O eleitor oculto de Marina Silva, por J. Carlos de Assis
O susto maior está passando. As últimas pesquisas indicam que o empuxe emocional devido à morte de Eduardo Campos aparentemente atingiu seu limite. Marina estabilizou-se num patamar elevado e muito provavelmente começará a cair nos próximos dias. As populações, como os homens individualmente, são movidas pelo instinto de sobrevivência. Seria inacreditável que, nesta altura do século, os brasileiros não fossem tocados pela intuição de que a Presidência não é um prêmio que se confere a um candidato por sua origem humilde, mas um mandato para tomar iniciativas que tocam o destino de rigorosamente toda a cidadania, pobres e ricos, trabalhadores e aposentados.
Agora que o perigo maior parece superado convém dar uma parada de arrumação. Que diabos, que sortilégios, que mágica possibilitaram, para além da morte de Eduardo, que uma frágil mulher - frágil fisicamente, frágil intelectualmente, frágil ideologicamente -, surfando exclusivamente em lugares comuns e anunciando platitudes do tipo “vamos governar com os melhores” do PT e do PSDB ameaçasse seriamente chegar à Presidência da República? Até que ponto isso não passa de uma distração da sociedade num momento de cansaço da política, uma espécie de desesperança, certamente infundada, com relação à política como arte de comandar o Estado?
Primeiro convém remover as analogias. Marina não é Collor. Em seu momento de ascensão, Collor era um jovem vigoroso, bem falante, bonitão, governador em exercício, audacioso e bafejado pela imprensa como o “caçador de marajás” segundo a expressão cunhada pela “Veja” e replicada pelo resto da imprensa. Os discursos são parecidos, pois também Collor, como Marina, se apresentava como o avatar para acabar com a política convencional e fundar uma nova política. Ambos têm o apelo do discurso simples, direto, costurado num estilo de razão primária pelo qual, no caso de Marina, conceitos como o “tripé macroeconômico” aparecem com naturalidade como algo banalizado e imediatamente compreendido pelo grande público.
Há, porém, uma diferença fundamental em relação a Collor: em 1989, ano da eleição, Collor encarnou a oposição ao Governo Sarney que estava no ponto mais baixo de sua credibilidade, com a economia em recessão e a inflação mensal chegando aos 80%. O desgaste do Governo era tão grande que Sarney não teve como apoiar a candidatura de um sucessor. E todos os que, de alguma forma, estiveram próximos dele nos anos anteriores, a começar por Ulysses Guimarães e Aureliano Chaves, sua principal base, dispensaram seu apoio e, assim mesmo, sofreram esmagadoras derrotas, as quais atingiram também, pela tabela, Mário Covas, do então recém-fundado PSDB. Nesse quadro, o segundo turno foi disputado entre dois candidatos que se apresentavam como mudança, Collor e Lula.
A situação hoje é inteiramente diferente. A Presidenta é candidata à reeleição e, exceto por “Veja” e Rede Globo, apresenta uma performance governamental invejável no campo social, com inflação inteiramente sob controle, renda média crescendo, desemprego no mais baixo nível histórico, altos investimentos em saúde e educação, retomada dos investimentos em infraestrutura. É um ponto de partida sólido para um novo ciclo de crescimento a partir de uma articulação externa que vem sendo costurada com BRICS e Unasul, tendo em vista as poucas perspectivas que temos na Europa e nos Estados Unidos. Ao contrário de Sarney, o Governo Dilma tem credibilidade e tem espaço para tomar iniciativas estratégicas conduzidas por sua própria experiência.
Por que, diante disso, parece ter prevalecido o mantra da mudança? Acho que, nesses últimos dias, uma parte importante da população se perguntou: mudança para onde? Está tão ruim assim que é preciso mudar tudo? Na época de Sarney, que havia entregue a economia aos cuidados de um incompetente, não tenho dúvida de que a resposta teria sido: mudança para qualquer lugar, desde que saiamos disso que está aí. Acaso esta é a situação agora? Vejam o último relatório do PPA 2013-2015: é um show de realizações. Infelizmente, a imprensa ignora isso, e o Governo comunica mal. Vou dar apenas um número: os investimentos em saúde, tão reclamados em junho do ano passado, saltaram de 4% do PIB para mais de 6% entre 2002 e 2013, ou seja, de cerca de 170 bilhões para mais de 260 bilhões em termos reais. (Segundo Aécio no Jornal da Globo, foram R$ 80 bilhões; por certo esse ás da gestão não está muito familiarizado com números.)
