Dois pesos, duas campanhas
Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
O debate no TSE começou ontem e prossegue na semana que vem. Três ministros já votaram contra o direito de resposta. Dois, contra a censura. Gilmar Mendes assumiu a postura contrária. Apoiou Marina nas duas causas.
Em sua colocação, Gilmar mostrou-se alinhado não só com os pedidos da
candidata do PSB, mas deixou claro que está de acordo com a proposta do
programa dela e é favorável a independência do Banco Central e acusou o
PT de manipular o debate.
Num país onde é comum ouvir as queixas de que as campanhas não fazem
discussões sérias nem profundas, essa iniciativa de Marina está longe de
ser inédita mas é um recorde contra os interesses do eleitor.
Procura-se transformar um esforço para debater ideias — na linguagem
adequada de uma campanha política pela TV que se dirige a uma plateia de
140 milhões — numa espécie de crime.
Nós já vimos que vale até chorar para conseguir votos. Em 1989, Fernando Collor levou até uma antiga namorada para denunciar Lula no horário político.
Nós já vimos que vale até chorar para conseguir votos. Em 1989, Fernando Collor levou até uma antiga namorada para denunciar Lula no horário político.
Não vale debater - em particular, ideias que dizem respeito a toda da população e ao destino de um país.
O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, acendeu duas velas. É contra o direito de resposta mas favorável a proibição.
Pelo caráter político, vale a pena registrar alguns trechos da colocação
de Gilmar. Referindo-se a independência do Banco Central num tom sempre
positivo, sustentou que a propaganda do PT atingia os eleitores
“analfabetos e semi alfabetizados”, aqueles que, conforme o ministro,
que não tem capacidade de compreender o Marina propõe — condição que, em
sua argumentação, justificava a proibição, pois ficariam expostos a
“informação claramente enganosa.” A intervenção do ministro, na verdade,
serve para lembrar que mesmo autoridades de formação erudita e curso de
pós-graduação fora do país, como ele, também pode se iludir e se
enganar.
Para sustentar seu ponto de vista, Gilmar fez várias referências a crise
do Velho Mundo, um dos centros da crise econômica mundial. Falando
daquele momento em que os países europeus procuravam caminhos para sair
da crise, chegou a pronunciar referencias em tom positivo às visitas da
Troika que, formada por executivos financeiros do Banco Central Europeu,
pelo FMI e pela União Europeia, a partir de 2011 passou a ditar regras
econômicas a Grécia, Portugal, e outros países - num comportamento de
vice-reis período colonial dos séculos XVIII e XIX. Num episódio
marcante, o primeiro ministro George Papamdreau foi deposto quando
tentou submeter o programa de austeridade da Troika - elaborado pelo
Banco Central Independente - a um plebiscito popular. Papamdreau apoia o
programa mas queria que o povo grego pudesse se manifestar. Perdeu o
posto.
Gilmar chegou a atribuir a existência de um Banco Central na Alemanha o
período de estabilidade que o país viveu após a Segunda Guerra Mundial, o
que não passa de uma visão particularmente germânica da história. A
prosperidade daquele país só foi possível quando, quebrando qualquer
paradigma monetarista, o governo dos Estados Unidos despejou bilhões de
dólares na reconstrução do país para evitar o risco de cair sob domínio
soviético. A partir de 2008, dirigido por fanáticos do Estado Mínimo que
pretendiam preservar as receitas dos bancos privados a qualquer custo,
inclusive os bônus vergonhosos de seus executivos o Banco Central
Europeu derrubou absolutamente todos os governos do Continente - com
exceção da Alemanha - com programas de austeridade e empobrecimento.
Embora Gilmar tenha apresentado a existência de um Banco Central
independente na Alemanha como um instrumento que impediu o retorno do
nazismo, o alinhamento implacável com os bancos alemães ajudou
crescimento do fascismo e de partidos de extrema direita na maioria dos
países da Europa, com uma presença que não se via desde a Segunda Guerra
Mundial.
Gilmar sustentou várias vezes que a independência do Banco Central
retira a instituição da influência “dos políticos” - sim, estes mesmos,
no genérico, sempre criminalizados, que a população irá eleger dentro de
duas semanas e dois dias.
Anunciando seu voto em seguida, o ministro Luiz Fux, que votou ao lado de Gilmar em tantos momentos da AP 470, desta vez ficou do outro lado. Lembrando corretamente o princípio da liberdade de expressão, Fux rejeitou os dois pedidos de Marina. O debate é este, na verdade.
Anunciando seu voto em seguida, o ministro Luiz Fux, que votou ao lado de Gilmar em tantos momentos da AP 470, desta vez ficou do outro lado. Lembrando corretamente o princípio da liberdade de expressão, Fux rejeitou os dois pedidos de Marina. O debate é este, na verdade.
Em 2002, quando o PSDB exibiu o célebre vídeo do medo de Regina Duarte
como parte da propaganda anti-Lula, a campanha petista bateu as portas
do TSE para tirar o depoimento do ar. O PT foi derrotada por
unanimidade. Em seu voto, o ministro Gerardo Grossi, que relatou o
pedido dos petistas, lembrou os direitos do eleitor, dizendo que caberá a
ele “concordar ou não com tais previsões e análises. “Numa lição de
democracia, evitando definir direitos de cidadania pelo grau de estudo
formal, Grossi disse ainda que “é preciso confiar no seu discernimento
(do eleitor), nas suas razões para optar por este ou aquele candidato,
sob pena de não se estar acreditando na própria substância do processo
democrático.”
