segunda-feira, 27 de outubro de 2008

BOLÍVIA - Esse índio aimara que de bobo não tem nada.

Por Max Altman

Quando o Senado da Bolívia, em que a oposição a Evo Morales tem maioria, aprovou no final de junho, sem emenda, a proposta do referendo revogatório, aprovada na assembléia de deputados e que dormia nas gavetas do senado, a cena política se cobriu de estupefação.

É verdade que os dirigentes do partido de direita queriam retomar o papel protagonista que lhe havia sido retirado pelos governadores dos departamentos de Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando, a que se somou mais tarde o de Chuquisaca. Mas também é verdade que a avaliação das forças de oposição a Evo - da oligarquia e seu braço fascista-racista, a União Juvenil Cruzenhista, da totalidade dos grandes meios de comunicação privados e do embaixador norte-americano Philip Goldberg - era de que o presidente tinha dobrado os joelhos: perdera a bandeira da autonomia departamental para os seus inimigos, mal podia transitar nos territórios da “media luna”, os movimentos populares, base de apoio político do presidente, apresentavam algumas fraturas, havia um certa inação administrativa, a oposição mostrava força política pois tinha ganho os ‘referendos autonomistas’ nos quatro departamentos, desrespeitando até a manifesta ilegalidade da convocação, a tese da secessão e do desmembramento da Bolívia prosseguia. Era chegado o momento de dar o xeque-mate e que viria com fundamentos de legalidade a afastar qualquer rejeição interna e internacional.

Evo recebe do presidente do Senado o projeto de referendo revogatório com data marcada para 10 de agosto. Como num jogo de xadrez, resolve avançar perigosamente sua dama, sanciona o projeto. Perplexidade geral. Muitos – e não os opositores e nem só os bolivianos – taxam a medida de loucura. Se perder a dama, o jogo estará terminado. Evo diz que confia no povo.

Os dias prosseguem e a oposição começa a perceber que o avanço da dama tinha a proteção de cavalos, bispos e peões, distintos setores da sociedade boliviana começam a pôr a manifesto seu apoio ao presidente. Ela age para melar o jogo. Uma juíza isolada do esvaziado Tribunal Constitucional – os demais membros haviam pedido demissão e não haviam sido substituídos devido ao impasse no parlamento – decide impugnar o referendo alegando não constar da Constituição vigente qualquer menção. Era a tábua de salvação para uma oposição atônita.

Novo braço de ferro. Evo recua o cavalo para proteger o flanco da dama. Concorda com mudanças nas regras do projeto do referendo. Os governadores só seriam revogados se 50% por cento mais um dos votantes decidissem pela extinção dos seus mandatos e não mais se a quantidade e a porcentagem de votos pela revogação superassem o que haviam obtido nas eleições anteriores – alguns deles tinham ficado entre 40 e 45% e outros abaixo dos 40%.

Chegou o dia 10 de agosto. Presidente e vice confirmados. Quatro governadores de oposição confirmados, dois governadores de oposição revogados, dois governadores favoráveis ao governo confirmados, uma governadora de oposição não passou pelo referendo porque havia sido recentemente eleita. Evo consolida a posição de suas peças. Teve em toda a Bolívia 68% dos votos, 14% mais do que na eleição presidencial. Mais do que o governador golpista de Santa Cruz, Rubem Costas, teve em seu reduto, 64%. Nas regiões dominadas pela oligarquia, especialmente Santa Cruz e Tarija, Evo recebeu mais de 40% dos votos.

A oposição desesperada resolve partir para o tudo ou nada. O objetivo é criar o caos, desestabilizar o governo e derrocar Evo por meio de golpe de estado, desta vez escrachado: massacre em Pando, atos terroristas em Tarija e Santa Cruz com a explosão de dutos que levam gás ao Brasil e Argentina, invasão, destruição e ocupação de bens públicos pertencentes ao governo central. A conjuntura se torna extremamente tensa. Evo decide expulsar o embaixador estadunidense. O presidente, ainda que constitucionalmente o comandante-em-chefe, evita convocar as forças armadas por não confiar na hierarquia militar, composta esmagadoramente de filhos dos departamentos dominados pela oligarquia, receoso de se repetir em solo boliviano os episódios históricos de seu vizinho a oeste e por não querer outorgar aos militares a condução do processo que poderia não mais voltar as suas mãos.

