A Copa eurocêntrica e os “estrangeiros” nas seleções
No Catar, 72% dos jogadores convocados atuam na Europa, índice mais alto desde 1990, quando a legislação abriu os clubes para atletas de outros continentes. São atraídos por ascensão e salários, mas também enfrentam racismo e xenofobia
Por Caio Vitor Spaulonci, Giovana Martins, Gustavo Mendes de Almeida, Laryssa Bastos, Melissa Souza e Tatiane Anju Watanabe no Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil
A Copa do Mundo de 2022 reúne no Catar 32 seleções nacionais de futebol. Cada uma delas escalou 26 jogadores (com exceção do Irã, com apenas 25). No entanto, a distribuição global das equipes não é regular. A Europa possui 13 das 32 seleções (40,7%), enquanto a América do Norte, 2 (6,3%); a África, 5 (15,6%); a Ásia, 5 (15,6%), a Oceania, 1 (3,1%), e a América Latina possui 6 (18,8%). Neste último bloco estão Argentina, Brasil, Costa Rica, Equador, México e Uruguai.
Ao analisarmos o clube de atuação dos jogadores no momento da convocação, notamos também o protagonismo do continente europeu para empregar jogadores nacionais e estrangeiros. Do total de 831 jogadores, 601 deles (72,3%) jogam no continente (incluindo Cristiano Ronaldo, demitido de seu clube em meio à Copa). Destes 601, além dos 333 jogadores que migraram de outros países da Europa (e Turquia) ou são naturalizados europeus, 268 são estrangeiros de outras partes do mundo: 97 da África, 84 da América Latina, 40 da Ásia, 32 dos EUA e Canadá e 15 da Oceania.
Dentre europeus e estrangeiros, o destino principal dos jogadores é a Inglaterra, com 158 jogadores; a Espanha, com 87; a Alemanha, com 80; a Itália, com 68; e a França, com 57. A preponderância nestas nações vai de acordo com o relatório anual Deloitte Football Money League 2022, que lista os 20 clubes internacionais que mais geram receitas. No ano de 2022, foram majoritariamente europeus (com exceção ao FC Zenit, da Rússia) do Reino Unido, Alemanha, Espanha, Itália e França. Essa tendência é ressaltada na série histórica dos últimos 25 anos, na qual 45 clubes diferentes oriundos de 11 nações apareceram na lista, sendo 10 delas nações europeias (tabela 1).
Tabela 1: Jogadores convocados na Copa do Mundo de 2022 em times no exterior
O crescente “êxodo” de jogadores latino-americanos para times no exterior
Focando nos dois principais times latino-americanos convocados, Brasil e Argentina, em comparação com a Copa do Mundo de 1990, que foi realizada pela Itália, o que se nota é que, apesar de já se observar uma maioria que não jogava em times nacionais, a lista não era tão grande como no século XXI.
O começo do êxodo se deu há três décadas. A Copa de 1990 inaugurou o padrão de a seleção brasileira ser formada por mais jogadores que atuavam no exterior, representando 55% do total convocado pelo técnico Sebastião Lazaroni. Diferente da Copa de 2022, em que a maioria joga em times ingleses, em 1990 a maior concentração de jogadores brasileiros se dava em Portugal, com 5 jogadores, e na Itália, com 4. Outros estavam espalhados em times da França, Alemanha e Holanda.
Já a Argentina, quatro anos após sagrar-se campeã mundial no México em 1986 – com um dos gols mais marcantes da história do futebol, anotado por Don Diego Maradona e apelidado de “La mano de Dios” –, sua seleção chegava à Itália entre uma das favoritas para vencer a Copa. Com uma campanha dramática, mas com direito a eliminar Brasil e Itália, nas oitavas e na semifinal, respectivamente, os hermanos chegariam a mais uma final de Copa do Mundo. No entanto, saíram derrotados pela Alemanha Ocidental, que conquistou o tricampeonato mundial.
Entre os 22 jogadores convocados em 1990 pelo técnico Carlos Bilardo, 9 deles atuavam no futebol argentino, em times como River Plate, Boca Juniors, Independiente de Avellaneda, Newell’s Old Boys, Racing e Ferro Carril Oeste. Dentre estes, o zagueiro Juan Simón (Boca Juniors) era titular absoluto de La Albiceleste, ademais, Julio Olarticoechea (Racing), José Serrizuela (River Plate), Ricardo Giusti e Pedro Monzón (ambos do Independiente), foram jogadores com presença frequente nas partidas da seleção.
