Débora Calheiros: Um meteoro está caindo no Pantanal e vai sobrar para todos nós
Quatro das sete lagoas da APA (Área de Proteção Ambiental) das nascentes do rio Paraguai secaram por causa do assoreamento. Foto: Jacildo de Siqueira Pinho/((o))eco.org.br
Por Débora Calheiros*
O Pantanal como um todo está seriamente ameaçado.
Correm riscos tanto as suas belezas naturais (que vemos nas cenas deslumbrantes da novela) quanto a cultura pantaneira.
Entre a primeira versão da novela e a atual passaram-se pouco mais de 30 anos.
Nesse período, quase nada foi realizado para a conservação do bioma.
Porém, muito tem sido feito para aumentar a degradação e o mau uso dos recursos naturais.
É uma das mais belas regiões do planeta.
Aqui, temos o privilégio de avistar uma fauna ímpar. Desde jacarés, aves aquáticas, araras, inclusive as famosas araras azuis, ariranhas, lontras, cervos, veados a onças parda e pintada.
As espécies de peixes, também com populações vigorosas, são outro atrativo da região.Arte: Julia Lima e Marcello Talone, em ((o))eco
As atividades de pesca profissional, turística e de lazer movem a socioeconomia local e regional.
Segundo dados da Universidade de Brasília (UnB) e da Agência Nacional de Águas (ANA), são capazes de gerar mais de R$ 1 bilhão/ano, além de garantir a segurança alimentar de comunidades, povos tradicionais e da população urbana mais vulnerável.
A pesca e a culinária do pescado são também uma das bases da cultura pantaneira para os povos e comunidades tradicionais, como ribeirinhos, quilombolas, indígenas e para a população das cidades pantaneiras.
A flora é exuberante, em especial na época da floração dos ipês rosa, amarelo e branco. São espécies ameaçadas de extinção no Cerrado e na Mata Atlântica, mas com populações numerosas no Pantanal.
Embora em níveis críticos atualmente, a conservação do bioma ainda permite usufruir de todos esses benefícios que a natureza sadia oferece à população local e aos visitantes.
Arte: Julia Lima e Marcello Talone, em ((o))eco
O Pantanal é uma planície inundável, que estende por mais de 140 mil quilômetros quadrados dos territórios de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
A planície pantaneira é formada pelo extravasamento da água de todos os seus rios formadores, entre os quais: Jauru, Sepotuba, Cabaçal, Jauquara, Bugres, Cuiabá, São Lourenço, Itiquira, Correntes, Piquiri, Taquari, Coxim, Negro, Aquidauana, Miranda e Apa — todos afluentes do rio principal, o rio Paraguai.
O resultado é a Bacia do Alto Paraguai. Uma planície de cerca de 620 mil quilômetros quadrados, que abrange três países: Brasil, Bolívia e Paraguai.
Pela sua grande importância para o meio ambiente, o Pantanal é considerado Patrimônio Nacional, pela Constituição Federal brasileira, Patrimônio Natural da Humanidade e Reserva da Biosfera, pela Organização das Nações Unidas para a Educação e Cultura (Unesco).
Atualmente, o Plano de Recursos Hídricos da Região Hidrográfica do Paraguai é a única política federal aprovada para bacias hidrográficas e que deve ser seguido por todos os entes da federação. É ele que coloca em prática na região a Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433/997), com objetivo de garantir o uso múltiplo das águas.
Ou seja, garantir que todos os usos tenham igual direito de usufruir dos recursos hídricos.
Porém, a degradação do Pantanal está avançando a olhos vistos por diversos motivos.
— Desmatamentos no planalto, que é a área que circunda a planície e onde nascem os principais rios formadores do Pantanal.
40% da vegetação nativa da unidade de conservação foi substituída pela soja, pelo milho e pelo gado. Foto: Jacildo de Siqueira Pinho/((o))eco
— Uso agrícola intensivo nas áreas de platôs.
— Desrespeito à conservação de Áreas de Proteção Permanente (APPS – nascentes, matas ciliares e encostas), contaminando-as por agrotóxicos e o avanço de processos erosivos, amplamente documentados.
— Supressão de vegetação nativa na planície (de matas a campos inundáveis).
Já está em torno de 15%. E continua aumentando, com amplo processo de substituição de pastagens nativas por pastagens africanas sem qualquer base técnica para os licenciamentos.
— Proliferação de projetos de hidrelétricas. Atualmente, há 180 projetos, sendo que 47 já foram executados, colocando em risco a migração reprodutiva de peixes de importância socioeconômica, atualmente ameaçando a conservação da pesca no principal tributário, e mais rico em peixes e em comunidades pantaneiras ribeirinhas, o rio Cuiabá, base da cultura Cuiabana.
— Retomada do projeto de Hidrovia Paraguai-Paraná no trecho norte do rio Paraguai, entre Cáceres-MT e Corumbá-MS.
Em 1996, o projeto foi recusado pelo governo federal. Porém, em 2000 a iniciativa foi retomada, resultando em decisão recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), 20 anos depois, que determina precaução e realização de estudos mais aprofundados. A hidrovia coloca em risco a área mais vulnerável do rio Paraguai, em termos de hidrodinâmica.