Os presidentes dos países da região por unanimidade decidem respaldar o governo e o presidente Evo Morales e propõem a volta à mesa de negociações.

O eixo é a revisão da nova Constituição e o seu envio a referendo popular. Sentam-se à mesa, sob observação internacional, governo e governadores. Leguleios, subterfúgios, trapaças e ameaças são as armas esgrimidas pela ‘media luna’. Ora não negociam se o governador de Pando, preso pela procuradoria por ter sido o responsável pelo massacre de camponeses, não for solto; ora se a concentração de camponeses em Santa Cruz não for desmobilizada, ou até que um funcionário do departamento de Santa Cruz, responsável pela explosão de uma válvula-mestre de um importante gasoduto, detido a mando da procuradoria por sua ação terrorista não seja libertado. Incessantes chicanas são alimentadas pela mídia e seus colunistas, tudo com o desiderato de levar ao fracasso as negociações, criar um grande impasse e a paralisia da nação, desgastar o governo e fazer voltar tudo ao status quo ante.

Evo resolve partir para a ofensiva, avança decididamente suas torres. Dá por terminada a negociação com os governadores e envia ao Congresso – senadores e deputados – a tarefa de revisar a nova Constituição e determinar prazo para sua aprovação em referendo popular. Mas faz aí a sua jogada de mestre. Reparadas as frinchas e fendas da unidade das forças populares, tem início uma colossal marcha de Oruro e La Paz, 200 quilômetros, oito dias, centenas de milhares de camponeses, mineiros, operários, indígenas, estudantes, homens e mulheres, jovens e velhos para dizer aos congressistas ‘mantenham a estrutura da Constituição votada, façam as revisões necessárias para o entendimento político, mas marquem logo a data do referendo.

Estaremos aguardando, mas dispostos a fazer valer a voz do povo. Os congressistas ouviram e entenderam a mensagem das ruas. Em 10 horas ultimaram os trabalhos. Restava um nó. Nesse momento, Evo, em outro lance magistral, sacrifica uma de suas torres – desiste de uma das duas eleições previstas e sob a égide da nova carta-magna – e avança impetuoso para o xeque-mate. Referendo popular marcado para o dia 25 de janeiro de 2009 e eleições gerais para presidência, senado e câmara para 6 de dezembro de 2009, antecipando em um ano o termo de seus mandatos.

Oposição golpista desbaratada, acusando-se uns aos outros de traidores, governadores da meia-lua bradando no deserto que não vão respeitar a decisão, oposição legal fragmentada, os meios de comunicação lamuriando-se em editoriais, juristas de encomenda desfilando suas teses.

Rompeu-se o empate catastrófico de que falava o vice-presidente Álvaro Garcia Linera. Que perspectiva política se divisa? Uma enorme aprovação à nova Constituição em janeiro, prevê-se mais de 90%. E a grande possibilidade de reeleição de Evo Morales e Garcia Linera e a formação de ampla maioria no Senado e Câmara, em dezembro. Esta última hipótese depende em boa medida do desempenho do governo em 2009 e da manutenção de monolítica unidade das forças populares e progressistas.

O mais importante: a Bolívia não será mais humilhada, nem privatizada, nem esquartejada. O povo, dos mais longínquos recantos, dos bairros, dos sindicatos, das fábricas, das minas, das universidades, rompeu os grilhões do neoliberalismo e saberá, sob a liderança desse valente e sábio aimara, construir uma nova nação.

Max Altman é advogado e militante petista.
Fonte: Blog do Zé Dirceu.

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