Mas afinal, qual é a raiz deste processo de êxodo da América Latina para a Europa? Primeiramente, é importante salientar que este processo não é exclusivo da nossa região. As seleções africanas e, em menor medida, as seleções asiáticas, também estão repletas de jogadores que não atuam em seu país natal, e que seguem suas carreiras vivendo o famigerado “sonho europeu”. O ponto que marca o início dessa dinâmica ocorreu exatamente em 1995, após um jogador belga insatisfeito por não poder se transferir para o clube que queria, conseguiu uma decisão judicial favorável e mudou os rumos do futebol mundial para sempre.
A Lei Bosman
No ano de 1990, ao se encontrar em um imbróglio com seu clube, Jean-Marc Bosman entrou com um processo judicial contra o RFC Liege (BEL). Com a intenção de poder deixar seu clube de maneira gratuita após o fim de seu contrato, Bosman conseguiria uma vitória no tribunal em 1995, que além de garantir aos jogadores de futebol esse direito, derrubaria a limitação de jogadores europeus atuando no próprio continente.
Para entendermos essa situação, podemos traçar um paralelo com o Brasil: atualmente, os clubes brasileiros possuem um limite em relação aos jogadores estrangeiros relacionados para cada partida nas competições nacionais, sendo esse número limitado a 5 atletas. Anteriormente à Lei Bosman, era algo parecido que ocorria na Europa, entretanto, após este processo, passou-se a considerar a cidadania europeia como mandatória nessa dinâmica. Logo, um atleta francês, por exemplo, não ocuparia uma vaga de estrangeiro ao se transferir para um time alemão. Com essa unificação das nacionalidades em uma só, abriram-se vagas para estrangeiros em todos os clubes da Europa e, no bojo da ascensão econômica de seu futebol, os times do velho continente passaram a contratar jovens talentos de todo o globo, afetando principalmente países que tradicionalmente revelaram grandes jogadores, a maioria deles na América Latina e na África.
Racismo e xenofobia sofrido pelos jogadores latino-americanos no exterior
É fato que a grande maioria dos jogadores latino-americanos alcança maior prestígio e maior retorno financeiro atuando no Velho Continente, ao superarem barreiras e desigualdades socioeconômicas dos seus países de origem e atingindo altos estratos sociais rapidamente. Entretanto, o que muitos jogadores vivenciam no continente europeu, além do “glamour” de um atleta de alto nível, é o contato quase imediato e generalizado com a xenofobia e o racismo.
O pesquisador da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Marcel Tonini, realizou uma investigação – baseada em relatos orais de jogadores brasileiros negros que atuaram no futebol europeu em diversos períodos. A conclusão mostra a presença de episódios de racismo e xenofobia na trajetória de quase todos os atletas brasileiros entrevistados.
Em paralelo com o que foi discutido referente ao período anterior à Lei Bosman, a pesquisa de Marcel Tonini mostra que, até a década de 1990, havia um limite sutil entre racismo e xenofobia na Europa, justamente quando os países limitavam a presença de estrangeiros a um, dois ou três jogadores por equipe. Isso porque, segundo o pesquisador, “fazia com que fossem contratados atletas renomados, que recebiam altos salários. A situação causava estranhamento dentro das equipes. Os jogadores mencionaram várias vezes que os companheiros pensavam que eles iam ocupar seu lugar, ainda que não comentassem”, afirma Tonini. Dessa forma, os casos mais comuns de preconceito na década, além dos sofridos por parte das torcidas adversárias, vinham dos próprios companheiros de equipe e comissões técnicas dos times europeus.
Hoje em dia, o cenário de preconceito pouco mudou. O caso recente mais famoso vivenciado por um atleta latino-americano foi o do jogador do Real Madrid e da Seleção Brasileira, Vinicius Junior. O brasileiro sofreu declarações racistas e xenofóbicas em plena rede nacional pelo Presidente da Associação Espanhola de Empresários, Pedro Bravo, ao comparar as danças de comemoração de gols do jogador com “macaquices”. O espanhol declarou: “Você tem que respeitar o rival. Se quer dançar, que vá ao sambódromo no Brasil. Aqui o que você tem que fazer é respeitar os companheiros de profissão e deixar de fazer macaquice”. Vinicius Junior, por sua vez, não se calou e se pronunciou nas redes sociais sobre o ocorrido: “Dizem que a felicidade incomoda. A felicidade de um preto brasileiro, vitorioso na Europa, incomoda muito mais […] Fui vítima de xenofobia e racismo numa só declaração. Há semanas, começaram a criminalizar minhas danças. Danças que não são minhas. São do Ronaldinho, do Neymar, do Paquetá, do Pogba, do Matheus Cunha, do Griezmann e do João Félix. Dos funkeiros e sambistas brasileiros. Dos cantores latinos de reggaeton e dos pretos americanos. São danças para celebrar a diversidade cultural do mundo”.
