sexta-feira, 31 de outubro de 2008

DEUS E RATZINGER

José Saramago

Que pensará Deus de Ratzinger? Que pensará Deus da igreja católica apostólica romana de que este Ratzinger é soberano papa? Que eu saiba (e escusado será dizer que sei bastante pouco), até hoje ninguém se atreveu a formular estas heréticas perguntas, talvez por saber-se, de antemão, que não há nem haverá nunca resposta para elas. Como escrevi em horas de vã interrogação metafísica, há uns bons quinze anos, Deus é o silêncio do universo e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio. Está nos Cadernos de Lanzarote e tem sido frequentemente citado por teólogos do país vizinho que tiveram a bondade de me ler. Claro que para que Deus pense alguma coisa de Ratzinger ou da igreja que o papa anda a querer salvar de uma morte mais do que previsível, seja por inanição, seja por não encontrar ouvidos que a escutem nem fé que lhe reforce os alicerces, será necessário demonstrar a existência do dito Deus, tarefa entre todas impossível, não obstante as supostas provas arquitectadas por S. Boaventura, como a de esvaziar os oceanos com um balde furado ou mesmo sem furo nenhum. Do que Deus, caso exista, deve estar agradecido a Ratzinger é pela preocupação que este tem manifestado nos últimos tempos sobre o delicado estado da fé católica. A gente não vai à missa, deixou de acreditar nos dogmas e cumprir preceitos que para os seus antepassados, na maior parte dos casos, constituíram a base da própria vida espiritual, senão também da vida material, como sucedeu, por exemplo, com muitos dos banqueiros dos primórdios do capitalismo, severos calvinistas, e, tanto quanto é possível supor, de uma honestidade pessoal e profissional à prova de qualquer tentação demoníaca em forma de subprime. O leitor estará talvez a pensar que esta súbita inflexão no transcendente assunto que me havia proposto abordar, o sínodo episcopal reunido em Roma, se destinaria, afinal, a introduzir, com mais ou menos jeito dialéctico, uma crítica ao comportamento irregular (é o mínimo que se pode dizer) dos banqueiros nossos contemporâneos. Não foi essa a minha intenção nem essa é a minha competência, se alguma tenho.

Voltemos então a Ratzinger. A este homem, decerto inteligente e informado, com uma vida activíssima nos âmbitos vaticanais e adjacentes (baste dizer que foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, continuadora, por outros métodos, do ominoso Tribunal do Santo Ofício, mais conhecido por Inquisição), ocorreu-lhe algo que não se esperaria de alguém com a sua responsabilidade, cuja fé devemos respeitar, mas não a expressão do seu pensamento medieval. Escandalizado com os laicismos, frustrado pelo abandono dos fiéis, abriu a boca na missa com que iniciou o sínodo para soltar enormidades como estas: «Se olhamos a História, vemo-nos obrigados a admitir que não são únicos este distanciamento e esta rebelião dos cristãos incoerentes. Em consequência disso, Deus, embora não faltando nunca à sua promessa de salvação, teve de recorrer amiúde ao castigo». Na minha aldeia dizia-se que Deus castiga sem pau nem pedra, por isso é de temer que venha por aí outro dilúvio que afogue de uma vez os ateus, os agnósticos, os laicos em geral e outros fautores de desordem espiritual. A não ser, sendo os desígnios de Deus infinitos e ignotos, que o actual presidente dos Estados Unidos já tenha sido parte do castigo que nos está reservado. Tudo é possível se o quer Deus. Com a imprescindível condição de que exista, claro está. Se não existe (pelo menos nunca falou com Ratzinger), então tudo isto são histórias que já não assustam ninguém. Que Deus é eterno, dizem, e tem tempo para tudo. Eterno será, admitamo-lo para não contrariar o papa, mas a sua eternidade é só a de um eterno não-ser.
Fonte: Blog Informação Alternativa.

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