Por Eduardo Vasco
Vladimir Zelensky foi eleito presidente da Ucrânia em 2019 prometendo o fim das hostilidades contra as regiões rebeldes do país e a normalização das relações com a Rússia. A Ucrânia vinha de cinco anos de guerra civil, desencadeada pelo envio de tropas do exército contra as populações de Donetsk e Lugansk após estas se rebelarem contra o golpe de Estado que derrubou um presidente eleito e impôs uma ditadura no país.
Aquelas duas regiões, de maioria étnica russa, haviam sido as mais afetadas pelo golpe de Estado. Viktor Yanukovich, o presidente derrubado, recebera a maioria dos votos no Donbass, no sudeste da Ucrânia, onde grande parte da população é russa. Uma das primeiras medidas do novo regime foi banir o idioma russo do sistema educacional: antes os russos étnicos tinham o direito de serem educados em seu próprio idioma, agora lhes foi imposto um idioma estranho a eles. A emissão de programação de rádio e TV em língua russa foi proibida. Manifestações foram chamadas com slogans como “Yanukovich é o nosso presidente!”. Para reprimir o descontentamento, o novo regime enviou tropas acompanhadas de paramilitares neonazistas, causando massacres como o da Casa dos Sindicatos em maio de 2014 em Odessa, onde cerca de 50 opositores foram queimados vivos. Os habitantes de Donetsk e Lugansk responderam organizando milícias populares e realizando referendos onde a maioria decidiu se separar da Ucrânia porque não queriam se sujeitar a um regime hostil que os oprimia e que já havia suprimido o movimento antigolpista em Odessa e Carcóvia pela força. Então a guerra estalou.
Quando Zelensky subiu ao poder, a ditadura já estava consolidada. Os partidos de oposição, como o Partido das Regiões (o maior do país até o golpe) e o Partido Comunista (o segundo maior) não podiam se organizar livremente nem participar das eleições. Os cidadãos do Donbass que se recusavam a reconhecer o novo regime já eram considerados oficialmente terroristas e os que caíam prisioneiros eram torturados e mortos. Alexander Kharitonov foi preso. Lyubov Korsakova teve de fugir para a Rússia, onde mesmo assim foi vítima de um atentado. Conversei com os dois em 2022. São apenas dois entre milhares de vítimas da repressão no Donbass. Cerca de 15 mil pessoas morreram devido à agressão de Kiev desde 2014.
Os batalhões neonazistas, como o Azov, Aidar e Tornado, além de organizações de extrema-direita como o Praviy Sektor e o Svoboda, atuavam livremente e foram até incorporados ao Estado ucraniano – ao exército e à política oficial, com membros no parlamento. Enquanto isso, a oposição foi absolutamente exterminada. Em 2021, três grandes canais de TV opositores (112 Ukraina, NewsOne e ZIK) foram fechados. A censura afeta emissoras de rádio e TV, jornais impressos, sites e redes sociais, incluindo canais de Youtube. A censura é “digna dos piores regimes autoritários”, denunciou em 2023 a Federação Europeia de Jornalistas. A maior comunidade religiosa do país, a Igreja Ortodoxa Ucraniana, foi posta na ilegalidade pelo parlamento em outubro do ano passado.
Hoje, além do Partido das Regiões e do Partido Comunista, estão na ilegalidade o Partido Socialista, Partido Socialista Progressista (de Kharitonov e Korsakova), a União de Forças de Esquerda, os Socialistas, Bloco de Oposição, Justiça e Desenvolvimento, Estado, OURS e o Bloco de Vladimir Saldo, entre outros. O SBU (a polícia política ucraniana) justifica os banimentos acusando esses partidos de terem “executado atividades anti-ucranianas, promovido a guerra e criado ameaças reais à soberania e à integridade territorial da Ucrânia”. Numerosos opositores ao regime e à guerra estão presos, como o pacifista Bogdan Syrotiuk e os irmãos comunistas Mikhail e Alexander Kononovich.
Apesar de todas essas medidas ditatoriais, da censura, da perseguição e prisão de opositores, da ilegalização de partidos políticos e de entidades religiosas e do predomínio de forças abertamente nazistas, a Ucrânia é considerada uma democracia pelos líderes imperialistas e pelo monopólio comunicacional do Ocidente. Todas essas evidentes violações às liberdades democráticas têm sido ocultadas ou, no máximo, minimizadas ao longo dos últimos dez anos.
A Freedom House, organização financiada pelo governo dos EUA, que realiza uma avaliação anual do estado da democracia do mundo, não vê nada de mal no banimento de uma dúzia de partidos opositores na Ucrânia e relativiza a censura à liberdade de expressão e de religião. O governo ucraniano não é tão culpado quanto a “invasão russa”, embora esta tenha ocorrido somente em 2022, enquanto nos oitos anos anteriores todas as liberdades já haviam sido suprimidas na Ucrânia.