Se a situação, do ponto de vista objetivo, é muito mais confortável hoje para o povão do que no tempo do Collor e de Fernando Henrique, por que, afinal, esses aparente furor por mudança parecido com o de 89? Vou arriscar um palpite. Não é nada objetivo. Tudo se deve a uma coisa chamada “mensalão”, que assumiu um caráter subjetivo no substrato ideológico da esmagadora maioria dos brasileiros. Pouquíssimas pessoas se deram ao trabalho de investigar, em 80 mil páginas de processo, a real natureza daquilo que Roberto Jefferson chamou falsamente de “mensalão”. O que povoa o inconsciente coletivo é a história contada pelo Procurador Geral e pelo então ministro Joaquim Barbosa no maior massacre midiático de reputações na história jurídica brasileira. Os advogados defenderam cada um o seu réu esquecendo-se de desmentir a história inteira.
Apresentada na tevê Justiça, logo replicada na tevê aberta, durante quatro meses ininterruptos, a versão de que a cúpula do Governo e do PT agiu como uma quadrilha a fim de montar uma gigantesca operação de desvio de recursos públicos para comprar e vender votos para aprovar projetos na Câmara ocupou a consciência acrítica de multidões. Um ministro negro, agindo como um Torquemada, era a própria imagem de um campeão de ética. Como um homem dessa envergadura poderia mandar injustamente para a cadeia aqueles réus? Não importa que, para condenar Dirceu, ele tenha recorrido ao infame “domínio do fato”, pois ninguém entende disso e a maioria tende a acreditar na sábia palavra dos ministros do Tribunal, ou em sua maioria.
Lembro-me de uma ministra dizendo, em sua declaração de voto, que “eu penso que não era possível que Dirceu não soubesse do que estava acontecendo”, cometendo com esse episódio um atentado contra as próprias bases do Direito moderno que exige que tipificação de crime e prova para se condenar. Essa infâmia aconteceu nas barbas da sociedade que, obviamente, foi empulhada pela solenidade do julgamento: homens tão circunspectos não podiam estar fazendo uma afronta à Justiça, ao Direito e à Política.
O fato é que, para atacar de morte o PT, o Supremo feriu mortalmente também a política brasileira. Se homens que ocuparam altos cargos na República são classificados de “quadrilheiros” e de corruptos durante meses nas televisões e nas revistas é porque toda a política está contaminada. Daí o sentimento profundo de que é preciso mudar. Notem que a palavra “mensalão” praticamente não tem aparecido na campanha presidencial. Não precisa. Como disse, está no inconsciente coletivo. O PT, por si e pelos demais partidos, está pagando o preço de sua pusilanimidade e de sua covardia ao não assumir uma campanha de esclarecimento do que foi realmente o chamado “mensalão”.
Há alguns meses, antes do início oficial da campanha, sugeri ao PT que pedisse a um cineasta independente e de credibilidade para fazer um documentário sobre o “mensalão”. Uma espécie de livro branco de forma a fazer uma varredura de ponta a ponta no processo e a investigar o comportamento da imprensa no episódio. Seria uma forma de apresentar uma narrativa alternativa à de Joaquim Barbosa, baseada em fatos e não em suposições. O equivalente, hoje, do que foi “J'accuse”, de Zola, sobre o caso Dreyfus na França. A sugestão foi ignorada, creio que com base na crença de que a história do “mensalão” deve ser esquecida porque cheira mal. É um equívoco. Será lembrada enquanto for um esqueleto no armário do PT, que se recusou a fazer o que nós, um punhado de jornalistas independentes, tentamos fazer espontaneamente: mostrar à opinião pública as incongruências do processo criminal e o óbvio de que o caixa dois confessado por Delúbio não é crime.
J. Carlos de Assis - Economista, doutor em Engenharia de Produção pela Coppe-UFRJ, professor de Economia Internacional na UEPB, autor de mais de duas dezenas de livros sobre Economia Política brasileira.
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