É curioso que, doze anos depois, o mesmo tribunal retorne ao assunto.
Mas é sintomático que, em 2002, quando se tratava de atender um pedido
que, mesmo errado, poderia trazer benefícios ao PT, o TSE tenha agido de
uma forma. Doze anos depois, quando debate-se uma decisão em que o
mesmo partido pode ser prejudicado, as belíssimas palavras de Grossi
podem ser esquecidas. Deve ser coincidência, né?
Assinado em julho de 1965 - um ano e três meses depois da deposição de
João Goulart - pelo general Castelo Branco, primeiro presidente do ciclo
militar, o Código Eleitoral foi um dos instrumentos importantes de
construção de uma ditadura apoiada pelas forças que não conseguiam
garantir seus interesses pelo voto popular e encaravam eleições como um
momento de risco e medo. O contexto conhecido. Três meses depois do
Código eleitoral, o regime baixou Ato Institucional que dissolvia os 29
partidos políticos, permitindo apenas a formação de Arena e MDB. O
mandato do próprio Castelo Branco foi prorrogado na mesma época. Ele
deveria, em tese, apenas terminar o mandato em janeiro de 1966 mas
ganhou um ano a mais a frente do governo — sem um único voto popular.
O Código Eleitoral tem centenas de artigos. Um deles, de número 243, diz
que se pode “instigar a desobediência coletiva” nem “perturbar o
sossego publico com instrumentos sonoros ou sinais acústicos.” Dá bem
uma ideia da visão da eleição que animou o texto e enxergar a quem se
dirige. Mas o pedido de Marina se apoia em outro artigo, o 242.
Empregando uma linguagem típica de ditadura, de guerra psicológica e
outros conceito produzidos nos setores de informação do governo
norte-americano, ali se diz que a propaganda política não deve “empregar
meios publicitários destinados a criar, artificialmente, na opinião
pública, estados mentais, emocionais ou passionais.” Foi com base neste
argumento que Rodrigo Janot sustentou o pedido de proibição.
É uma noção que não faz sentido, depois que o mesmo tribunal, composto
por magistrados como Nelson Jobim, Ellen Gracie, Sepúlveda Pertence,
entre outros, considerou que não havia nada de errado em permitir a
Namoradinha do Brasil (capaz de gerar “estados emocionais ou emocionais”
em milhões de espectadores, não é mesmo?) de falar que tinha medo do
Lula.
O argumento de quem defende a proibição em 2014 é dizer a propaganda não
é verdadeira nem verossimilhante. Exagera no tom, no drama. Lembrando a
cena do anúncio em que a comida vai desaparecendo do prato de uma
família de cidadãos pobres na medida em que homens de gravata tomam
decisões em ambientes fechados e sombrios, um procurador alega que “não
dá para acreditar que as coisas aconteçam assim. Não é instantâneo:
aprova-se um plano e em seguida acaba a comida na casa das pessoas.” Por
essa razão, a publicidade gerava “estados emocionais ou mentais.”
É uma contestação frágil, vamos combinar. Os bastidores de medidas que
envolvem o sacrifício de milhões de pessoas costumam ser reservados e
mantidos em segredo. Mas é possível saber algumas coisas. Na Grécia,
passaram-se 72 horas entre o anúncio do referendo sobre o programa de
austeridade e o corte de um pacote de 8 bilhões de euros. O piso das
aposentadorias subiu de 60 para 65 anos antes de se aprovar um outro
plano, de 14 bilhões, que exigiu um corte de 20% nas aposentadorias de
maior valor. Nas escolas publicas gregas, o corte da merende provocava
desmaios de crianças em salas de aula. Na Espanha, faltava papel
higiênico.
A simples hipótese de que se cogite uma proibição por razões políticas deveria ser escandaloso quando se recorda que a liberdade de expressão é um valor absoluto da Constituição. Muito ciosos dessa liberdade, os ministros do Supremo chegaram a declarar extinta uma Lei de Imprensa — também criada pelo regime militar — porque se considerou que era um “entulho autoritário.”
O debate no TSE é ainda mais estranho porque estamos falando da liberdade de representantes do povo, dos porta-vozes de sua soberania, enquanto jornalistas, são cidadãos privados, que respondem a empresas privadas. A Constituição diz que é proibido proibir no parágrafo IX do artigo 5: “é livre a expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença.”
A simples hipótese de que se cogite uma proibição por razões políticas deveria ser escandaloso quando se recorda que a liberdade de expressão é um valor absoluto da Constituição. Muito ciosos dessa liberdade, os ministros do Supremo chegaram a declarar extinta uma Lei de Imprensa — também criada pelo regime militar — porque se considerou que era um “entulho autoritário.”
O debate no TSE é ainda mais estranho porque estamos falando da liberdade de representantes do povo, dos porta-vozes de sua soberania, enquanto jornalistas, são cidadãos privados, que respondem a empresas privadas. A Constituição diz que é proibido proibir no parágrafo IX do artigo 5: “é livre a expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença.”
Sempre soube que uma lei ordinária está subordinada a lei maior e deve
adequar-se a ela. Não há o que discutir. Ou não deveria haver. A
liberdade não pode ser dirigida nem tutelada.
Ao tentar censurar aquela que foi até agora a discussão mais importante
da campanha, Marina Silva deu ao TSE a chance de afirmar seu compromisso
com a democracia e a liberdade.
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