sexta-feira, 17 de junho de 2022

"Amigo Secreto"

 


“Amigo Secreto” deve ser visto, mesmo que nos custe enxergar.
- "O filme disseca o cadáver putrefato da Lava Jato, que também atuava como agência de notícias daquela Operação", escreve Hildegard Angel.
Não vá apenas de máscara, quando for assistir ao documentário “Amigo secreto”, de Maria Augusta Ramos, que estreia hoje. Leve um pregador para o nariz. O filme disseca o cadáver putrefato da Lava Jato, que também atuava como agência de notícias daquela Operação, distribuindo diariamente “press releases” para a grande mídia brasileira, que os publicava, irresponsavelmente, sem qualquer questionamento ou apuração.
Quando o filme terminar, e você retirar a máscara para tomar um sal de frutas, se dará conta que outras máscaras tombaram no desdobramento daquele caso: 1) as dos procuradores do MPF, cujo grupo no What’sApp se intitulava Amigo Secreto; 2) a do ex-juiz e atual candidato a pré-candidato, Sergio Moro; 3) as dos desembargadores da 14ª Vara; 4) a da hoje desacreditada imprensa corporativa brasileira, cuja omissão impulsionou o crescimento da mídia progressista, que hoje a incomoda bastante.
Sem repetir as emoções e palpitações de seu premiado “O processo”, sobre o impeachment de Dilma, o novo documentário de Maria Augusta propõe o ritmo da paciência diligente de quatro jornalistas “perdigueiras”, no acompanhamento às pegadas encontradas pela Vaza Jato – série de reportagens do The Intercept, que revelou a indecência dos trapos da Lava Jato sob sua túnica de vestal imaculada.
Em sua “Lição de anatomia”, a autopsia da ‘legista’ Maria Augusta Ramos se desdobra em cenas, revelando as tripas fétidas daquele período inquisitorial recente brasileiro (por isso recomendei o pregador no nariz). A sordidez das audiências de Moro, com o selo “Culpado” carimbado em Lula, antes mesmo de ele depor. O vazamento dos diálogos cafajestes e inadequados dos procuradores da LJ. O ridículo power point do primário Dallagnol (ou seria o primário power point do ridículo Dallagnol?) , arrancando gargalhadas da plateia na sala lotada do cinema Estação NetRio. A reunião do ministério do “Dom Corleonaro”, em nível de baixeza moral e verbal que nem Coppola igualou em sua série sobre a máfia. Com novas gargalhadas para as expressões de espanto do ministro da Saúde, Nelson Teich, ante as boiadas de Ricardo Salles, naquela reunião de 22 de abril de 2020, que envergonha a História da República do Brasil.
O documentário segue em ritmo de reflexão – não de palpitação – contextualizando o cotidiano de vida e trabalho das jornalistas envolvidas, ouvindo as revelações indecentes de personagens das “delações premiadas”, a interpretação dos fatos por grandes juristas brasileiros e as entrevistas dos jornalistas responsáveis pela Vaza Jato, Glenn Greenwald e Leandro Demori – palmas para eles!
Maria Augusta refaz a história. Lula na prisão; a vigília solidária e permanente de seus seguidores até o fim; a reviravolta do caso; a decisão do STF, proibindo prisão após 2ª Instância, que beneficiou Lula; a parcialidade de Moro, resultando na anulação do processo do tríplex pelo STF, e posteriormente dos demais processos contra o ex-presidente.
Documentando esse desdobramento, que insiste em continuar a se desdobrar, o filme da cineasta nos leva ao anticlímax, um estado de frustração, motivado pela realidade das imagens do vilão sênior, Moro, aplaudido, lançando-se candidato no Paraná, não se sabe ainda a quê, e do vilão master, Bolsonaro, falando a uma impressionante multidão de tresloucados seguidores, na Avenida Paulista, qual um pastor, levando seus fiéis fanáticos ao estado de exorcismo.
O bolsonarismo não é uma doença nem é uma torcida de futebol. É pior. É um credo, que propõe o fim da civilização e a apoteose da barbárie, recitado pelo Jim Jones de Rio das Pedras.
Infelizmente, é este o estado brasileiro em que nos encontramos, e que a nós mesmos cabe mudar.
“Amigo secreto” deve ser visto, mesmo que nos custe enxergar.
( Por Hildegard Angel, para o 247 )

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