— Incêndios criminosos que afetaram o bioma nos últimos três anos. Em 2020, atingiram cerca de 30% do bioma.
Todas estas agressões são estruturantes para a conservação do sistema Bacia do Alto Paraguai/Pantanal.
Todas ameaçam o bem comum, o usufruto de qualidade ambiental que beneficia toda a sociedade.
Temos ainda outras ameaças, entre as quais:
— Contaminação por mercúrio devido à mineração de ouro no Mato Grosso.
— Contaminação, ambiental e de pessoas por agrotóxicos, com notícias recentes de detecção de agrotóxicos também em antas e araras mortas na região
— Pesca e a caça predatórias.
— Tráfico de animais.
— Aropelamento de animais nas estradas.
Pesquisadores da UFMT coletam amostras de água para verificar a contaminação por agrotóxicos. Foto: Jacildo de Siqueira Pinho/((o))eco
— A expansão da soja está ameaçando as águas cristalinas de Bonito, em Mato Grosso do Sul. Acreditem, estão destruindo Bonito!!!
Mas, e nós? Qual o nosso papel para conservar nosso patrimônio natural?
Cabe à sociedade civil exercer os seus direitos e deveres, exigindo a implementação das políticas públicas já existentes.
Isso implica demandar o Ministério Público do seu estado e/ou o Ministério Público Federal, conforme a área de abrangência do impacto ambiental.
Se contar também com o apoio de um Parecer Técnico embasado no que há de mais atual na Ciência, melhor ainda.
Esse é o caminho que muitos movimentos socioambientais têm seguido para tentar manter a conservação ambiental no Brasil.
É um trabalho árduo, cujos esforços muitas vezes recaem nas costas de poucas pessoas, causando adoecimentos psíquicos e físicos e agressões por assédio moral (inclusive institucional). Infelizmente, há até ameaças e reais assassinatos como os que estamos cada vez mais vivenciando no país.
Como cientistas, técnicos e ambientalistas, nosso papel é tentar garantir a conservação da natureza para benefício de todos, para o bem comum.
Isso significa garantir a qualidade de ar, água, solo e a conservação da biodiversidade. Ou seja, a qualidade de vida para as atuais e as futuras gerações. Nosso dever constitucional.
Porém, o que estamos vivenciando na prática é a inação ou a ação antiética dos órgãos gestores estaduais e federais em favor (na maioria dos casos) dos grandes empreendedores, como os de geração de energia (hidrelétrica, eólica, termelétrica), mineração, agronegócio.
Para beneficiar tais setores, certos órgãos gestores deturpam ou negam a ciência numa flagrante falta de ética profissional como agentes públicos.
A falácia do “desenvolvimento” a qualquer custo, com danos ambientais, tem nos custado muito caro. Desde a qualidade de vida até vidas.
Você acha melhor não olhar para esta situação?!
Pois saiba que o meteoro está caindo em cima de todos nós.
Para alcançar mais resultados, a sociedade civil tem que se antecipar e não apenas reagir.
Explico. A sociedade civil tem que se fazer representar não apenas por meio ONGs e Sindicatos, mas também por meio de suas próprias formas de organização.
Por exemplo, colônias de pescadores, ribeirinhos, associações de indígenas, quilombolas e de assentados, associação de moradores de bairros, cidades…
Pescador artesanal nas águas do rio Paraguai, no município de Poconé (MT). Foto: André Dib/((o))eco
A triste realidade é a associação perversa entre o poder econômico e o poder político na grande maioria dos órgãos colegiados de tomadas de decisão (como os Conselhos de Meio Ambiente e os de Recursos Hídricos), concedendo licenciamentos e outorgas do direito de uso da água muitas vezes sem respeito a critérios técnicos, legais, ou simplesmente os deturpando, para, assim, atender os detentores do poder econômico e, portanto, político.
Uma conivência intrigante, a nosso ver antiética, é observada na postura de representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e dos Conselhos Regionais de Agronomia e Engenharia (CREAs) locais, que participam desses órgãos colegiados.
Em geral, deixam de lado as premissas legais e técnicas e dão voto positivo para empreendimentos altamente impactantes.
Enfim, uma triste realidade, ainda mais nos tenebrosos tempos atuais.
Para piorar, a qualidade ambiental, mesmo como base para o bem estar social, não é prioridade dos partidos políticos e daqueles que exercem cargos públicos. Infelizmente, é tema pouco conhecido até no meio jurídico.
Os MPs têm seus técnicos especialistas que embasam as ações judiciais, mas muitos juízes, desembargadores e ministros não atentam para as questões ambientais de forma científica, sistêmica e ecológica como deveriam. Em consequência, acabam muitas vezes tomando decisões considerando apenas o denominado “risco econômico”.
Na verdade, quem deve buscar garantir os direitos ambientais antes que a degradação piore ainda mais, é a própria sociedade organizada!
Ou seja, NÓS!!!
Estamos numa guerra e estamos perdendo.
Faço aqui uma homenagem a todos os ambientalistas ameaçados e os que foram covardemente assassinados neste país sem lei.
Débora Calheiros é bióloga, especialista em ecologia de rios do Pantanal e de conservação e gestão de bacias hidrográficas
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