Confidencial, foram estes contactos que chamaram a atenção da secreta belga e estiveram na origem da investigação aberta no verão de 2021. Mas a relação próxima de Panzeri com o regime marroquino durava desde o início do seu mandato de eurodeputado, o que lhe valeu em 2014 uma condecoração por serviços prestados ao Reino.
ONG “Fight Impunity” no centro da investigação
O jornal belga Le Soir dá conta do depoimento do companheiro da eurodeputada Eva Kaili, o primeiro a ser detido na operação policial. Francesco Georgi confessou fazer parte de uma organização dirigida por Panzeri e usada quer por Marrocos quer pelo Qatar para interferir na política europeia. A sua missão, referiu Georgi, era a de “gerir o dinheiro”, ao qual também terão tido acesso Andrea Cozzolino e outro eurodeputado socialista, Marc Tarabella, até agora mais associado ao lóbi das cervejeiras.
Giorgi fazia também parte da ONG criada por Panzeri em 2019, ano em que terminou o seu mandato de eurodeputado iniciado em 2004. A Fight Impunity tem sede em Bruxelas, na mesma morada de outras quinze associações com alguns nomes em comum, como o da antiga comissária europeia Emma Bonnino. Tal como outros membros do conselho consultivo - órgão que nunca funcionou e apenas servia para dar credibilidade pública à associação - da Fight Impunity, como a eurodeputada socialista Isabel Santos, apresentou a demissão na sequência da detenção do seu fundador. Um dos nomes que aparece em cinco das associações registadas nesta morada é o de Niccolo’ Figa-Talamanca, secretário-geral da No Peace Without Justice (NPWJ), organização fundada por Emma Bonnino em 1993. Talamanca foi um dos detidos no dia 9 de dezembro e sabe-se que esteve com Panzeri no Qatar em 2019 num colóquio com a presença do ministro do Trabalho Al Marri, que também é citado várias vezes na investigação em curso.
O Le Soir refere ainda que apenas um ano após a fundação da Fight Impunity, a ONG candidatou-se ao financiamento europeu para um projeto-piloto para a criação de um “observatório europeu de luta contra a impunidade”. Um processo que segundo a mesma notícia publicada a 15 de dezembro contou com a ajuda das eurodeputadas socialistas Marie Arena - uma presença assídua nas atividades desta ONG - e Isabel Santos. O diário belga diz que o financiamento não tardou a ser aprovado, no montante de 175 mil euros, com uma primeira tranche de 43.750 euros a ser paga a 23 de fevereiro de 2021. “Um verdadeiro feito!”, diz ao jornal uma fonte de uma grande ONG conhecedora dos meandros morosos destes pedidos de financiamento. A eurodeputada Isabel Santos veio esta quinta-feira desmentir a notícia nas redes sociais. "É falso que eu tenha apoiado ou avalizado qualquer financiamento seja a que organização for, nomeadamente à Fight Impunity", afirma Isabel Santos, negando ter qualquer conhecimento sobre verbas atribuídas pelo Parlamento Europeu àquela organização. "Sobre o projeto-piloto de criação de um observatório de combate à impunidade, referido pelas notícias, tanto quanto sei, ainda não foram sequer abertas candidaturas pela Comissão Europeia para a sua implementação. Por isso, não poderia ter sido atribuído qualquer financiamento", conclui a eurodeputada do PS. Sobre a sua presença no que chama o "quadro de honra" da Fight Impunity, Isabel Santos diz que a sua ação se limitou à participação em "algumas sessões ou conferências públicas e num relatório anual" e que "nada me podia levar a ter qualquer suspeita sobre a idoneidade da instituição".
“Atual primeiro-ministro marroquino quis subornar-me”, diz ex-eurodeputado José Bové
O atual escândalo veio também reavivar histórias do passado. Por exemplo, o antigo eurodeputado francês e porta-voz da Via Campesina José Bové ligou esta semana para um programa televisivo da France Inter para contar o episódio ocorrido quando era o relator do acordo comercial entre a UE e Marrocos em 2012.
Segundo Bové, que se opunha a este acordo por ser prejudicial aos pequenos agricultores marroquinos e europeus, o ministro marroquino da Agricultura da altura - Aziz Akhannouch, que hoje é o primeiro-ministro de Marrocos -, “propôs levar-me um presente a Montpellier num café que fosse discreto entre o Natal e o Ano Novo”. Bové diz que lhe deu uma morada e recebeu horas depois um telefonema do ministro a dizer que não encontrava nenhum café nessa rua. “Eu respondi-lhe que era a morada do meu advogado. E acabou aí”, recorda o antigo eurodeputado, sublinhando que o governante “tinha o apoio desse clube privado que é a associação de amizade que junta eurodeputados de vários grupos políticos”. Bové aproveitou para apelar a que haja uma revisão de todas as votações que tenham interferido com os interesses de Marrocos.
Quando o Grupo Socialista deu ordem para votar na candidata da extrema-direita ao Prémio Sakharov
A influência marroquina nas decisões dos eurodeputados não se faz apenas de subornos como os que Bové recusou. Em outubro do ano passado, quando o Parlamento Europeu escolhia os três finalistas para o Prémio Sakharov, houve um empate para saber quem acompanharia o opositor russo Alexei Navalny, proposto pelo PPE, e as onze afegãs que lutavam pelos direitos das mulheres no seu país, propostas pelos grupos dos Socialistas e Verdes. O desempate era entre a candidata proposta pela extrema-direita - a boliviana Jeanine Áñez (que subiu à presidência com o golpe de Estado contra Evo Morales e que entretanto foi presa pelo seu papel no golpe) - e a proposta do grupo da Esquerda - a presidente da Liga Saraui dos Direitos Humanos, Sultana Khaya, em prisão domiciliária há quase um ano e que meses antes tinha denunciado a sua violação e da sua irmã por parte das tropas marroquinas, como recordou numa recente passagem por Portugal.
Na votação de desempate, os eurodeputados socialistas espanhóis receberam uma ordem escrita para que votassem na candidatura proposta pela extrema-direita, alegando que assim teriam mais hipóteses de sucesso na votação final. A mensagem foi transmitida pelo eurodeputado croata Tonino Picula, que fez questão de começar o email a dizer que a ordem vinha do eurodeputado português Pedro Marques, vice-presidente do gruo socialista e membro da subcomissão dedicada às relações com o Magrebe. A imprensa espanhola diz ser pouco provável que a decisão fosse tomada sem o conhecimento e acordo da presidente do grupo socialista - a espanhola Iratxe García - e sem a consulta ao Ministério dos Negócios Estrangeiros do seu país, que na altura procurava normalizar a sua relação com Marrocos.
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