O tópico mais recente da lista de arbitrariedades do regime ucraniano foi a expiração do mandato de Zelensky em 20 de maio sem que novas eleições tenham sido realizadas. A constituição ucraniana ordena que elas ocorram a cada cinco anos e, de fato, deveriam ter ocorrido em março deste ano. Contudo, o governo alega que a lei marcial aplicada desde fevereiro de 2022 não permite a realização de eleições enquanto estiver em vigor. Por isso as eleições parlamentares, que deveriam ter ocorrido em outubro de 2023, também foram adiadas indefinidamente.
Em geral, a cobertura internacional nos principais meios de imprensa do mundo se calou sobre esse assunto. As poucas matérias que citam a expiração do mandato de Zelensky argumentam que a lei marcial impede a realização de eleições. Essa é uma falsificação da legislação ucraniana. A constituição do país menciona os direitos e deveres do presidente e explica o funcionamento das eleições em muitos de seus artigos. O capítulo V, sobre a presidência do país, cita a possibilidade de saída do presidente antes do término de seu mandato, mas não há nada sobre a extensão do mandato presidencial.
Em sua única menção à expiração do mandato de Zelensky, a CNN exibiu uma conversa ao vivo entre a âncora Paula Newton e a correspondente em Kiev Nataliya Gumenyuk, na qual a última tenta justificar a extensão do mandato de Zelensky dizendo, entre outras coisas, que a constituição foi escrita em uma época em que ninguém imaginava que uma guerra aconteceria. Para a lei, ainda mais para a constituição de um país, o que vale é o que está escrito. Se a constituição prevê cinco anos de mandato presidencial e não prevê extensão do mandato, porque esta é inconstitucional.
A DW alemã consultou juristas ucranianos para interpretarem a constituição, ao invés de consultar a própria constituição ucraniana. Claro que esses juristas disseram que Zelensky pode continuar na presidência. Afinal, ele é o queridinho da imprensa internacional – porque é o queridinho do governo dos Estados Unidos. Zelensky pode prender opositores, fechar canais de TV, colocar partidos na ilegalidade, perseguir sacerdotes e massacrar populações inteiras na fronteira com a Rússia, mas é um campeão da democracia. Zelensky não é Maduro ou Ortega para ser achincalhado na imprensa internacional.
Sucursal da imprensa americana, a Rede Globo obviamente também teve de sair em defesa de Zelensky. O G1 publicou uma matéria que buscava justificar em cada parágrafo a continuidade inconstitucional do presidente ucraniano, enquanto o jornal O Globo afirmou que o questionamento da legitimidade de Zelensky não passa de “propaganda de guerra” da Rússia.
O ângulo unidirecional na cobertura da imprensa não é um acidente. A pauta foi entregue, como sempre, pelo Departamento de Estado dos EUA, com a seguinte orientação do secretário Antony Blinken, no começo do mês: as eleições ocorrerão “quando os ucranianos concordarem que as condições permitem sua realização”. Todos que entenderam o recado sabem que Blinken quis dizer “quando nós (os americanos) concordarmos”.
Não é somente pela não realização das eleições de março deste ano que Zelensky é um presidente ilegítimo. Todo presidente ucraniano desde 2014, quando Viktor Yanukovich foi derrubado por um golpe de extrema-direita, legal e constitucionalmente é um presidente ilegítimo. O regime nascido do golpe de 2014 é uma ditadura e o presidente é escolhido entre os administradores dessa ditadura, sem verdadeira oposição. Mas Zelensky parece estar inaugurando um novo capítulo na história da ditadura ucraniana: ao romper com a formalidade eleitoral, ele tenta se perpetuar no poder. Isso certamente causará discórdia com outros setores do regime, que querem sacá-lo do poder sem modificar a estrutura ditatorial deste regime.
Mas como Zelensky é o queridinho dos Estados Unidos, da União Europeia e da OTAN, e como estes são quem realmente comanda a ditadura ucraniana, ele deverá ter algum sucesso ao menos momentâneo. O imperialismo precisa manter Zelensky à cabeça do governo, do contrário uma mudança poderia desestabilizar ainda mais o regime, o que afetaria o desempenho do exército na linha de frente e poderia antecipar uma derrota militar para a Rússia. E a derrota para a Rússia seria o pior dos pesadelos do imperialismo, que já deixou pública a sua disposição de lutar “até o último ucraniano”.
*Eduardo Vaco é Jornalista e analista de Politica Internacional
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