A declaração forte de Vinícius coloca em evidência como o cenário de combate ao racismo e a homofobia está mudando e se solidificando como uma causa real entre os jogadores. Diferentemente do que foi analisado por Marcel Tonini durante as décadas passadas, o combate ao preconceito vem deixando de ser feito de forma individual e apenas com resultados em campo, mas também com o posicionamento e união cada vez mais forte de jogadores latino-americanos e de uma grande comunidade internacional que denuncia e apoia punições severas ao racistas e xenofóbicos.
Jogadores latino-americanos em times no exterior
Dentre os seis times latino-americanos presentes na Copa do Mundo no Catar, se destaca o fato que a maioria dos jogadores atua em times no exterior, principalmente na Europa, como é possível observar abaixo (tabela 2).
Tabela 2: Jogadores latino-americanos convocados na Copa do Mundo de 2022 em times do exterior
Na seleção brasileira, dentre os 26 convocados por Tite para a Copa no Catar, somente três jogam em times nacionais, dois no Flamengo e um no Palmeiras, o que faz com que essa seleção seja a mais “estrangeira” no histórico de todas as Copas. A última vez que a seleção teve mais jogadores que atuavam no Brasil foi em 2002, com 13 nomes.
O principal destino dos jogadores brasileiros na Copa de 2022 são times europeus, em especial ingleses, que contam com 12 jogadores brasileiros em times como Liverpool, Manchester United, Tottenham Hotspur, Chelsea, etc. Outros dez jogadores estão em times na Espanha, França e Itália, como no Barcelona, Real Madrid, Paris Saint-Germain, entre outros, e apenas 1 está em outro time latino-americano, Daniel Alves, que joga no Pumas, do México.
Na Argentina, o técnico Lionel Scaloni, convocou apenas um jogador que atua em solo nacional, o goleiro Franco Armani do time Club Atlético River Plate. A maior parte de seus colegas está em peso jogando em clubes europeus, grande parte na Espanha, concentrando 10 jogadores principalmente no Atlético de Madrid e Sevilla, cinco na Inglaterra, mas também em times na Itália, França, Portugal e Alemanha. E 1 joga em um time estadunidense, o Atlanta United FC.
Em relação ao Uruguai, o atacante Luis Alberto Suárez Díaz, o goleiro Sergio Rochet e o lateral direito José Luis Rodríguez Bebanz atuam exclusivamente em clubes nacionais. Enquanto apenas outros seis jogadores desta seleção se mantiveram no continente, três em times brasileiros (Flamengo e Atlético Paranaense) e três em argentinos (Independiente, River Plate e Vélez Sarsfield), assim como no caso anterior, a maior parte da equipe uruguaia se encontra fora da América Latina, sendo a maioria em times europeus, como Liverpool, Manchester United e Barcelona, mas também alguns em times turcos e estadunidenses.
A seleção equatoriana segue a mesma tendência do Brasil, Argentina e Uruguai, tendo uma maioria de jogadores convocados que jogam no exterior, com somente quatro que jogam em times do próprio país. Mas diferentemente do Brasil, que só tem um jogador atuante em time latino-americano, no Equador há oito (além dos quatro que permanecem em times do próprio país): cinco no México, dois na Argentina e um no Brasil, no time do São Paulo. Os outros times estrangeiros em que os jogadores mexicanos atuam se encontram principalmente na Europa, nove deles espalhados em equipes da Espanha (León e Valladolid), Inglaterra (Brighton), Alemanha (Bayer Leverkusen e Augsburg), Bélgica (Genk e Royal Antwerp) e França (Troyes), e outros quatro nos Estados Unidos (Seattle Sounders e Los Angeles FC) e um em time turco (Fenerbahçe).
Já a seleção mexicana, diferente das outras apresentadas, a maioria joga no próprio país, em times da Liga Mexicana, como o Monterrey, América e Cruz Azul. Esses jogadores correspondem a 16 dos 26 convocados. Dentre os 10 que atuam no exterior, 9 estão em times europeus, principalmente na Holanda e Itália, em times como Ajax e Cremonese, e 1 no time Houston Dynamo, nos Estados Unidos.
Assim como no caso mexicano, a seleção costa-riquenha tem a maior parte de seus jogadores contratados por clubes nacionais. Neste caso, também são 16 os convocados que jogam por times da Costa Rica, entre eles se destacam a Liga Deportiva Alajuelense, o Club Sport Herediano e o Deportivo Saprissa. Além disso, outros dois jogadores também fazem parte de clubes latinos, sendo eles o zagueiro Juan Pablo Vargas (Millonarios FC, Colômbia) e o atacante Joel Campbell (Club León, México). Assim, os outros oito jogadores que compõem esta seleção estão divididos entre clubes nos Estados Unidos (Colorado Rapids, Real Salt Lake e FC Cincinnati), na Europa (Sunderland AFC, Paris Saint-Germain FC e CD Lugo) e no Oriente Médio (Konyaspor e Al Wehda FC).
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