José Paulo kupfer.
Tudo indica que o crash de 2008 decretou o fim da atual etapa de predomínio conservador na história do pensamento econômico - pelo menos até que o pêndulo volte a oscilar. Foram cerca de quatro décadas de desregulamentações, de esforços no sentido da redução da presença dos governos na economia e de renovação da crença de que os mercados, livres de interferências dos governos, são os promotores superiores da eficiência, da estabilidade e, enfim, do desenvolvimento.
Não surpreende que o longo período de estreita vigilância sobre a “a apropriação privada dos recursos públicos” – mote a que os neoliberais reduziam toda e qualquer tentativa de aplicação de políticas afirmativas, seja no campo produtivo, seja no campo social – esteja chegando ao fim com a maior apropriação privada de recursos públicos de que o mundo já teve notícia. E que a intervenção, de proporções inéditas, tenha sido decidida e executada por governos conservadores. A História, afinal, é um tecido costurado com a linha das ironias. Sinal da crise das idéias econômicas neoliberais, a velha e surrada expressão “agora somos todos keynesianos”, a que os conservadores lançam mão para legitimar a hipocrisia do recurso à intervenção salvadora, está de volta.
Aos adeptos das formulações liberais está sendo compreensivelmente duro largar o osso. Vai daí que ganham corpo as tentativas – algumas não mais do que patéticas – de transferir a “culpa” do acontecido a intervenções governamentais. O crash não teria sido causado pela ausência dos governos, que deixaram de lado os controles das boas práticas no setor financeiro e confiaram na lorota da auto-regulação dos mercados, mas, justamente ao contrário, pela sua presença excessiva. Com políticas monetárias frouxas, juros baixíssimos e leniência abusiva com déficits fiscais gigantes, os governos teriam levado o setor financeiro ao desastre e arrastado a economia real para a recessão. A conclusão desse risível contorcionismo mental é que, diferentemente do que dizem os “abutres anti-mercado”, a política econômica que levou ao desastre foi keynesiana.
Pobre Lord Keynes. Os velhos detratores estão aí, mais uma vez, usando seu nome em vão. Valem-se de um senso comum chinfrim para tentar esconder gritantes falhas de um sistema em que acreditam de um modo religioso. É um comportamento recorrente: sempre que seus dogmas são recusados pela realidade, reagem como feras feridas, procurando distorcer os fatos e transferir as culpas.
A questão verdadeira é outra. Como lembra, em artigo recente republicado pelo jornal “Valor” (leia aqui), o economista Robert Skidelsky, celebrado biógrafo de Keynes, o que realmente está em questão “é o dilema sem solução mais antigo da economia: os sistemas de mercado são “naturalmente” estáveis ou precisam ser estabilizados pela política?”.
“Keynes enfatizava a fragilidade das expectativas sobre as quais se baseia a atividade econômica em mercados descentralizados. O futuro é intrinsecamente incerto e, portanto, a psicologia do investidor é volúvel”, escreve Skidelsky.
Em contraposição, as idéias neoclássicas, que, em meados do século passado foram adaptadas aos tempos de estagflação com maior brilho por Nobel de Economia Milton Friedman, advogam que os mercados são mais estáveis e racionais do que Keynes imaginava e que é possível prever os riscos inerentes às transações econômicas e, portanto, o comportamento dos agentes no mercado. Assim, os preços, se livremente expressos, levarão, “naturalmente”, ao pleno emprego.
A novidade que havia sido introduzida por Keynes – e, em paralelo, por outros economistas, como o polonês Michal Kalecki –, nos entornos dos anos 30, em ambiente de profunda depressão econômica, foi exatamente a de comprovar que o pleno emprego não era garantido, como até então estabelecido, pelo livre funcionamento do sistema de preços. Na formulação keynesiana, o que garante o pleno emprego é a demanda agregada. É aí que aparecem o governo e seus gastos como elementos ativos do desenvolvimento econômico.
O fato é que, diferentemente do que querem fazer supor os conservadores, Keynes não defendia a “gastança”, o déficit fiscal e quetais em qualquer circunstância. Defendia a ação do governo e, eventualmente, os gastos públicos, nas circunstâncias de uma demanda agregada insuficiente. Nem todo déficit público, portanto, é keynesiano.
Depois da transferência, que ainda não chegou ao fim, de alguns muitos trilhões de dólares dos cofres públicos para o setor privado, governantes europeus falam em “refundar” o capitalismo. Esta é uma expressão grandiloqüente e dramática demais para a idéia de rever a governança econômica mundial, depois da incapacidade revelada pelo sistema de Bretton Woods, para lidar com o problema das dimensões do que agora atingiu a economia global.
Espera-se que, também nesse outro sentido, o nome de Keynes não seja invocado em vão.
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